Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
Na quarta-feira, 31 de janeiro, o julgamento em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado de forma unânime e com aumento da pena de nove anos e seis meses para doze anos e um mês pelo TRF-4 de Porto Alegre completou uma semana. Nessa mesma quarta-feira, o Datafolha divulgou pesquisa de intenção de votos que confirma que, mesmo depois da condenação em segunda instância, o ex-presidente lidera, com folga, todos os cenários de primeiro turno considerados, com percentuais que variam de 34% a 37% – e ganharia de qualquer adversário em eventual segundo turno. A pesquisa revela ainda que 27% do eleitorado “votaria com certeza” num candidato apoiado por Lula e que outros 17% “poderiam seguir” a indicação dele, números que confirmam o potencial de transferência de votos do ex-presidente. O Datafolha constata também que, sem o nome de Lula nas urnas, os que manifestam desejo de votar em branco ou nulo chegam a consideráveis 32%. Para Mauro Paulino, diretor do instituto, em artigo publicado na Folha de São Paulo, “a possível inelegibilidade do ex-presidente aprofunda a crise democrática e lança ainda mais incertezas sobre o pleito deste ano e seus desdobramentos”.
Essa conjuntura política – Lula impedido de disputar a eleição, depois da derrubada de uma presidenta democraticamente eleita – sugere que as elites dominantes do país decidiram assumir, sem pudores, sua agenda de retrocessos, de redução de direitos e conquistas sociais, impondo um projeto de poder que “rasga a Constituição de 1988 e quebra um pacto que já durava trinta anos e que se apoiava nas eleições livres e na perspectiva de alternância de poder”, avalia o cientista político Luis Felipe Miguel, professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). Autor de Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2017), entre outros 17 livros, Miguel é também coordenador Grupo de Pesquisas sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), na UnB.
A reportagem da Revista Giz conversou com exclusividade com o cientista político no dia seguinte ao julgamento do ex-presidente. Na conversa, Miguel destacou que o roteiro traçado pelos grupos dominantes está sendo seguido à risca e que o objetivo final é estabelecer – sem negociar com a oposição – um modelo de Brasil que ignora as minorias, não combate a pobreza e se volta ao grande capital. “Os pactos erguidos para a Constituição de 1988 não valem nada neste momento”, explica. Ele considera que as elites sabem do custo político de uma eleição sem Lula, sabem que ela é menos legítima, mas “estão absolutamente dispostas a bancar esse jogo”. O pesquisador sugere ainda que o Brasil, como outras nações, está perigosamente entrando numa era de desdemocratização.
Foram três votos concordantes, unanimidade também em relação ao aumento da pena do ex-presidente Lula e falas dos magistrados que procuraram desconstruir os anos de governo petistas. Um julgamento com resultado tão duro assim já era esperado?
O resultado seguiu exatamente o script que estava proposto quando foi marcado. O simples fato de ser marcado correndo, para janeiro, quando não costumam acontecer julgamentos como esses, já sinaliza a intenção política e reforça a posição do juiz Sergio Moro também. O resultado também fortalece a ideia de que a candidatura Lula nas eleições de 2018 precisa ser impedida. Alguns especialistas esperavam que o julgamento fosse ser um pouco diferente, que talvez não fosse unânime e, assim, voltariam as perspectivas para os possíveis recursos da defesa. Mas acho que está muito claro que esse julgamento nada tem a ver com Justiça. Ele é politicamente enviesado desde o início. Existiu sempre uma condenação prévia do ex-presidente e as falas dos magistrados aconteceram no intuito de convencer a opinião pública. Os discursos não foram voltados para o julgamento, mas para a TV, para convencer as pessoas do valor dessa condenação. Não sou eu quem diz isso, vários juristas apontam que não há provas que sustentem uma condenação. Ou seja, trata-se de um regime diferenciado para Lula, diferente dos outros. Veja que no mesmo dia em que aconteceu o julgamento dele, o ex-ministro José Serra teve seu processo arquivado, porque prescreveu. Repare a pressa para correr com o processo do presidente Lula e a pressa para correr com o processo de Serra.
As lideranças do campo progressista souberam ler e avaliar politicamente esse cenário tão adverso?
O esforço da esquerda foi, desde o início, denunciar a injustiça do julgamento, para o mundo, para os órgãos internacionais. Porque perceberam que os juízes envolvidos não seriam sensíveis a argumentos jurídicos e que estariam motivados por questões políticas mesmo. As lideranças do PT e de outros partidos de esquerda, como Guilherme Boulos, denunciaram sempre a ilegalidade da situação. A situação regrediu a tal ponto nesse país que o ex-presidente está sujeito a um julgamento como esse. Imagine agora uma pessoa comum frente a essa Justiça. O que esperar?
A prisão do ex-presidente é iminente, pode acontecer em semanas, os recursos não devem ter efeito prático e a candidatura está realmente ameaçada. A partir de agora, qual a tarefa política que cabe ao PT e às esquerdas?
Agora ficou evidente que os grupos dominantes do Brasil vão impor sua agenda – de redução de direitos, de distância social, de despreocupação com o combate à miséria – de qualquer jeito e sem negociação. O governo Lula não foi de esquerda radical, mas sim uma tentativa de repactuação e os grupos dominantes hoje não querem mais isso. O grande capital sabe que eleição sem Lula não tem a mesma legitimidade, mas está absolutamente disposto a pagar esse preço para impor a agenda de retrocessos. Não acredito que os recursos da defesa façam qualquer efeito ou diferença, até porque o STF já falhou no caso da presidente Dilma. Ela foi derrubada e o argumento agora é o mesmo. A única chance de mudança nesse processo todo é a elite dominante sentir uma reação muito grande da população e achar que o preço está alto demais. No entanto, não vejo nada nesse sentido. A direção do PT é toda rachada com várias visões diferentes, a dos outros partidos de esquerda também e os movimentos sociais, uma parte deles, está disposta a ampliar a discussão e as manifestações contra esse novo golpe que é afastar Lula da eleição. Mas é apenas uma parte. As caravanas que devem continuar e a inscrição de Lula como candidato são apenas medidas para aumentar o custo político dos grupos dominantes. Coalizões da esquerda com o poder não resolveriam e ações jurídicas não vão fazer efeito. É importante que se diga com todas as letras que este sistema político não respeita a lei e que usa a lei a seu favor. Significa dizer que o código penal foi rasgado e a Constituição foi rasgada.
Cientistas políticos costumam dizer que a Constituição de 1988 representou um pacto que garantia, acima de tudo, que a democracia brasileira seria mantida com eleições diretas livres e legítimas. Quem perdesse devia esperar a sua vez. O que estamos vendo é a quebra desse pacto? E que existe mesmo uma parcela da sociedade que vai ousar impor seu projeto a qualquer custo?
Se olharmos em perspectiva, a Constituição de 1988 representou a saída da ditadura militar. Foi um processo de intenso embate e negociação entre as forças, foi uma disputa política mesmo. No entanto, todas as forças envolvidas concordavam que era preciso garantir a Democracia e que ela viria das urnas. Esse foi o pacto número um da Constituição e é a ideia central do documento. Mas havia um segundo pacto, tão rompido e destruído quanto o primeiro. Sempre houve, desde a Constituição de 1988, um discurso e uma disposição que os grupos que estivessem no poder lutariam contra a miséria e a desigualdade social. Não importa como, mas garantiriam um esforço para melhorar as condições, os direitos e o acesso da população aos direitos e a uma vida melhor.
O senhor avalia que os dois foram rompidos?
Decididamente rompidos. Primeiro com a retirada da presidente eleita sem nenhuma prova ou razão real para isso. E o paulatino e absolutamente violento desmonte dos direitos e conquistas dos trabalhadores, dos pobres, das mulheres, dos LGBT, dos negros é a prova cabal disso. Sem nenhuma vergonha, o grupo que está no poder virou de costas e ignora solenemente aquele pacto e relega a população à miséria.
Os grupos dominantes estão dispostos a assumir esse ônus, socialmente complexo e perigoso?
Estão sim. Já vêm fazendo e sabem que têm um preço a pagar, mas não estão muito preocupados, por isso vem emplacando a reforma trabalhista – das mais violentas do mundo –; vão votar a reforma da previdência; vão tirar Lula da eleição.
Lideranças políticas e especialistas no tema alertam para o risco agudo de aumento explosivo da insatisfação popular diante desse cenário.
É uma possibilidade, já vimos isso em outros países. Mas o PT tem pouco poder de mobilização no momento e os movimentos sociais também e para ter sublevação são necessárias forças políticas que inflamem os ânimos. O que vemos no Brasil, neste momento, é que antes da raiva, temos o risco de passar por um grande momento de decepção, em que não é possível reagir.
O senhor acha que esse momento, o da decepção e do desânimo, é o que estamos atravessando?
As pessoas comuns estão percebendo que estamos perdendo todas. Mal dá tempo de se recuperar de um golpe, vem outro. Os grupos que haviam se mobilizado e avançado em termos de direitos e garantias, como os negros, as mulheres e os LGBT, estão vendo um retrocesso perigoso. A sensação geral é de derrota. E para algo mudar nessa estrada, só com reação popular. Forte.
Diante desse cenário, qual deve ser o papel das esquerdas na próxima eleição?
A primeira resposta que todo mundo houve é a candidatura única, para se opor a esse projeto dominante. Pessoalmente, nem acho que isso seja o mais importante. Construir essa candidatura única prescinde de nome e projetos comuns, o que não combina em nada com a esquerda atual e histórica. Tantas vaidades e ambições teriam de ser suplantadas, colocadas em segundo plano, que acho que não ia funcionar. O mais importante seria conseguir uma plataforma mínima para impedir o avanço do retrocesso e o retorno de direitos perdidos. Essa plataforma tem de estar afinada com os movimentos sociais, a pauta precisa ser uma e forte. E as candidaturas precisam estar amparadas no apoio popular verdadeiro. Sem isso não vai ter defesa, reação e vai ser um massacre.
Talvez seja cedo para afirmar, mas o cenário que o senhor descreve sugere que já estamos vivendo um Estado de exceção?
Não é só o Brasil e não sou só eu quem diz. Vários países do mundo estão vivendo um processo de desdemocratização. As instituições existem, mas podem ser desrespeitadas, atropeladas ou funcionar desequilibradamente e nada acontece. As decisões populares são tomadas – como a eleição da presidente Dilma no Brasil e o referendo popular na Grécia – e são solenemente desrespeitadas. Não precisa ser uma ditadura escrachada, as instituições tradicionais e democráticas dão algum verniz, os partidos continuam existindo, nem precisa de censura porque a própria imprensa se posiciona a favor desse movimento e tudo caminha aparentemente bem. Podemos afirmar sim que essa desdemocratização envernizada nos faz mergulhar num Estado de exceção, sim.