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Cultura

Raízes em 2013

By 29/06/2017No Comments

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Todos os dias, variando um pouco o horário, o Facebook indica a seus usuários o que eles fizeram e postaram naquela mesma data, mas em anos anteriores. Durante este mês de junho, para parcela significativa dos internautas, as lembranças que a rede social manda referem-se àqueles quinze efervescentes dias de 2013, quando o Brasil enfrentou uma maratona de manifestações tão massivas quanto diversas. Em comum, os protestos tinham apenas uma indignação desmedida, a variedade de pautas e os olhares perplexos e cheios de dúvidas dos pensadores e analistas que tentavam refletir sobre sentidos e significados do que estava acontecendo no país.

Exatamente como seus pares, o professor Jessé de Souza observava os atos e as passeatas com certa angústia, procurando entender que movimento era aquele. Mestre e doutor em Ciências Sociais pela Universidade Heildeberg da Alemanha e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), ele sugere, quatro anos depois, algumas reflexões a respeito das jornadas, estabelecendo relações dos grupos que foram às ruas com a pequena elite retrógrada do Brasil e desenhando o cenário político atual à luz daqueles dias de junho. “Em São Paulo, se a prefeitura fosse mais hábil, as manifestações não teriam prosseguido e talvez não estivéssemos vivendo o golpe em 2017”, especula.

A reportagem da revista Giz conversou com exclusividade com o professor Jessé de Souza, a respeito das origens e desdobramentos das Jornadas. Os trechos mais significativos da entrevista você acompanha a seguir.


Professor, quatro anos depois, e já com certo distanciamento histórico, que balanço se pode fazer sobre os movimentos de 2013?

Primeiramente, não podemos falar em movimento único. Aconteceram manifestações plurais, complexas e multifacetadas. Várias cidades apresentaram protestos e grandes multidões nas ruas. Acompanhar era até difícil, porque no início a imprensa não dava. Só ficamos sabendo de alguns detalhes muito tempo depois, através dos documentários produzidos. O que a gente pode dizer é que tudo se inicia com grupos de jovens de esquerda, que reivindicavam passe livre e redução do valor das passagens e foram às ruas para isso. Enquanto ficamos nessa seara, a mídia pouco noticiou. No entanto, quando a TV Globo foi ameaçada e até atacada pelos manifestantes, o discurso do medo começa a ganhar força, as emissoras mudam o discurso e destampam essa cartilha que estamos vendo ser repetida até hoje: a política é inútil, a corrupção é sistêmica, nenhum político presta, vamos resolver sem eles.

A tese que o senhor defende é que a imprensa percebe as inquietações e insatisfações populares, apropria-se das mobilizações e aproveita para propor um novo discurso?

Isso. E foi muito eficiente essa estratégia. No dia 12 de junho, Arnaldo Jabor, colunista da Globo, faz comentários que inflamam a opinião pública. Pouco depois, um repórter da Folha de São Paulo é atacado e, somando acontecimentos assim, a imprensa vai ajustando o discurso para uma grita anticorrupção e moralizante. Teve também a PEC 37, que virou a queridinha das notícias. Em nenhum país democrático do mundo a investigação se dá como a PEC propunha. É um endurecimento, uma brutalização. Aí, na prática, o que estava pairando abstrato nas cabeças e nos desejos da classe média vira realidade: o país estava na lama e precisava ser limpo e resgatado.

E há outro aspecto: as manifestações começam no âmbito municipal…

E terminam no federal. As manifestações, que eram bem localizadas e pontuais, rapidamente se transformam numa demanda nacional. E é nesse ponto que eu falo que a mídia teve papel fundamental. Ela capta as insatisfações e transforma num discurso que a interessava. Veja, não eram os jovens que pediam o fim do governo Dilma. Foi a imprensa quem entendeu que essa era uma janela de oportunidade e cravou esse discurso. E a população topa e amplifica esse pedido. É importante ressaltar o aspecto violento dessa passagem. Violento do ponto de vista simbólico, já que estava sendo pedida a derrubada de um governo democraticamente eleito. Mas havia também a violência real. Todo o aparato de repressão do Estado é usado contra os manifestantes. Lembre, a polícia cercou, bateu, jogou bomba, prendeu. Apenas quem defendia o fim do governo é que foi poupado. Nem a imprensa escapou. Isso criou um clima de tremenda instabilidade e aprofundou o discurso pelo fim do governo Dilma.

O que o senhor está sugerindo são outras nuances da velha luta de classes?

Exatamente isso. O que estou dizendo é que a velha elite de sempre se aproveita de um momento de efervescência social, se alia à imprensa – que é sua porta-voz – e consegue difundir um discurso que a interessa: fim de um governo que ousou mexer minimamente, repito, levemente, nos privilégios desse grupo. Repare, todas as classes sociais enriqueceram sob os governos de Lula, mas a elite não admite que a distância entre ela e as classes mais baixas diminuam. Estou lançando um livro chamado A elite do atraso, que fala exatamente desse grupo que paira sobre o poder do país desde a colonização. Minha tese principal é que não viemos de Portugal. Viemos da escravidão e isso cria uma série de relações que se mantém até hoje, a começar pela secção entre duas classes totalmente antagônicas. Uma branca e outra negra, uma a ser servida e outra que serve. Uma livre e outra que precisa comprar a liberdade e a cidadania. Junto com isso, organizações sociais absolutamente desiguais, que fazem as famílias dos pobres serem sempre quebradas, desconstruídas, um padrão que se mantém até hoje e que gera infinitas mazelas.

O senhor acha que é a mesma elite?

A mesma. Ela defende um pacto antipopular, em nome da manutenção de seus direitos e privilégios, mesmo que isso implique falta de direitos para as outras camadas. É uma classe de rapina de curto prazo, que pouco se lixa para o projeto de país ou para a construção do futuro. Ela quer o dinheiro agora e a distância dos pobres. E, para a manutenção de tudo isso, sempre usou um sistema educacional que forma pessoas que não pensam e o aparato midiático. Estamos, portanto, falando das mesmas práticas e da mesma elite. E, como estamos falando para professores, convém lembrar que um dos pontos nevrálgicos que a classe média não engoliu foi a entrada dos pobres na universidade. O estudo, para essa elite, é algo prestigioso, que diferencia, e os programas como ProUni e Fies colocaram em pé de igualdade ricos e pobres. Um acinte, na visão da elite do atraso. Passamos de 3 milhões de universitários para 8 milhões, um número nunca antes alcançado.

Naquele junho de 2013 o país vinha “engolindo” uma série de outros acintes, como a aprovação da Lei das Domésticas.

Bem lembrado. A Lei das Domésticas afronta aquele pacto escravocrata que falei antes, as universidades cheias de pobres, os aeroportos transformados em rodoviárias. Tudo isso incomoda bastante. Mas até as manifestações, os incômodos eram pré-políticos e, embora a elite sentisse e se incomodasse, não pegava bem trazer a público. Quando a mídia vira o foco do discurso e das manifestações e transforma – como sempre na história do Brasil – em crise moral, de valores, em escândalos de corrupção, aí a elite nada de braçada, abraça a causa e vai às ruas.

A prefeitura de São Paulo foi ineficiente? Se tivesse negociado com o Movimento Passe Livre logo no início dos protestos, o rumo teria sido outro?

O “se” não faz história e a gente chega perto da futurologia. Mas acho, sim, que se o prefeito tivesse sido um pouco mais hábil e tivesse chamado os manifestantes, Passe Livre, estudantes, para negociar, as manifestações não teriam ido em frente e os caminhos teriam sido outros. Não sei se o desfecho seria diferente, a elite e a imprensa queriam o fim do governo Dilma, mas os rumos seriam diferentes. Mas penso que hoje a gente já enxerga com mais clareza o monte de mentiras que nos impuseram. A briga pela PEC 37 deu na Lava Jato, que tinha um foco claro e cumpriu um papel de desmontar o PT e criminalizar as lideranças de esquerda. A Petrobras é desmontada e o país perde a autossuficiência e a autonomia na produção de petróleo; o discurso da corrupção localizada num partido e num grupo se desmonta, basta olhar o governo Temer; o Rio de Janeiro vai à falência; e milhões de empregos são perdidos.

Por que a corrupção do Temer é tolerável e a do PT precisava ser combatida a qualquer custo?

Essa é mais uma mentira que tentam fazer a população engolir. Só que as pessoas não são imbecis, não nascem imbecis. A tentativa é, o tempo todo, mostrar que a política é, por si só, a razão e a causa da corrupção. E não é verdade. A corrupção acontece quando a economia quer comprar a política. Quando o mercado quer dominar a política, um dos caminhos é a corrupção. Imagine então o que acontece quando o Estado não regula a economia. Vira uma terra sem dono. E, nesse momento, as pessoas sabem que essa é a luta: a economia tentando engolir a política. Outro discurso imposto e comprado pelas elites é algo muito brasileiro: a criminalização da igualdade social. O crime do PT foi trabalhar minimamente, reformando pontualmente, nada grandioso, a desigualdade social. Essa ação, a mídia carimba como criminosa. E, assim, o partido político vira sinônimo de quadrilha.

Um discurso perigoso porque abre espaço para outras violências.

Abre espaço para figuras como Jair Bolsonaro, que é filho legítimo do casamento da Rede Globo com a Lava Jato.

Na sua avaliação, quais são as conexões que podem ser estabelecidas entre as Jornadas de 2013, a eleição de 2014 e o golpe de 2016? Essas costuras são possíveis?

As manifestações de junho são a janela de oportunidade para a mídia conservadora plantar sua semente, seu discurso retrógrado, antidemocrático e perigoso. A elite do atraso compra esse discurso e toma um susto ao ver que a população elege Dilma e não Aécio. Desde o dia da eleição, a mídia e a elite trabalham para derrubar o governo. Não admitem essa derrota e aprofundam, com a Lava Jato, o discurso que criminaliza o PT e seu governo. Durante um ano e pouco, o governo Dilma se segurou como pôde, até que veio a invenção das pedaladas e não foi possível segurar. Em 2016, ela é derrubada e assume o grupo que se afina com o projeto da elite e da mídia. Acontece que nem tudo vai a contento, talvez o presidente Temer não seja rápido o suficiente para os planos do grande capital. Junto com o discurso anticorrupção, se aprofunda o ódio ao pobre, transmutado em reforma da Previdência e reforma trabalhista.

E como pensar o cenário político atual, considerando que muitos movimentos e situações que estamos enfrentando têm, de acordo com sua percepção, raízes lá em 2013?

Vejo exatamente assim: tivemos um movimento que foi cooptado e que abriu espaço para essa situação de extrema violência que vivemos hoje. Violência policial sobre qualquer manifestação popular; violência das reformas que estão sendo impostas e que vão causar sofrimento e miséria a boa parte da população; o PT foi dizimado e os movimentos de trabalhadores foram detonados juntos. Sindicatos e centrais estão bastante enfraquecidos. A cruzada moralista ganha força – apoiada nos setores mais conservadores das religiões, que estão presentes no Congresso Nacional, e as mentiras que sustentam esse discurso todo.

Mas a população não continua se organizando e resistindo? É fato que temos uma parcela mais à direita, com Brasil Livre e Vem pra Rua; mas, por outro lado, o MTST, o Povo Sem Medo, a Frente Brasil Popular e as centrais sindicais, para citar apenas alguns atores, seguem sustentando agendas e lutas à esquerda.

A população tem uma dinâmica própria e, apesar de tentaram calar e esvaziar as ações de alguns grupos, até com violência policial, isso não funciona bem. O que essas articulações têm em comum é que elas estão além dos partidos políticos, portanto esse discurso que criminaliza a política deu algum efeito, sim. Os movimentos de trabalhadores também não têm muita força no momento, são pouco ouvidos pela mídia, pela população em geral. Existem, mas estão escanteados. Tudo isso é reflexo dessa martelação contra a política tradicional. No meu entendimento, não gosto muito de prever o futuro, mas apesar de todo esse cenário construído sobre mentiras, acredito que a direita não ganharia a eleição. As pessoas não são imbecis e sabem que estamos ouvindo mentiras de todos os lados, por isso, se houver eleições democráticas e limpas em 2018, essa turma que está aí não ganha, porque não tem discurso para convencer a população. A fraqueza da população está no poder econômico, que quer comprar a economia, a política, a Justiça e que tem força para fazer pressão.

 

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