Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Embora ainda restem muitas indagações a respeito do que aconteceu naquelas gigantescas manifestações de rua e sobre quais placas tectônicas foram movidas, é possível afirmar que as jornadas de junho de 2013 exigiam – ao menos em sua origem e primeiros movimentos – maior participação dos cidadãos nos processos políticos e a radicalização dos princípios e mecanismos de funcionamento da democracia, além de políticas públicas (transporte, educação, saúde…) mais amplas e de qualidade. Essa agenda inicialmente progressista, no entanto, sobretudo nas últimas passeatas e atos públicos que marcaram aquele momento, viu-se obrigada a disputar espaço com pauta fortemente conservadora, uma onda à direita que chegou inclusive a defender o fim dos partidos políticos e que batia forte nos movimentos sociais e nos direitos humanos. Na tentativa de oferecer respostas aos gritos múltiplos que vinham das ruas, uma das medidas sugeridas pelo governo federal foi a cantada em verso e prosa Reforma Política.
Na verdade, a ideia não é nova, desde meados dos anos 1990 – portanto pouco depois da promulgação da Constituição de 1988 – especialistas e parlamentares levantam a necessidade de alteração de alguns processos e caminhos do sistema político nacional, para que estejam mais sintonizados com as demandas da sociedade contemporânea e para que alguns desvios renitentes possam ser corrigidos, como o número excessivo de partidos e o modelo de financiamento de campanhas. “Nenhum financiamento é na base do samaritanismo. O empresário doa e, se o candidato ganhar, ele cobra a fatura depois, vai querer facilidades, porque ajudou a eleger aquele candidato. Funciona assim”, explica o cientista político Francisco Fonseca, professor da Fundação Getúlio Vargas e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC-SP.
O professor arrisca uma analogia e destaca que, da mesma forma como as manifestações de junho/13 nasceram abrigadas na esquerda, com bandeiras mais progressistas, e terminaram abraçadas e comandadas por uma direita até então envergonhada, a reforma política que está em curso no Congresso parece seguir essa mesma dinâmica. Hoje, em vez de radicalizar a participação popular, colocar os políticos a serviço da população que representam, frear as brechas para a corrupção, “a reforma que está se construindo institucionaliza a doação privada e, portanto, favorece a corrupção, energiza os grandes grupos econômicos e, o que nos preocupa muito, tem um verniz conservador e de desrespeito aos direitos civis muito intensos, além de estar sendo tocada sem nenhum debate com a sociedade”, alerta, em entrevista exclusiva à Revista Giz.
Ao lado, o leitor acompanha os melhores trechos da conversa com o professor da PUC-SP e da FGV.
Nota do Editor: A entrevista com o Prof. Francisco Fonseca foi realizada antes da manobra regimental utilizada pelo presidente da câmara, Eduardo Cunha, para aprovar a redução da maioridade penal. Isso torna o seu conteúdo ainda mais necessário de ser lido.
Professor, em linhas gerais, como o senhor avalia essa reforma que está sendo discutida e votada na Câmara e no Senado?
A primeira característica é justamente que ela está sendo votada e discutida sem o debate com a sociedade, com os grupos que se organizam, como o Movimento pelo Combate à Corrupção e o Movimento pela Reforma Política, que são significativos. Também não discutem com Ordem dos Advogados do Brasil, com redes sociais, com centrais sindicais. Ela está sendo feita de dentro do Congresso, sem ouvir quase ninguém e, mais grave, votando uma série de questões que são extremamente polêmicas, que não têm consenso. Em outras palavras, o Congresso Nacional, principalmente a Câmara, na figura do seu presidente, Eduardo Cunha, representa a simbologia marcante do autoritarismo, inclusive de manobras de chegar até o Supremo. Ele foi derrotado numa primeira votação (sobre financiamento de campanhas) e recolocou aquela matéria em votação, uma manobra ilegal e imoral. Temos então dois problemas: primeiro, quem acompanha pelo rádio e pela TV sabe quase nada, porque, no Brasil, a mídia desinforma, a grande mídia informa nada e ninguém. Outro nó é que o Congresso Nacional não está debatendo com ninguém, é um jogo de elites.
Mas por que se faz uma reforma política assim? Quais são os interesses que estão em jogo?
Quem ganha com isso? As elites, que vão continuar financiando partidos e candidatos. E esse financiamento não se dá por razões samaritanas. O que acontece essencialmente é que uma empresa financia um candidato ou um partido político e depois cobra a fatura. Depois esse partido se elege e o governo tem de devolver o que foi ali investido. Isso vai criando um circuito vicioso de privatização da vida pública brasileira. E nesse cenário é que precisamos de grandes coalizões. Dos mais de 30 partidos, só 14 governam, partidos não representativos, quantos de fato são representativos de linhas de pensamentos e grupos sociais relevantes? Quem se beneficia de fato são as elites econômicas e quem já têm o poder.
O Congresso Nacional, principalmente a Câmara, na figura do seu presidente, Eduardo Cunha, representa a simbologia marcante do autoritarismo, inclusive de manobras de chegar até o Supremo.
Trocando em miúdos, professor, quem se beneficia diretamente e o que está mais especificamente em disputa?
As grandes reformas, como a reforma agrária, não se faz. O orçamento, colocar o orçamento na agricultura familiar ou naquilo que leva a comida de fato aos brasileiros, e não no agronegócio, não se faz. A dívida interna, que paga os rentistas, 20 mil famílias dominam a dívida interna, isso é um debate que precisa ser feito no Brasil, não se faz. A reforma da mídia, com o controle social, não se faz. O combate à propriedade concentrada, tal como a Argentina fez, não se faz. A reforma tributária com taxação das grandes fortunas, não se faz. Quem paga imposto no Brasil é o pobre.
E quando o senhor fala das elites, está se referindo a quem, a que setores ou forças da sociedade?
Ao agronegócio, aos banqueiros, a mídia, a Fiesp. Não estou falando do dono de uma papelaria, ou mercadinho. Estou falando dos grandes interesses, que movimentam os capitais, os players poderosos.
E a reforma política como está sendo feita privilegia esses grupos?
Esses grupos estão dando o tom da reforma e ficaria pior ainda, porque se a reforma política passar (há ainda segunda votação na Câmara e apreciação pelo Senado), vai institucionalizar o financiamento privado de campanha. E, tudo isso, dentro de um contexto maior, em que o discurso é de que o Brasil está avançando, que finalmente está fazendo a tal reforma política tão almejada.
A terceirização. É a completa precarização, professor vai virar pessoa jurídica, vai ter cooperativa de professor. […] É o fim da CLT claramente.
É preciso ainda contextualizar e refletir sobre outras medidas aprovadas recentemente pelo Congresso ou em processo de apreciação.
Sim, são muitos fatores relacionados. Começa pela terceirização. É a completa precarização, professor vai virar pessoa jurídica, vai ter cooperativa de professor, seres humanos perfeitamente substituíveis. É o fim da CLT claramente. Junto com isso, a redução da maioridade penal que está sendo discutida e votada, como se prender meninos e meninas de 16 anos fosse resolver o problema da segurança no Brasil, sem mexer no sistema judiciário e prisional; liberar, como estão querendo, as prisões privadas. É um conjunto de questões confluentes. É o impedimento da diversidade das famílias, a não criminalização da homofobia. Não é um elemento, são muitos, conjugados. Todos eles atendem ao setor empresarial e a setores conservadores, inclusive do ponto de vista moral e de direitos civis. Clínicas de aborto ganham muito dinheiro com abortos legais e ilegais e 20 ou 30 mil mulheres morrem por ano com abortos clandestinos. É um conjunto de alianças que passam por questões econômicas, com um verniz de retrocesso de direitos civis.
Especialistas ligam essa reforma que a gente está vendo agora com as manifestações de junho de 2013. No entanto, as bandeiras levantadas lá não parecem estar tremulando aqui. Como o senhor analisa essa relação?
Me parece que o que aconteceu em 2013 tirou do armário uma direita até então envergonhada. Todo mundo já sabia e as pesquisas do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), do Instituto Latinobarómetro, entre outros, já identificavam um pensamento conservador muito vigoroso no Brasil. E cada um de nós, empiricamente já tinha vivenciado, na vida privada, ao menos um parente ou amigo com pensamento bem conservador. Até aquela pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) que foi e voltou e deu confusão, mostrava que, a cada dez brasileiros, incluindo mulheres, seis acham que uma mulher pode ser estuprada se estiver com uma roupa assim ou assado, que está pedindo, como se estupro fosse uma coisa normal. Um conservadorismo gravíssimo. Homossexuais mortos, preconceitos da polícia contra a sociedade civil. Tinha alguma coisa no ar e algumas estatísticas mostravam essa tendência. Mas as jornadas de 2013 é que tiraram essa direita de vez do armário. As manifestações começam com uma pauta à esquerda, mas a direita, que era meio envergonhada e que não tinha um canal de expressão, que nunca foi à rua, de repente se sentiu fortalecida e foi para a rua naquele momento. Eu gosto de chamar de jornada polifônica. Começou com pedido para redução da passagem, pelo MPL, e foi apropriada pelos mais diversos grupos. Tornou-se polifônica, os grupos de esquerda saíram e quem pegou a bandeira foi essa direita mais reacionária e mais empresarial.
E que não quer discutir.
Uma direita fascista. Eu diria que o Brasil está num processo de fascistização. Os casos de hostilização de políticos, de pessoas de vermelho, a presidente é hostilizada, as pessoas batem panela. A fascistização não é só ideológica. Ela está na prática e na vida e é uma reação a uma série de avanços sociais. Por exemplo: acesso à universidade com ProUni e Fies; passagem de avião e viagens; pobres estão comprando carros, pedreiros vêm trabalhar de carro e ninguém estava acostumado com isso. E olha que o governo Lula e o governo Dilma foram moderados. E não foi um governo ruim para as elites, que continuaram ganhando muito dinheiro. Não foi ruim. Nenhuma grande reforma foi feita no Brasil. Foram feitas reformas incrementais: a valorização do salário mínimo, a incrementação do SUS, programas de moradia, o poder de compra da cesta básica. Mas ainda assim é muito pouco. Para ter ideia, o Bolsa Família gasta, por ano, 25 bilhões de reais. Os juros da dívida interna consomem 250 bilhões. Dez vezes mais. Sendo que o Bolsa Família atinge 70 milhões de brasileiros e a dívida interna está na mão de 20 mil famílias. Ainda assim, a classe média não quer isso.
A impressão é que não há força no Congresso capaz de impedir esse processo. O governo está enfraquecido.
O Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) já identificou que este é o Congresso mais conservador desde 1964. Esse é um dado que é reflexo de 2013 e dessa reação das elites. De fato, à esquerda cabem as ruas. À esquerda e a algumas instituições, como setores do Ministério Público, OAB, Defensoria Pública. À esquerda cabe greve, manifestação, abaixo-assinado, paralização. Se for depender de instituições, tudo será engolido. Com privatizações e tudo que já conversamos antes. Se não se mobilizar, a próxima eleição já pode ser o prenúncio de uma derrota muito expressiva e com retrocessos.
Voltando à reforma, o Senado sinaliza que não vai votar exatamente como a Câmara dos Deputados. Essa é uma tendência? Ou não devemos esperar grandes diferenças?
O Senado não é muito diferente da Câmara e, tradicionalmente, é até mais conservador. A eleição para o Senado é majoritária, o mandato é de 8 anos, os estados são muito conservadores, porque tem ex-governadores. Eu não apostaria numa mudança não. Talvez uma revisão, tendo em vista o papel dos trabalhadores. Na votação da terceirização, a diferença entre a primeira e a segunda votação caiu muito. Era de mais de 200 votos, caiu para 23. As centrais sindicais começaram a espalhar as fotos de quem tinha votado contra os trabalhadores. Se não tiver mobilização, tudo passará muito tranquilamente. A questão é a capacidade de mobilização, de protestar das formas mais diversas, de denunciar.
As reformas atingem diretamente os professores, que perderão muitos direitos. Além disso, num país em que o cidadão participa pouco e que o controle social é baixíssimo, a aplicação das políticas públicas depende de quem está no poder.
Ainda se pode contar com essas estratégias? A capacidade de mobilização parece tão enfraquecida.
Isso é sazonal, num momento é de alta e no outro é de baixa. A esquerda hoje está nas cordas. Quem está na rua são os conservadores e a elite, que não são a maioria, embora tenham os aparelhos ideológicos nas mãos, sobretudo a grande mídia. Mas o jogo pode ser virado, porque o que as oposições oferecem não é eleitoralmente muito atrativo. O que me parece que pode acontecer, e não seria a primeira vez no Brasil, no cenário presidencial, é o famoso aventureiro.
Para encerrar, cabe reforma política na sala de aula, professor?
Cabe sim e na sala dos professores também. As reformas atingem diretamente os professores, que perderão muitos direitos. Além disso, num país em que o cidadão participa pouco e que o controle social é baixíssimo, a aplicação das políticas públicas depende de quem está no poder.
Então para dirimir essa pouca participação, a educação para a cidadania é sempre um bom caminho.
Porque ensinaria o papel e a força do cidadão. Porque não tem voto errado, mas tem que ter voto consciente, que entende como funciona a política, e um voto que cobra o representante, seja individualmente, seja por grupos. Temos de politizar de maneira lúdica as crianças e os jovens para que eles optem por esse caminho da cidadania e da democracia.