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Cultura

Inconformado Cazuza


Elisa Marconi e Chico Bicudo

Como no compasso de uma valsa, a exposição Cazuza, mostra sua cara, montada e recém-inaugurada no Museu da Língua Portuguesa, precisou de três tempos para acontecer.

A primeira etapa nasceu de um desejo da instituição de se reinventar e apresentar um tema que fosse a cara do seu público, majoritariamente jovem. Essa fase aconteceu no início do ano e resultou no convite para o arquiteto e cenógrafo Gringo Cardia conceber uma mostra sobre Cazuza, o compositor que morreu em 1990 em decorrência de complicações provocadas pelo HIV. “O museu queria falar diretamente com os adolescentes e jovens que frequentam as exposições e por isso queriam trabalhar uma figura emblemática, forte, cheia de conteúdo e ao mesmo tempo muito atraente. O nome do Cazuza foi quase instantâneo”, relembra o curador da exposição.

Cores vibrantes e muitas luzes dão o tom da exposição do exagerado Cazuza
Crédito: Cauê Diniz/ Museu da Língua Portuguesa

Cardia abraçou o projeto, desenhou os conceitos e quando ia começar a defendê-los, foi presenteado com o segundo tempo do compasso. “Nessa mesma época, começaram as manifestações de junho. Os jovens foram para as ruas, indignados, pedindo que o país mostrasse sua cara, exatamente como Cazuza fez e teria feito de novo”, comemora o curador. E assim, os organizadores nem precisaram muito ser convencidos de que o material que tinham em mãos era absolutamente afinado com o tempo atual. A rebeldia de Cazuza dança em perfeita sincronicidade com o inconformismo dos garotos e garotas que tomaram as praças e avenidas das capitais.

O terceiro tempo foi a inauguração propriamente dita da exposição Cazuza, mostra sua cara, no último dia 22 de outubro.

Cardia, que conheceu e trabalhou com Cazuza nos anos 1980, conta que o ponto de partida para conceber o projeto foi se perguntar o tempo todo como contar a história de um cara incrível para uma geração que não o conheceu e que guarda pouca memória afetiva  desse artista. “E eu gosto de pensar exposições em que o visitante se veja e se reconheça no que está sendo mostrado, contado, revelado, para que – ao final – acrescente algo na vida dele”, explica. Foi por estar atento a essa necessidade que o curador da mostra se deu conta que a rebeldia e os questionamentos eram o fio condutor entre o músico que agitou a década de 1980 e os adolescentes que vão produzir a década de 2020. “É natural no jovem se perguntar quem é ele e qual o seu papel nesse mundo. Cazuza fazia isso o tempo todo, buscava se entender e refletir sobre o lugar da juventude na sociedade. Era muito crítico, um pensador incansável”, revela. A ideia, portanto, não era fazer uma cronologia da vida, mas sim desnudar e apresentar o universo criativo do poeta.

Os banheiros do Museu da Língua Portuguesa, tanto masculino quanto femininos, também compõe a exposição e levam o visitante à uma discoteca dos anos 80, com direito a música alta e projeções nas paredes.
Crédito: Cauê Diniz/ Museu da Língua Portuguesa

A exposição foi dividida, num primeiro momento, em duas partes, que talvez representem as duas fases da carreira de Cazuza. A fase “Exagerado” refere-se mais ao começo da trajetória, ainda ao lado do Barão Vermelho e do parceiro Roberto Frejat. Cardia diz que “nessa etapa, Cazuza estava mais preocupado com as pessoas e consigo mesmo, era muito novo, fazia aquelas perguntas típicas da juventude, sobre quem sou eu e o que estou fazendo aqui”. Por isso os versos “Por você eu largo tudo//Vou mendigar, roubar, matar//Até nas coisas mais banais//Pra mim é tudo ou nunca mais” dão o tom.

Na fase seguinte, Cazuza se separa do Barão Vermelho, se descobre portador do HIV e amadurece em quatro anos o que as pessoas comuns levariam uma vida inteira para fazer. “É o momento ‘Ideologia’, em que o poeta questiona a sociedade, o país, faz relações entre as instituições e a situação das pessoas e começa a cobrar uma postura, um posicionamento”, vai explicando o curador da mostra. Ainda segundo o cenógrafo, a opinião ganha forma de poesia para mostrar o inconformismo do artista com o Brasil dos anos pós-ditadura civil-militar, quando a esquerda deveria ser a responsável por mudanças profundas e não estava dando conta disso. “Brasil, mostra a tua cara”.

Uma das salas se propõe a explicar, além de cruzar informações, sobre a história do país com a história do próprio Cazuza.
Crédito: Cauê Diniz/ Museu da Língua Portuguesa

Pausa. Virada da bateria (Tum-dum-tá!). Mas não é exatamente essa a percepção que os jovens têm hoje do Brasil? Que a vida devia estar melhor depois de avanços de governos de esquerda e, no entanto, não está bom ainda? Cardia ri. “Exatamente isso. Em 2013, mais de uma década depois que Cazuza morreu, esse sentimento está mais vivo do que sempre. E oferecer o pensamento rebelde de Cazuza a esses jovens talvez seja uma fundamentação rica para os sentimentos misturados e um tanto disformes que eles experimentam”.

A proposta é, por exemplo, numa sala que sugere uma manifestação, com frases do artista, que o visitante possa escolher uma fala, estampá-la virtualmente em seu rosto e receber essa imagem por e-mail, mostrando e experimentando por que Cazuza era um inconformado.

E era músico. É importante não se distanciar disso, porque a exposição tem muita música também. É a primeira vez que o Museu da Língua Portuguesa trata de canções e toca rock. E os acordes não são apenas suporte para a poesia das letras. São parte absolutamente constitutiva do personagem que se está querendo reconstruir.

Cazuza era filho do maior player do cenário musical brasileiro dos anos 1950, 1960 e 1970. Os grandes nomes do ramo carregaram Cazuza no colo, fizeram parte da infância e da adolescência do artista. Também era ouvinte de rádio, tinha um fraco pelas canções derramadas de amor e sofrimento de Lupicínio Rodrigues e Dolores Duran e bebeu na fonte do blues, do jazz, da MPB e do rock revolucionário da Inglaterra e dos Estados Unidos. “A música foi o canal da poesia indignada de Cazuza. E a música é uma referência cultural fundamental para entender o Brasil”, ensina o curador.

Dificilmente o visitante consegue passar pela sala da foto e não cantar junto com Cazuza. Nas mesas digitais é possível ouvir a opinião do poeta sobre determinados assuntos, além de ouví-lo cantar.
Crédito: Cauê Diniz/ Museu da Língua Portuguesa

Um das salas da mostra toca exatamente nesse ponto, a forte relação entre literatura, poesia e música que sempre esteve presente na história do Brasil. Não à toa, é uma das preferidas dos professores que visitam a exposição. A viagem sonora vai do Império ao rock de Brasília dos anos 1980, passando pelo samba do início do século 20 e pela Bossa Nova e pela música de protesto do período do regime militar. Foi nessa última vertente que Cazuza se inspirou mais. Vale destacar também que a presença da música, ainda mais do rock brasileiro, é um fator importante de atração da juventude. “É uma linguagem universal, com quem o jovem se identifica. A surpresa fica por conta do personagem que, até então, esses meninos e meninas não conheciam. Quando conhecem, descobrem que Cazuza ainda faz o maior sentido”, explica.

A questão da atualidade do pensamento e da arte de Cazuza também estão numa sala que recolhe o depoimento de 10 pessoas que conviveram de perto com o compositor e outras 10 pessoas que entendem da juventude de hoje, como Hermano Vianna, Luiz Eduardo Soares, Júnior do AfroReggae. Os especialistas falam principalmente sobre o papel do jovem no mundo de hoje, discutem as formas de atuação na família e na sociedade, as ferramentas que o grupo usa. Esse debate leva a outro espaço da mostra que também merece destaque: uma sala com seis paineis em que a biografia de Cazuza é sobreposta a seis fases da história do Brasil e, assim, unindo os pontos, o visitante vai notando o quanto a trajetória pessoal do artista se afina com seu tempo e com seu mundo.

Ai final da exposição, o visitante pode tirar um retrato próprio e escolher uma das frases do poeta. As imagens integrarão a mostra.
Crédito: Cauê Diniz/ Museu da Língua Portuguesa

Até que chega o último monitor, onde Cazuza é visto com uma máscara que, em dias de hoje, bem poderia ser identificada com aquelas usadas pelos blackblocs. Mais um reforço na percepção que diz que Cazuza ainda vive. “É o heroi grego, que morre no auge e sobrevive ao tempo. Conhecer figuras assim pode ser altamente inspirador para os jovens visitantes”, provoca Cardia.

O arremate final é um tênis usado, gasto, exposto pouco mais adiante, que pertenceu a Cazuza, ao heroi. Absolutamente comum, banal, poderia ser de qualquer um que foi ali visitar, o que traz o poeta inconformado para o nível da humanidade e eleva o visitante ao patamar de pessoa que pode fazer a diferença e se projetar no tempo. Empatia. “Imagino que, por isso, as pessoas estão saindo tão encantadas da exposição”, conclui, convidando, o curador.

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