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CulturaDestaque

Para escapar da pós-verdade

By 28/06/2018No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Na quarta-feira, 18 de abril, a jornalista e pesquisadora Pollyana Ferrari, que sempre navegou pelas esferas da comunicação e pelas especificidades do universo digital, lançou seu sétimo livro. Em Como sair das bolhas (Educ e Armazém da Cultura), a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) continua fiel às suas preocupações e investigações acadêmicas e sugere uma cruzada de enfrentamento a um dos principais perigos do nosso tempo, quando o assunto é o direito à informação: a chamada pós-verdade. “Estávamos em 2016 e começaram a aparecer os escândalos ligados à eleição do Donald Trump, nos Estados Unidos, então o mundo estava de olho nessa questão das fake news. Assim, no livro, minha pergunta fundamental é: como chegamos a uma época em que o desejo e a convicção falam mais alto que os fatos?”, começa a explicar a autora. Fruto da pesquisa de pós-doutorado feito na Universidade da Beira Interior, em Portugal, a obra passeia pelo jornal Público, de Portugal, além da Agência Lupa e do jornal O Globo, ambos aqui do Brasil. “Comecei olhando para as fake news da área política, porque era a grande discussão daquele momento, e acabei chegando num cenário combinado de redes sociais e bolhas”, continua.

As bolhas a que Pollyana se refere são, talvez, o ambiente mais rico e fértil para a disseminação das fake news que alimentam a pós-verdade. São, segundo a jornalista, um microcosmo digital no qual todas as pessoas que eu sigo e que me seguem pensam exatamente como eu. “Esse fenômeno é provocado pelo usuário das redes sociais, que vai seguindo quem interessa e bloqueando quem é divergente, e ainda pelos tais algoritmos, que escolhe pela pessoa o que é adequado para ela, segundo dados colhidos do perfil na própria internet”, conta. Esse cenário traz duas grandes mudanças imediatas na compreensão do mundo: reforça as crenças que a pessoa já tinha e, mais preocupante, leva a pessoa a entender aquele painel, o microcosmo, como traço absoluto e inconteste de verdade. “Se eu recebi a notícia, se estão falando disso, é porque é verdade”, analisa Pollyana.

De acordo com as pesquisas feita tanto no Brasil quanto em Portugal, a autora mostra que há dois públicos mais sensíveis à pós-verdade: jovens e idosos. São essas duas faixas que mais disseminam as fake news e que menos avaliam as consequências ou se questionam sobre a veracidade daquelas informações. “Os adolescentes já nasceram na cultura digital. Então, para eles, o que está na rede é real, é verdade. E são filhos da liberdade de expressão, uma terra em que tudo pode ser dito, porque é minha opinião”, propõe. E segue: “A terceira idade não pode acreditar que alguém produziu um texto, um áudio ou um vídeo mentiroso, mas tão real. Não foram treinados para perceber essas sutilezas e compartilham sem muitos filtros”.

Neste ponto, Pollyana toca em dois alicerces do tempo atual: a educação falha para conviver com o diferente e respeitá-lo e a descrença nas instituições que, no passado, propunham o ideal de verdade. Os dois traços se aplicam aos públicos que mais disseminam a pós-verdade, mas também resvalam nos adultos, que estão na faixa intermediária. O primeiro nó aponta para uma intolerância com a diversidade que está falsamente ancorada numa leitura enviesada do direito de opinião. “As pessoas acreditam que algum grau de violência para tirar do caminho quem pensa e age diferente é aceitável, porque todos têm direito à liberdade de expressão. Veja que contrassenso, a minha verdade é justificada, a sua não, então eu posso eliminar você”, defende a professora, a partir do que encontrou nas pesquisas. Ela continua: “O segundo traço indica que quanto mais cresce a desconfiança nos jornais, na escola, no professor, na Justiça, no Congresso, nas fontes que oferecem os fatos e argumentos, mais cresce a produção de notícias falsas. E as pessoas não têm arcabouço para peitar, para questionar. Acreditam e espalham”.

O que a pesquisadora entendeu logo é que o público atual tem um apreço especial por realidades construídas. A blogosfera, os anúncios Adsense (aqueles que as plataformas entendem que são os nossos interesses, a partir da navegação que construímos na internet) e os algoritmos são elementos que forçam a implosão dessa fronteira entre real e invenção, e os usuários de internet respondem a esse dilema com entusiasmo, desde que a realidade seja a imagem e semelhança dos seus desejos. O que não é agradável, fica fácil resolver: dá para apagar, bloquear e deixar de seguir.

Por tudo isso, a proposta de Pollyana é enfrentar a pós-verdade via educação. É isso que Como sair das bolhas oferece. “Uma educação para a cidadania e para a ética, na qual a informação de qualidade e de interesse público seja a principal fonte. Para chegar nela, o usuário precisa saber questionar, duvidar, pesquisar e reconhecer as fontes mais seguras. Tem de saber que não pode compartilhar qualquer coisa”, sugere. Essa educação se dá na escola? “Também, mas em casa é ainda mais importante. É preciso conversar sobre limites, sobre que a vida acontece fora das redes, sobre não descartar e bloquear amigos porque eles não interessam mais”, aponta. Especificamente para os jovens, é importante ensinar, sugere a autora, que quando a plataforma é gratuita, a mercadoria é o próprio usuário. E é preciso se indignar e não aceitar ser produto.

Para ela, a falta de credibilidade nas instituições pode ser trabalhada no almoço, ou na sala de aula, porque nasce de uma formação que exige comportamento ético e humano, acima de tudo. “Dificilmente o ambiente da pós-verdade vai mudar, ou as fake news vão parar de circular, então é preciso preparar o cidadão para ler, pensar, checar e não ter um comportamento de robô que reproduz apenas o que leu só na manchete”.

É sabido que, no jornalismo clássico, que atende ao direito à informação de interesse público, essas etapas acima são cumpridas, por isso o consumidor das notícias pode confiar que ali está um dado apurado, confrontado, questionado e analisado. O problema é que essa prática não existe na produção das fake news, mas é simulada (exatamente para conquistar o verniz de ‘verdade’), e o público – despreparado – acredita. E não questiona nada. “Não é mais jornalismo, embora use a forma do jornalismo, o jeitão das notícias. É um outro tipo de produto que se passa por jornalístico, mas está longe disso. Tem sempre dinheiro envolvido e alguém recebendo as luzes do holofote”, alerta Pollyana.

A internet, ela lembra, possibilitou que qualquer pessoa tenha voz para expor suas ideias e pensamentos, os meios de captação e divulgação se popularizaram e caíram no gosto dos usuários. “Democratizar os canais é excelente, sair do monopólio dos grandes grupos de comunicação é excelente, mas essa ocupação da rede não levou consigo os princípios da apuração, da honestidade, dos valores públicos. Ela inventa realidades afinadas com a opinião do receptor e não com o factual”, analisa a pesquisadora.

Ato contínuo, o que deveria ser absorvido criticamente como informação é engolido mecanicamente como entretenimento. “Isso é avassalador e terrível, porque a responsabilidade, o compromisso, frente à produção e divulgação de notícias é diferente da responsabilidade e do compromisso frente à produção de, digamos, conteúdos”, compara. E é aqui que a realidade muda de figura. Fake news – ou bullying, para citar outra forma de interação presente na web – sempre existiu, mas o alcance mudou. Agora, o conteúdo chega aceleradamente a muito mais gente, em termos de quantidade mesmo – e a um público ávido por aquelas notícias, enviesadas e afinadas com seus desejos. “O resultado é avassalador, porque a escala mudou e isso muda tudo”, preocupa-se Pollyana.

Por isso mesmo, a professora da PUC-SP desconfia que as eleições de 2018 no Brasil serão bem conturbadas. A produção de notícias falsas estará a mil, os robôs e os algoritmos vão trabalhar diuturnamente e separar o que é real nisso tudo vai ser difícil para o cidadão comum. “Piora ainda mais, porque no Brasil vivemos uma crise de credibilidade em relação às instituições que historicamente sustentam o processo democrático, como o equilíbrio entre os poderes, a imprensa livre e o direito à manifestação”, ela alerta.

No entanto, a mensagem de Como sair das bolhas é positiva e cheia de esperança, porque aponta um caminho para enfrentamento que dá resultados, garante a autora. “Ainda temos tempo de retomar e de investir na educação para a ética do cidadão, que se baseia nas velhas regras de convivência para escaparmos da barbárie, sempre na tentativa de aprofundar a experiência da civilização, da humanização”. O primeiro passo, indica a autora, é questionar, duvidar. Depois, é buscar a fonte. E, por fim, só compartilhar – seja nas redes, seja na vida real – se a fonte for confiável e sempre dando os devidos créditos.

Cultivar a desconfiança, portanto, pode ser um bom antídoto.

 

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