Carlos Heitor Cony reedita e reúne dois livros sobre a vida de Juscelino Kubitschek. “Ele criou uma era, a Era JK. O Brasil ganhou o primeiro campeonato mundial, a Bossa Nova enchia a gente de orgulho aqui e lá fora. E, internamente, o país começava a dar certo, antes a gente não tinha condição de fabricar uma tesourinha, agora tínhamos fábricas de navio e de automóvel”.
Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
A impactante capa do livro JK e a Ditadura, de Carlos Heitor Cony, recém-lançado pela editora Objetiva, que sugere uma tarja preta sobre a boca do ex-presidente, faz dois convites ao leitor. O primeiro, desbravar aspectos ainda pouco trabalhados da vida de Kubitschek; paralelamente, conhecer com um pouco mais de profundidade a história do próprio país, num período que paulatinamente vem sendo revelado por meio de livros e filmes, por exemplo.
No caso específico dessa obra, Cony conta – ou reconta, já que o livro é uma compilação revisada de duas outras, escritas anos antes – como viveu Juscelino Kubitschek depois do último dia do governo, em janeiro de 1961, até o dia de sua morte, em agosto de 1976. Contudo, a parceria dos dois começou em 1969, pouco depois de o jornalista e de o ex-presidente terem saído da prisão – onde estavam por força do Ato Institucional no. 05. Naquele momento, Cony, então editor da Revista Manchete, foi apresentado a Juscelino Kubitschek pelo presidente da Editora Manchete, Adolpho Bloch. A ideia de Bloch era ajudar JK a organizar os documentos e as memórias que vinha reunindo desde o início de sua vida pública para transformar esse material todo num livro, ou em vários.
“No começo, a relação foi fria, não muito próxima, mas aos poucos fomos nos conhecendo, nos aproximando e chegamos a ser grandes amigos. No fim da vida dele, acho que fui uma das pessoas mais próximas”, lembra Cony.
E continua: “Naquela época, quando voltou do exílio em Paris – para onde tinha ido depois do golpe de 1964 – ele era uma espécie de ovelha negra da política brasileira, ninguém dava muito espaço, aí a Editora Manchete o apoiou. O presidente tinha até uma suíte no último andar da editora e ele praticamente morava ali”.
Depois de muita conversa, organização e edição do material, Kubitschek publicou o primeiro livro da trilogia que produziu junto com Cony: A experiência da humildade. “Fui o ghost writer desse volume, que conta desde o nascimento até a conquista da prefeitura de Belo Horizonte, e do segundo, A escalada política, que parte da posse dele como prefeito de BH, atravessa o período como governador de Minas Gerais, e chega até a campanha para a Presidência da República”, explica o jornalista.
O terceiro livro da série teve uma história um pouco mais trágica. “50 anos em 5” estava quase pronto e seguia o mesmo molde dos anteriores. “Juscelino era o autor, eu escrevia e editava o material. Faltando uma parte mínima, mas já muito conversada entre nós, ele morreu”. Os trabalhos foram então interrompidos. Durante um tempo, o jornalista, a família e os amigos de JK se questionavam se a obra devia ser publicada. Os militares – que ainda estavam no poder – pressionaram para que o livro não saísse, mas finalmente chegou às livrarias.
Cony ressalta que o ex-presidente não ficaria bravo com ele se lesse o livro, porque respeitou “todos os pontos de vista de Juscelino. Eu sabia o que ele achava das coisas, como explicava os acontecimentos, e não mexiem nada disso. Inclusivemantive a escrita em primeira pessoa e quem assina é ele e não eu”, conta. Rodeado por pressões, lançou o livro sem festa e sem fazer alarde, para não melindrar os militares. E escreveu apenas uma linha sobre a nebulosa morte de JK, para atender à família Kubitschek. Todo mundo se perguntava se de fato havia sido um acidente o que matou o ex-presidente. Os indícios apontavam homicídio – seja por sabotagem no carro, seja por envenenamento, seja por atentado a bomba. Mas, por outros motivos, a família também pediu que Cony tratasse muito superficialmente do acontecimento, porque, para temperar com mais drama e mistério essa passagem, o ex-presidente estava indo de carro e não de avião ao Rio de Janeiro para fugir da vigilância de sua esposa, dona Sarah, já que viajava para encontrar uma amante na cidade maravilhosa.
No entanto, como não podia se contrapor aos combinados com o presidente, Cony deixou de tocar em pontos muito importantes tanto para a vida de Juscelino quanto para a história do país. Ficaram de fora tópicos como a eleição para o Senado, o lançamento de seu nome para a eleição presidencial de 1965, o exílio em Paris, a vida em Portugal, na Espanha e nos Estados Unidos, a volta ao Brasil, as dezenas de inquéritos policiais que enfrentou e a crise conjugal profunda com Dona Sarah, que queria a separação. “Eu tinha o material sobre tudo isso, tinha conversado muito com o ex-presidente a respeito, então publiquei um quarto livro sobre JK, Memorial do Exílio, em1982”.
Muitos anos mais tarde, em 2003, o Brasil estava começando a recuperar sua história que os militares tinham roubado à força. Vinha à tona nos jornais a chamada Operação Condor, que articulou as ditaduras e a repressão aos opositores durante o período ditatorial no Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. Foi então que Carlos Heitor Cony se viu às voltas de novo com a morte de JK, que continuava inconclusa, embora o inquérito que a apurara já estivesse encerrado. “Num período de 9 meses, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda tinham morrido. Eram todos líderes de peso e todos se foram em circunstâncias misteriosas”, lembra.
Naquele momento, uniu-se à jornalista Anna Lee, investigou as três mortes e publicou os resultados no livro O beijo da morte (Ed. Objetiva).
“Continuamos achando essas três mortes muito enigmáticas, e continuamos entendendo que os indícios de homicídio são muito fortes”.
O autor retoma, por exemplo, a Frente Ampla, parceria dos três políticos – que a princípio eram adversários ferrenhos, mas que diante da ditadura entenderam que uma aliança de largo espectro poderia fazer mais frente ao regime autoritário que atitudes isoladas. Idealizada em 1964 e constituída de fato em1966, a Frente Ampla é destituída em 1968, com o AI-5.
Cony chama a atenção ainda para uma carta que o chefe do serviço de inteligência militar do Chile, general Manuel Contreras, manda para o então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Batista Figueiredo – que anos mais tarde viria a ser presidente –, alertando o brasileiro de que se, de fato, o presidente recém-eleito (1976) dos Estados Unidos, Jimmy Carter, hostilizasse as ditaduras do Cone Sul, como prometera durante a campanha, Chile e Brasil teriam dois problemas: JK aqui e Orlando Letelier lá. Explicando: Letelier havia sido chefe da Casa Civil no governo socialista de Salvador Allende, deposto por um golpe militar em 1973. Trinta dias depois da morte de Juscelino Kubitschek num suposto acidente na Rodovia Presidente Dutra, que liga o Rio de Janeiro a São Paulo, Orlando Letelier seria morto em Washington, nos Estados Unidos, onde estava exilado.
A diferença, de acordo com o jornalista, é que a morte do chileno foi investigada pelo FBI norte-americano e a conclusão é que foi mesmo atentado à bomba. “Aqui no Brasil, a Câmara dos Deputados tocou uma investigação que partia do pressuposto – e até o nome da Comissão era esse – de que havia sido acidente e terminou inconclusa. Os militares também garantiram ter se tratado de acidente com JK mesmo”, afirma o autor.
Foi então que a editora convidou o escritor a rever o que já havia publicado sobre Kubitschek. E a obra que sai desse trabalho é JK e a Ditadura, que é, portanto, uma edição revisada e compilada de Memorial do exílio e da parte que trata da morte do presidente Bossa Nova, presente em O beijo da morte.
Indagado sobre se mantém a mesma ideia sobre a misteriosa morte de Juscelino, Cony responde que sim, sem titubear. “Miguel Arraes dizia que os indícios eram mais fortes que os fatos e continuamos achando isso”. E o personagem também continua o mesmo? O jornalista também acredita que sim e detalha: “Ele criou uma era, a Era JK. Era um tempo de otimismo como nunca se tinha experimentado. O Brasil ganhou o primeiro campeonato mundial, a Bossa Nova enchia a gente de orgulho aqui e lá fora. E, internamente, o país começava a dar certo, antes a gente não tinha condição de fabricar uma tesourinha, agora tínhamos fábricas de navio e de automóvel”.
JK é muito identificado com glamour, elegância, entusiasmo e, segundo o autor, a imagem corresponde ao homem e a seu tempo. O ex-presidente era muito otimista e entusiasmado, sorria muito, dançava, gostava de festas e levava esse estilo para a política, que passa a ser empreendedora.
“Ele traz o luxo para o país, constrói três hidrelétricas, constrói Brasília e interioriza o Brasil, que até então era uma faixa de litoral. A cultura acompanha tudo isso, então a literatura, o cinema e o teatro vivem período de efervescência, de era de ouro mesmo”, anima-se Cony.
O brasileiro, que sofria com o complexo de vira-lata e cuspia na própria imagem, nas palavras de Nelson Rodrigues, passa a acreditar em si e no país. “Para a minha geração, era visível que então tudo tinha outro sentido e que estava sendo construído um outro Brasil, que só foi interrompido pela ditadura”. Por isso mesmo é que Cony defende que nenhum outro governo ou presidente da República depois de Juscelino pode ser comparado àquela fase, ou àquele homem. “Vivemos outras fases, outros momentos importantes para a nossa história, mas nunca com a força transformadora que JK representou e que a ditadura tratou de calar, talvez por isso mesmo”, encerra.