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Cultura

Literatura e condição humana

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O escritor peruano Mario Vargas Llosa parecia confortável no centro do Roda Viva, no programa exibido pela TV Cultura na segunda-feira, 13 de maio. Já tinha participado, no Brasil, do ciclo de palestras “Fronteiras do Pensamento”. Aproveitou ainda a passagem por aqui para divulgar seus dois livros mais recentes: o romance O sonho do celta, de 2011; e o ensaio A civilização do espetáculo, ainda não publicado em português. Sem esconder os cabelos brancos, o Nobel de Literatura de 2010 começou a entrevista falando sobre um de seus temas prediletos: a atualidade do romance.

“Para entender melhor o mundo, o romance histórico oferece uma grande aventura. Eu me apaixono e de certa forma vivo o que está escrito ali. Por outro lado, o romance mais local, que trata da realidade de um lugar específico, é mais tenso, porque tenta chegar em algo escorregadio, sem perspectiva”, avisou. Apesar das crises das narrativas, da fragmentação dos discursos e da concorrência da virtualidade desembestada, ele defendeu que há lugar para o romance no mundo contemporâneo, como sempre houve no passado, porque o mundo é complexo e precisa ser trabalhado. “Se essa forma de literatura morreu, então é um morto que goza de muito boa saúde. Porque explica e expõe a realidade, porque nos abre a dimensão dos sonhos, dos apetites, dos pesadelos”.

Por produzir romances classificados como realistas, Vargas Llosa é apontado como um escritor tradicional. Tentou explicar essa veia aos entrevistadores. Não que ele tenha algo contra a experimentação de linguagens. No entanto, acredita que todos os grandes romances têm como semelhança tratar das experiências do homem na sociedade, uma situação cheia de possibilidades e viagens. E a escrita disso tudo não pode ser um jogo. “Quer dizer, pode até ser jogo, mas não apenas isso, porque se o romance for só marginal, seria uma grande carência para a literatura e a cultura”, afirmou. E completou com uma reflexão que pode ser encarada como uma das mais importantes do programa: “Porque a literatura tem o intento de competir com Deus, por criar uma realidade intensa e extensa ao falar do movimento do indivíduo na sociedade”.

“Melhor que as pessoas leiam. Pior seria se não lessem”

Para o entrevistado, no romance, a civilização pode ser vista de forma mais complexa, porque o gênero retrata o que é sonhado, o que é imaginado, o subjetivo e, portanto, mais completo que a própria vida. “E tudo isso, a meu ver, é uma necessidade do ser humano. A gente tem apenas uma vida e a capacidade de sonhar com mil outras vidas. Perceba como isso é uma frustração. E quem resolve essa falta é a ficção”, sugeriu. Tudo isso remeteria à própria melhoria da sociedade, porque o romance pode ser um extraordinário motor para o projeto humano, já que criaria um mundo melhor, inspirador, ciente das diversidades e tolerante. E esse fomentar de valores pode ser o ponto de partida para as mudanças.

Outro ponto abordado pelos entrevistadores foi o possível fim das publicações em papel, em função da emergência dos livros digitais. Vargas Llosa assumiu que não tem uma resposta segura para essa questão tão delicada. Contudo, pareceu pessimista. Ele crê que se só forem escritos romances para meios digitais, como tablets e leitores digitais, esse gênero pode entrar em decadência, porque o meio provocaria certa frivolização e banalização da forma. “Um pouco parecido com o que acontece com a TV, que é extraordinária para comunicar e informar, mas quando o assunto é criatividade, há uma perda. Tudo é vulgarizado, banalizado. Você consegue imaginar um Macunaíma, ou um Quixote escrito para tablete?”. E não há esperança? O escritor diz que sim, que deseja que os dois formatos coexistam. O romance no papel seria mais profundo, mais criativo, e o digital seria mais superficial. Mário Sérgio Conti, mediador do Roda Viva, provoca: “Não tem vontade de escrever um livro digital?”. “Absolutamente nenhuma”, sorri Llosa.

O ensaio A civilização do espetáculo, que deve sair no segundo semestre no Brasil, foi mais um foco das atenções dos entrevistadores. O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva pediu que Vargas Llosa falasse sobre uma ideia desenvolvida no recente livro do autor peruano – e que, em linhas gerais, sugere que o leitor desenvolva um esforço de leitura e de compreensão que seja semelhante ao feito pelo escritor, ao produzir uma obra. Como provocação, Lins da Silva citou o exemplo do jazz, que só não morreu porque os compositores fizeram certas concessões. O entrevistado disse que é preciso ultrapassar certas barreiras para que, no futuro, mais gente possa entender as obras. Lembrou o caso de Ulisses, de James Joyce. Na época em que foi lançado, poucas pessoas podiam ler esse romance, mas hoje muita gente pode, porque o público vai sendo educado também. Para ele, a cultura é pioneira, deve ir explorando vias inéditas também. Se não, vira só um jogo exótico, na opinião do autor. Por isso a crítica literária é tão importante.

“Se essa forma de literatura morreu, então é um morto que goza de muito boa saúde. Porque explica e expõe a realidade, porque nos abre a dimensão dos sonhos, dos apetites, dos pesadelos”.

“Acho que vem daí a confusão de hierarquias, estéticas e valores estéticos com os quais vivemos. Acho a experimentação fundamental para que a literatura se mantenha viva e em contato com a realidade em movimento, mas é fundamental que não desapareçam valores e hierarquias, para que sempre saibamos o que gostamos e o que não gostamos. Nas artes plásticas, já não sabemos mais”, devolveu, também como provocação. Por que isso que ele vê como decadência? O autor de A civilização do espetáculo responde que a razão é vivermos numa realidade cultural que nos converte em autômatos, que aceitam o que dão, em geral por exigência do mercado, no pior sentido da relação.

Conti quis saber a opinião do escritor a respeito da dita literatura globalizada, como as obras de Paulo Coelho, ou coleções como Harry Potter. Llosa foi taxativo: “Melhor que as pessoas leiam. Seria pior se não lessem”, para na sequência explicar que sempre existiu, ao lado da literatura mais profunda e criativa, uma de entretenimento. “Ruim seria se a segunda atropelasse a primeira e que essa desaparecesse. Isso seria grave. Porque a literatura de entretenimento é efêmera, passageira, embora divertida. A outra é mais permanente, tem raízes e alcança a problemática da vida”.

Por falar em temas atuais, o escritor foi perguntado se é mais peruano, latino-americano, europeu, ou cidadão do mundo. Respondeu que é, antes de tudo, um escritor. E que se sente peruano, profundamente latino-americano e um tanto europeu, porque tem cidadania espanhola. E ressaltou que a literatura “nunca quis fronteiras, sempre esteve na frente da globalização, desde o começo”. Contou que foi andando pelo mundo e ao se deparar com histórias incríveis como Os sertões, de Euclides da Cunha, um dos livros que mudou sua vida, ou sobre os acontecimentos na República Dominicana, que acabou escrevendo romances sobre os temas (A guerra do fim do mundo e A festa do bode). Nunca foram, no entanto, decisões preestabelecidas. Faz pesquisas, vai aos lugares e isso o fascina. A experiência e a realidade foram o empurrando para isso. “Acho que literatura é isso. Sair do provincianismo, da visão limitada do mundo e ir além, ao encontro do outro”.

Os entrevistadores passaram a discutir a respeito das influências de Vargas Llosa, esmiuçando como Os sertões tocou a obra do peruano, e se debruçando também sobre Madame Bovary. O autor contou que, ao ler o clássico francês, descobriu que tipo de escritor gostaria de ser: “realista”. Nada de fantasias (como leitor sim). Fingir a realidade sim, mas sem fantasiar. Tratamento formal, fervoroso, que se aproximasse das crônicas sociais, mas com grande beleza. Isso começa com Flaubert.

Gabriel Garcia Márquez: “Um dos mais importantes da nossa época. Cem anos de solidão vai ficar como um dos mais importantes romances do nosso tempo. Tem um mundo próprio que explode maravilhosamente. Tudo gira em torno de Cem anos de solidão, antecipando, ou em consequência”.A última rodada foi uma sequência de desafios rápidos conduzidos pelo apresentador, que pediu ao Nobel de Literatura que falasse sobre alguns escritores latino-americanos. O escritor peruano topou o jogo.

Pablo Neruda: “Um poeta extraordinário, renovador da linguagem poética, um dos grandes de língua espanhola. Um caso difícil de entender de um criador extraordinário, original e inovador e que na política foi totalmente sectário, quadrado, disciplinado. Que parece ter passado sem nenhum escrúpulo ou angústia pessoal pelas experiências mais atrozes do stalinismo. Conheci Neruda, era encantador. Não falava de política. Queria se fazer passar por um homem comum, mas um comum não escreveria o que ele escreveu”.

Julio Cortázar: “Escritor magnífico. Quando saiu O jogo da amarelinha, o romance teve um efeito enorme, mostrando que a experimentação e o jogo poderiam ser grandes temas literários. Mas afinal, acho que o que vai ficar são os contos de Cortázar, que era um contista extraordinário. Fino, original, um tipo de literatura fantástica que parecia realista. Nos afastamos por questões políticas, mas o queria muito bem. Era generoso. Ajudava os escritores jovens. Me ajudou muito no começo. Muito modesto, nada pretensioso. Descobriu aos 60 anos a revolução socialista e o erotismo. A literatura empobreceu, mas a vida pessoa enriqueceu”.

Jorge Luis Borges: “Se tenho de escolher um escritor de língua espanhola do meu tempo que estou seguro que daqui a 200 anos as pessoas ainda vão ler. É o equivalente contemporâneo a Cervantes, (Francisco) Quevedo, (Félix) Lope de Vega, tem a estatura de um clássico. Renovou a língua espanhola, que era impressionista, sensual, numa língua inteligente, precisa, como o inglês e o francês. Mais: destruiu as fronteiras temáticas da língua, abriu as fronteiras da língua”.

Roberto Bolaño: “Muito interessante, das gerações mais novas é provavelmente o mais interessante. Renovador ao conseguir combinar experimentação com temática da América Latina. Mostra, pela vida pessoal, que a tradição dos malditos não abandonou a literatura”.

João Guimaraes Rosa: “Grande escritor da América Latina, mostrou que se pode escrever sobre a América Latina de forma mais local, mais regional, com perspectiva absolutamente universal. Grande sertão: veredas é uma obra-prima absoluta do ponto de vista do relato e da criação linguística. Difícil de ler e tão persuasivo”.

Por fim, quais os escritores contemporâneos que Mario Vargas Llosa recomendaria? Javier Cercas, um espanhol que escreveu Soldados de Salamina, uma obra baseada num fato real muito específico, onde se introduz a fantasia, uma ficção delicada e original.

O escritor encerrou sugerindo que a literatura latino-americana está viva e tem mais leitores que no passado. “Há várias razoes para ser otimista na América Latina. A literatura é uma delas”, concluiu.

Crédito da imagem: Daniele Devoti/ Pádoa, Itália 

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