Elisa Marconi e Francisco Bicudo
As notícias sobre uma epidemia causada pelo vírus ebola no extremo oeste do continente africano começaram a chegar à imprensa mundial no início de 2014, embora os primeiros casos, ainda isolados, já tivessem sido registrados em dezembro do ano passado. A partir daquele momento, os agentes internacionais de vigilância de saúde, liderados pela OMS – Organização Mundial de Saúde, acenderam o sinal de alerta, entendendo que a situação era mais grave do que se poderia imaginar e exigia esforços e atenções redobrados. Médicos de distintas nacionalidades estão atuando em Serra Leoa, Libéria e Guiné, principais focos da doença. Segundo a OMS, já são cerca de 1500 as vítimas fatais dos efeitos devastadores do vírus. O número é preocupante.
Descoberto em 1976 pela equipe de Guido van Der Groen, chefe do laboratório de Microbiologia do Instituto de Medicina Tropical da Antuérpia, na Bélgica, o ebolavírus é extremamente violento e tem alto grau de letalidade. Em entrevista à Revista Giz, o infectologista Stefan Cunha Ujvari explica que o vírus só é transmitido de humano para humano por meio de líquidos e fluidos corporais. “É diferente, portanto do vírus da gripe, o influenza, ou do H1N1, da gripe suína, que pode ser transmitido pelo ar, num espirro”. Isso significa que só se contamina quem tem contato com as secreções de alguém infectado. “Quem limpa o vômito, o sangramento, ou o suor de um doente, sem os cuidados necessários, pode sim se contaminar. Mas é importante que se perceba que não é tão fácil como uma gripe. Isso é o que garante que a epidemia não se espalhe como um rastilho e não mate mais pessoas ainda”, ensina o médico, que é autor de cinco livros sobre pandemias, vírus e história do mundo a partir das doenças – o mais recente deles é História do século XX pelas descobertas da medicina, em parceria com Tarso Adoni (Ed. Contexto).
“Certas doenças aparecem quando os seres humanos começam a avançar sobre as florestas e se instalar com grupos densos em espaços que antes não lhes pertenciam. A fixação de cidades sempre traz a chance de novas doenças. É o caso da dengue e também do ebola”
Não é a primeira vez que o ebola se espalha e mata várias pessoas de uma mesma região. Dados da OMS mostram que, além da infecção em massa relatada no ano de sua descoberta, quando matou 280 pessoas no Congo, mais recentemente, em 1995, 254 pessoas foram vítimas do ebola no mesmo país. A diferença dessa infestação atual para as anteriores, além do lugar diferente, é a quantidade de mortos. “As epidemias anteriores nunca mataram mais de 500 pessoas. O atual vírus, que é uma evolução daquele de 2004, não é mais letal. A infelicidade é que que a doença chegou pela primeira vez numa área muito habitada, numa grande cidade, e muito pobre e incapaz de conter sozinha a infestação por ebola”, alerta Ujvari.
O geógrafo Paulo Roberto de Moraes, especialista em geografia médica, é categórico ao afirmar que o ebola é o pior vírus que se conhece atualmente. “É de grau 04 e só pode ser estudado por laboratórios de grau 04 – que não existem no Brasil – e que são protegidos pelas Forças Armadas, tal é a gravidade da infecção causada por ele”. No entanto, nem todos os infectados morrem, explica Moraes, que é professor do departamento de Ciências do Ambiente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). No momento atual, está se buscando um medicamento que minimize os efeitos deletérios da ação do vírus. Mas, apesar de todos os avanços da medicina, o ebola continua a ser ainda um grande mistério para os cientistas. “Não conhecemos o ciclo completo do vírus. Não sabemos de onde vem. As pesquisas ainda não são conclusivas e isso é um problemão”, conta Moraes, autor do livro Áreas tropicais úmidas e as febres hemorrágicas (Ed. Humanitas).
O infectologista Ujvari concorda: segundo ele, em todas as epidemias, os cientistas sempre tentavam achar onde o vírus fica albergado. Ou seja, em que outro ser vivo ele pode viver sem matar o hospedeiro. Sabia-se já que os chimpanzés e os antílopes africanos podem morrer por causa do ebola e que os seres humanos que tinham contato com esses animais doentes também contraiam ebola e chegavam a morrer. “O que ainda não sabemos ao certo é onde esses animais tiveram contato com o ebolavirus. Há várias possibilidades, mas tudo indica que o vírus está nos morcegos que comem frutas. Os cientistas conseguiram isolar o vírus em três espécimes”, revela o infectologista, mas não sem antes avisar que é um número pequeno, inconclusivo. “As pesquisas seguem”.
Digamos que, de fato, se prove que o ebola mora confortavelmente e não prejudica os morcegos. Ainda assim, restaria a dúvida: como e por que chegariam aos humanos, uma vez que os mamíferos voadores em questão se alimentam de frutas. Talvez pelas secreções dos morcegos, que infectariam animais da floresta que, por sua vez, infectariam homens e mulheres e, assim, os matariam. Admitindo-se essa hipótese, o cenário que se desvela é complexo e cheio de implicações que vão além das avaliações médicas. Moraes e Ujvari reforçam que a epidemia por ebola precisa ser entendida como um fenômeno próprio do tempo em que vivemos e que as razões para essa perspectiva interessam – ou ao menos deveriam interessar muito – às escolas e aos professores. A atualidade desses aspectos pode ser trabalhada nas aulas por disciplinas como biologia, geografia, história, além de sociologia e matemática.
“O ebola só se espalhou e matou assim como estamos vendo por três motivos: um de ordem ambiental e dois de ordem social”, destaca o geógrafo. “Certas doenças aparecem quando os seres humanos começam a avançar sobre as florestas e se instalar com grupos densos em espaços que antes não lhes pertenciam. A fixação de cidades sempre traz a chance de novas doenças. É o caso da dengue e também do ebola”, completa. “A degradação ambiental faz sumir algumas doenças e faz aparecer outras. A população da África Ocidental que está sob ataque agora, na verdade tomou, no passado, um território que não lhe pertencia e agora convive com a infestação de organismos que são perigosos para a saúde”, completa o infectologista. Certamente, segundo eles, o desmatamento da vegetação que havia ali originalmente deve se ter aberto uma via de contato entre os humanos e o ebola.
“Hoje, os médicos do mundo todo já estão de sobreaviso. Se aparecer qualquer caso suspeito somos obrigados a notificar o Ministério da Saúde e a OMS e dar segmento ao tratamento com isolamento e estabilização do paciente”
A segunda razão, a primeira entre as causas sociais, é a condição de pobreza na qual vive a maioria da população atingida pelo ebola. “As condições de vida dessas pessoas são um fator primordial para entender a evolução da epidemia. Essa gente não mora em casas salutares em que se pode facilmente isolar um doente, os hospitais são precários, a medicação não chega. Além disso, os costumes locais, como o de abraçar os mortos, ou a apropriação dos objetos pessoais de quem faleceu, como roupas e colchões, facilitando o contato direto com o vírus, também precisam ser colocados na conta. Tudo isso contribui para o problema”, continua Ujvari. O médico não acredita que, neste caso, houve negligência da Organização Mundial da Saúde. Na prática, para se associar os casos individuais como uma epidemia é preciso algum tempo mesmo, é necessário fazer relações entre sintomas, condições prévias e eliminar a chance de serem outros vírus, outras doenças. Tudo isso, junto, facilitou a dispersão do ebolavirus e a morte dos contaminados.
Por fim, é marca do tempo em que vivemos que a circulação de pessoas e, portanto, de notícias, ideias e doenças seja tão eficaz e tão veloz. Um sujeito pode estar hoje na Guiné, se infectar com ebola, começar a incubar a doença sem perceber e amanhã estar num avião a caminho de uma cidade na Índia, onde terá contato com dezenas de outras pessoas, todas potenciais vítimas do ebola. Ou seja, a chamada globalização também atua sobre a trajetória e a gravidade das enfermidades.
E essa última característica da epidemia leva a outra pergunta que provavelmente uma boa parcela da população que acompanha os noticiários do lado de cá do Atlântico está se fazendo: tem chance de o Brasil enfrentar também uma epidemia por ebola? Novamente os dois entrevistados concordam: não tem.
“Hoje, os médicos do mundo todo já estão de sobreaviso. Se aparecer qualquer caso suspeito somos obrigados a notificar o Ministério da Saúde e a OMS e dar segmento ao tratamento com isolamento e estabilização do paciente”, tranquiliza o leitor o infectologista Ujvari. Isso dificulta muito a contaminação em massa. Além disso, a condição social e econômica do país garante a existência de centros médicos muito mais adequados e seguros para tratar possíveis infectados. Outros países também estão alertados e contribuindo como podem. Na semana que passou, a notícia que chegou pela agência BBC News é que uma vacina contra o ebola começará a ser testada por voluntários na Grã-Bretanha já no próximo mês. A ideia é disponibilizá-la no início de 2015. “A ciência está trabalhando a toque de caixa. Já estamos aprendendo muito com o ebola, agora vamos ver se as pesquisas conseguem andar no mesmo ritmo que as mudanças do mundo pedem”, conclui Ujvari.