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Cultura

Para compreender os rolezinhos

By 31/01/2014No Comments

Por Elisa Marconi e
Francisco Bicudo

Embora a intenção primeira dos adolescentes das periferias que se reúnem nos shoppings da cidade para se divertir, paquerar e zoar não seja especificamente fazer política, eles não deixam – de alguma forma – de exigir seus direitos de cidadania. E, dessa maneira, acabam provocando debates acalorados e relevantes e gestando reações políticas. Essa é uma das interpretações sugeridas pelo antropólogo Alexandre Barbosa Pereira a respeito dos rolezinhos. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele estuda há anos a juventude, seus desejos e manifestações, e está ajudando a compreender com fôlego e profundidade o já célebre fenômeno que vem aquecendo ainda mais o verão paulistano. Segundo ele, o que os jovens dos rolezinhos querem “é ocupar um espaço na cidade, serem reconhecidos como protagonistas da sociedade de consumo”. A Revista Giz conversou com exclusividade com o especialista – e os melhores trechos da entrevista você lê a seguir.

Professor, como o senhor define esse fenômeno chamado rolezinho?

Esse fenômeno, chamado de rolezinho pelos próprios meninos, surgiu como um encontro de jovens com o objetivo inicial e final de os adolescentes se divertirem, paquerarem ou zuarem, como eles dizem. Acontece que teve uma reação muito negativa dos shoppings e da polícia, o que gerou uma série de desdobramentos políticos. É um encontro num lugar de prestígio e de segurança, que é o shopping.

E por que justo no shopping? É uma escolha proposital e até provocadora por parte dos adolescentes?

Acho que a ironia provocadora é subjacente a esse encontro e aos jovens. Mas não necessariamente de confronto, de contraposição. Existe uma onda, que nem é nova, que é o funk ostentação, que muitos deles ouvem e que falam de marcas, de consumo, de roupas de marca. E os jovens querem fazer parte desse espaço de prestigio, de consumo, querem esse prestígio social. A sociedade diz o tempo todo para esses jovens para eles consumirem. E eles querem existir, querem fazer parte, tudo isso via consumo. Daí ser um shopping. Não haveria lugar mais apropriado para o consumo.

E tem uma questão aí – que reflete na escola e por isso é importante discutir – que é como a sociedade adulta se coloca frente aos jovens e adolescentes. Há uma crise da autoridade adulta que reflete na condição desses jovens

Se não é uma afronta ao consumo, ao contrário, por que foi tão mal recebido pelos shoppings e pela sociedade?

A gente pode dizer várias coisas. São pobres da periferia de São Paulo, então é uma questão social. Tem uma questão racial, porque têm muitos negros e pardos entre eles. E tem uma questão geracional mesmo, porque são jovens. E tem uma questão aí – que reflete na escola e por isso é importante discutir – que é como a sociedade adulta se coloca frente aos jovens e adolescentes. Há uma crise da autoridade adulta que reflete na condição desses jovens. E a gente pode pensar também no modo como o primeiro rolezinho, lá no shopping Itaquera, foi reprimido pela polícia. Como ele foi noticiado pela imprensa?

Como arrastão.

Exatamente, então já se estigmatizou esses jovens como bandidos. Havia seis mil adolescentes lá e foram taxados de marginais.

Outro discurso que apareceu é o de que são jovens vagabundos, que podiam organizar rolezinhos para, por exemplo, capinar uns terrenos por aí… mas que isso ninguém quer fazer.

Exatamente. Não se fala isso para um adolescente de 15 ou 16 anos de classe média que esteja numa escola, estudando. Eles são adolescentes, não tinham mesmo que estar trabalhando, tinham de buscar formação. Então por que os pobres pardos da periferia deveriam, em tese, estar trabalhando? Essa relação de que o jovem pobre deve trabalhar para não trazer problemas para a sociedade precisa ser muito observada. Por que se fala isso? É preconceito mesmo. E sabe o que é mais irônico? Que essa é uma sociedade de consumo, que prega o consumo em detrimento da produção e do trabalho. Então esses jovens não só estão expressando isso como também estão sendo absolutamente coerentes com o que a sociedade prega.

Eu gostaria de voltar um pouco à fala do senhor quando diz que um encontro para diversão acaba tendo desdobramentos políticos. Que caminhos políticos se abriram com os rolezinhos?

É claro que isso vai gerar atrito e discussão, mas isso é próprio do processo democrático no espaço urbano e público. Sobre os diferentes posicionamentos políticos, embora os rolezinhos não tenham uma objetividade e uma reivindicação políticas – não era isso que se pretendia –, é uma manifestação eminentemente política. Eles quererem ocupar o espaço. Eu gosto de lembrar do filósofo francês (Henri) Lefebvre (1901-1991), que falava do direito à cidade, e dizer que, em última instância, o que está sendo reivindicado é o direito a se divertir na cidade pelos jovens. No limite é essa busca pelo espaço na sociedade. Me parece que, do lado de fora, tem muito aquela reação muito comum de se falar sobre a juventude pobre.

A sociedade diz o tempo todo para esses jovens para eles consumirem. E eles querem existir, querem fazer parte, tudo isso via consumo. Daí ser um shopping. Não haveria lugar mais apropriado para o consumo

E qual é?

Coloco em três fases: apontar o jovem pobre da periferia como herói, como vilão, ou como vítima. As reações políticas que vimos têm muito a ver com isso. Uma parcela mais conservadora tratou como vilão, bandido e a polícia tinha que bater. Classifica como maloqueiro e é até preconceituosa. Aí a gente tem uma clivagem da parte vista como mais progressista. Uma parte vê esses jovens como vítimas alienadas do sistema, que aderiram à sociedade de consumo. Os meninos seriam só marionetes. E essa também é uma crítica bem conservadora, de não encontrar nesses meninos nenhum protagonismo. E uma terceira parte, que foi quem mobilizou os rolezinhos, os tem como heróis, como se estivessem fazendo um tipo de ação revolucionária, contestando. Fazem conexões até com as manifestações de junho.

Mas o senhor acha que alguma dessas vertentes ajuda a explicar?

Nenhuma. O que explica é esse desejo jovem de ter algum protagonismo, principalmente entre os pares, de classe social muito próxima.

Chama a atenção que uma sociedade que tanto busca a fonte da juventude seja também aquela que reprime enfaticamente uma movimentação genuinamente jovem.

Mas esse discurso do eternamente jovem não prega qualquer jovem, não é neutro isso. Para ser esse jovem que a sociedade prega, precisa ter algum poder de consumo para ter um iPad, fazer academia, ir para o bar, para a balada da moda, ou mesmo para o shopping. Quem foge desse padrão é criminalizado, está fora, e a gente volta naquele padrão que falei de criminalizar, do preconceito ao jovem. Se os jovens fossem brancos e ricos estariam produzindo um flashmob e não um rolezinho, diriam. O jornal O Globo deu, dias depois do primeiro rolezinho, que um encontro de jovens nos Estados Unidos – Flasmob – tinha acabado em confusão. Essa era a manchete. É o que a gente chama na antropologia de marcadores sociais da diferença. Gênero, raça, cor, classe social e lugar onde mora influenciam no modo como indivíduos são classificados socialmente. E eu acho que isso é o mais interessante nos rolezinhos. Eles revelaram, numa ação que era ingênua, de menino no shopping, profundas contradições sociais no país, que ficam meio escondidas. As pessoas negam, mas estão aí.

Os fenômenos que estão acontecendo nesses dias são, certamente, muito ricos e cheios de significados. Como um professor que passou o verão lendo e ouvindo falar de rolezinhos pode trabalhar essas questões em sala de aula?

Acho que a reflexão mais importante que ele pode levar para a sala de aula é: que sociedade é essa que nós vivemos no Brasil? Que questões de luta, de conflito a gente tem? Gosto muito do último livro do (Zygmunt) Bauman, Sobre Educação e juventude, em que ele diz que a gente tem que pensar cada vez mais numa educação para a diferença. Por causa das migrações e das novas tecnologias, estaremos cada vez mais em contato com o diferente. Então estar educado para o diferente, se tem intolerância, conflito, é lidar sem violência. O grande ensinamento que se pode tirar disso é como pensar essas diferenças no nosso país e como pensar isso com esse jovem que vive as múltiplas diferenças. Tudo isso serve para estudar a violência, mas também a relação dos próprios jovens na escola. Pensar a diferença e o que implica o respeito à violência é fundamental para o professor trabalhar.

Os rolezinhos revelaram, numa ação que era ingênua, de menino no shopping, profundas contradições sociais no país, que ficam meio escondidas. As pessoas negam, mas estão aí

Surpreende também que a parcela da sociedade que, ao menos topa discutir o rolezinho, só queira fazê-lo depois de baixar regras. Mas, ora, como você pode impor regras para um movimento sem líderes, espontâneo e justamente de diversão e zueira… As regras matam a natureza do encontro, não?

Acho que falta muito é ouvir o jovem. Com essa crise de autoridade, falta aos adultos mostrarem que mundo foi esse em que eles viveram, até para os jovens pegarem aquele espaço e refazerem. Mas para isso, os adultos devem, primeiro, refletir que mundo é esse. E há dificuldade. A reação dos meninos é justamente a essa falta de diálogo e à dificuldade de contato entre adultos e jovens. Essa é a chave para o professor.

Relações com as manifestações de junho?

A principal questão comum aos dois momentos é a briga pela ocupação do espaço da cidade, ou a criação de espaços de cidadania insurgentes, como diria o pensador norte-americano James Holston (autor de “Cidadania Insurgente”). Enquanto é negado o espaço de cidadania de muitos no país, alguns moradores – principalmente mais pobres – vão reivindicar a cidadania a qualquer preço, na marra: rolezinhos ou manifestações. Buscam um espaço de reconhecimento, de espaço de convívio entre os jovens na cidade. E todos temos o direito à cidade, à cidade inteira e suas múltiplas expressões. É importante mesmo pensar e se perguntar: o que esses jovens querem e por que não podem ser igual a outros jovens da cidade?

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