Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No momento em que mais uma vez o Brasil investe histericamente no debate sobre a redução da maioridade penal – assunto potencializado pelo assassinato do universitário Victor Deppman –, a Globonews exibiu na segunda-feira, dia 15 de abril, no programa “Milênio”, uma entrevista com o economista da Universidade Harvard, David Hemenway, diretor do Centro de Estudos de Danos Causados por Armas de Fogo, um dos mais importantes do mundo nessa área.
Na conversa, Hemenway apresentou sua visão de enfrentamento à questão das armas a partir do viés da saúde pública – que, ao contrário da Justiça ou da imprensa, por exemplo, não se preocupa em perseguir o culpado, mas sim em contextualizar e cercar a situação de tal forma que ela possa resultar em menos vítimas. “Violência é como uma epidemia. Quando se entende assim, se busca prevenir os acontecimentos, e não nominar os culpados”, destacou, para em seguida completar: “Os médicos, as autoridades, a polícia, a comunidade não deviam apenas procurar quem atirou, mas sim trabalhar ao máximo para que disparos acidentais não ocorram”.
Nos Estados Unidos, as discussões a respeito do controle de armas, leis mais restritivas, ou medidas que reduzam os danos provocados por elas, ganharam muita força depois do episódio de Newtown, Connecticut, em dezembro de 2012. Um adolescente, com livre acesso a armas de fogo, entrou numa escola e matou 20 crianças e seis adultos. Naquela ocasião, o debate se polarizou bastante entre a proibição total das armas ou a liberação ampla – e consequente armamento da população. A partir desse cenário, Jorge Pontual, o entrevistador da Globonewws, provocou Hemenway, dizendo que percebia que ele estaria entre uma posição e outra, talvez “em cima do muro”. E pediu para o entrevistado explicar como isso é possível.
Ter arma em casa aumenta o risco de suicídio, porque facilita a decisão de quem está sofrendo e porque, em caso de uso, a letalidade é de mais de 90%, segundo Hemenway. […] Ele lembra ainda que, em casas em que há armas, mulheres são mais agredidas e mortas, potencializando a violência doméstica.
“Temos muitas armas nos Estados Unidos e muitas pessoas aqui gostam delas. Assim, não dá para imaginar que vamos acabar com revólveres e rifles. E se não dá para sumir com elas, o melhor é conviver de forma saudável, evitando que acidentes aconteçam”, respondeu o pesquisador. Ele fez, na sequência, uma analogia. Disse que há muitos carros nos Estados Unidos, e as pessoas gostam deles. Acontece que, se mal usados, os automóveis matam. No passado, culpavam-se quase sempre os motoristas por acidentes e mortes, e o grande projeto era identificar condutores e puni-los. Mas isso não estava resolvendo.
Então entra em cena a visão da saúde pública, que além de buscar o culpado, procura responder “como as vítimas se machucaram, do que morreram?”. O que se vivenciou foi uma mobilização da sociedade, das autoridades da Justiça e da Saúde, para tentar reduzir os erros mais frequentes e assim evitar acidentes e mortes. Pontual pediu exemplos práticos. “Mães se mobilizaram contra motoristas bêbados e a sociedade hoje condena quem guia nessas condições. A indústria passou a fabricar automóveis que, sob impacto, machuquem menos. Médicos passaram a conhecer os tratamentos mais adequados para esses ferimentos”. Ou seja, de fato não elimina o problema, mas reduz-se o grau de violência. Ele reconhece que os motoristas não dirigem melhor hoje que nos anos 1950, mas lembra que o número de acidentes foi reduzido assim como o de vítimas, letais ou não, dos automóveis.
Segundo David Hemenway, essa visão que agrega várias frentes passa, necessariamente, por uma mudança nas normas sociais – ou naquilo que a sociedade aceita ou não, tolera ou não. “Não há receita, mas depende basicamente da mudança de postura dos envolvidos. A primeira delas, que faz mais efeito, é parar de apenas caçar os culpados. Numa epidemia de gripe não há responsáveis, mas há medidas que mitigam o mal. É isso, quando os grupos passam a cobrar por essas medidas que reduzam os erros, a norma muda”, defende.
Especificamente no caso das armas, a redução de erros e a consequente redução de vítimas passam – de acordo com o especialista – pela tecnologia e pela indústria. “É possível imprimir marcas únicas nos projéteis, de forma que seja muito fácil provar de que arma aquele tiro saiu. Não de que lote de armas, ou modelo de armas, mas de qual unidade específica”. E continua: “Muitos crimes acontecem porque as armas caem em mãos erradas. Calcula-se que 500 milhões são roubadas por ano nos Estados Unidos. Se houvesse um mecanismo inteligente que só permitisse que a arma fosse usada por seu dono original – e impedisse que ladrões usassem armas alheias – muitos disparos não aconteceriam, muitas vítimas não seriam acertadas”.
Embora efetivamente não levante a bandeira de que as pessoas não tenham armas, o economista mostra porque ter armas aumenta o risco – para todos. Muitas pessoas afirmam que ter um revólver faz aumentar a sensação de segurança, de poder proteger a família. No entanto, na prática, essa sensação pode ser confrontada por verdades simples. Primeiro, armas são perigosas e letais. Caso disparem, as chances de ferir ou matar são muito elevadas. Ter arma em casa aumenta o risco de suicídio, porque facilita a decisão de quem está sofrendo e porque, em caso de uso, a letalidade é de mais de 90%, segundo Hemenway. Só para comparar, ingerir medicamentos com finalidade de acabar com a própria vida resulta em 2 a 3% de eficiência. Outro ponto é que, em quase 100% dos casos, as pessoas não sabem usar armas e isso agrava ainda mais o cenários – e as consequências. Ele lembra ainda que, em casas em que há armas, mulheres são mais agredidas e mortas, potencializando a violência doméstica.
“Violência é como uma epidemia. Quando se entende assim, se busca prevenir os acontecimentos, e não nominar os culpados”
Contudo, nem assim o lobby pró-armas se convence, ou se retira do embate. O mantra repetido pelo grupo é que armas em mãos responsáveis não causam mortes, exatamente como acontece com os carros. E, mais recentemente, o argumento defendido pelo lobby é que a cultura da violência é a grande responsável pelo estado em que as coisas estão. Então o rap, os games e os filmes é que levariam ao uso irresponsável de armas de fogo. Antes que Jorge Pontual termine a pergunta, Hemenway responde que infelizmente esses argumentos acabam sendo usados para promover posturas – em última instância – racistas. “Homens responsáveis e não violentos seriam os brancos, os outros, violentos e irresponsáveis, seriam os negros. Na verdade, precisamos melhorar em muitas coisas, no combate à pobreza, ao racismo, melhorar a relação de pais com filhos. Os Estados Unidos é o único entre os 25 países mais ricos que tem tantas mortes por armas de fogo. Também facilitamos tudo, o acesso, o uso, o porte, tudo. Não é de se estranhar. Precisamos melhorar muita coisa”, desabafou.
Por fim, talvez até para encerrar a entrevista num tom um tanto mais positivo, Pontual pediu que o especialista contasse como as pessoas podem fazer as coisas mudarem. O pesquisador de Harvard alertou que qualquer um que pretenda empreender uma jornada para mudar normas sociais deve saber que vai ser mais difícil do que imagina, porque há muitos interesses contrários. No entanto, essas vozes encontram eco em outras pessoas e instituições que estão cansados de ver os mesmos erros se repetindo e, em alguns casos, custando vidas. Foi o caso das mães contra motoristas bêbados, da indústria investindo para que os vidros dos carros não cortassem os motoristas… “É duro, não tem receita, mas temos que lutar, batalhar e não desistir”, finalizou.