Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Existem certas obras que, para chegar às mãos de possíveis leitores, precisam atravessar terras e mares até, finalmente, aportarem no destino derradeiro. O livro Mais que um leão por dia, escrito por Alexandre Costa Nascimento e publicado pela editora Nossa Cultura, é literalmente um desses casos. O autor é jornalista de formação e por ser também usuário e ativista da causa das bicicletas começou a tocar o blog Ir e Vir de Bike, inicialmente hospedado no site do jornal A Gazeta do Povo, um dos mais importantes do Paraná. Como o blog foi crescendo e ganhando repercussão, Nascimento acabou se transformando em referência quando o assunto era magrela. Por isso é que, há cerca de dois anos, quando começou a planejar uma viagem de férias com a esposa, pensar numa aventura sobre duas rodas não demorou mais que meia pedalada.
O que o blogueiro não imaginava é que, ao digitar no site de buscas as palavras viagem + bike, lhe cairia no colo a possibilidade de realizar um sonho latente, mas presente, desde a adolescência. “Minha paixão pela África começou quando eu estava no 6º ou 7º ano. Minha mãe me dava de presente a Enciclopédia Clássica Universal e lá sempre buscava informações sobre os países africanos. E desde aquele tempo eu sempre quis ir à África”, conta. Tudo que caía nas mãos dele sobre os países africanos, a história, as pessoas, virava leitura obrigatória e, assim, Nascimento foi alimentando interna e vagarosamente uma espécie de semente de Baobá adormecida. O resultado que o Google apresentou ao jornalista foi o Tour d’Afrique, uma jornada que cruza 10 países, do norte para o sul. São quatro meses sobre duas rodas, desbravando as belezas, as misérias, os encantos, os choques de realidade que tem aquele chão. “Ver uma proposta de viagem que traça uma rota de norte a sul do continente para ser cumprida de bicicleta mexeu muito comigo, porque amarrou as pontas do sonho de adolescente com o trabalho do adulto. Eu vi e disse: tenho eu fazer, é um sonho, um projeto de vida”, lembra.
Decisão tomada, era tempo de criar a estrutura para fazer a viagem. Nascimento montou então um projeto e o publicou num desses sites de financiamento coletivo, modalidade moderna da clássica vaquinha, e esperou. Embora não tenha conseguido todo o dinheiro que precisava, levantou uma parte razoável, juntou com o patrocínio de empresas que apoiam ciclistas e com uma poupança particular. Em termos reais, ele foi sozinho, mas sentia que estava levando vários apoiadores da aventura na garupa. E então partiu para cruzar o oceano e fazer o caminho de volta dos nossos ancestrais negros. Aliás, uma das razões para Nascimento se envolver tanto com a África era justamente a percepção de que os brasileiros – quiçá o mundo todo – não dão o devido valor à nossa origem africana. “Não sabemos quase nada, nem o nome, nem a localização dos países. Não sabemos se são negros, se são muçulmanos, somos absolutamente ignorantes e isso precisa mudar. Viemos todos de lá, afinal”, explica o autor. Só para exemplificar o grau do nosso desconhecimento, o jornalista saca uma situação que vivenciou ainda quando fazia pós-graduação em Geopolítica e Relações Internacionais. O professor de uma das disciplinas entregou um mapa mundi em branco, só com as divisões territoriais, mas sem o nome dos países. Ganhava mais pontos quem acertasse a maior quantidade de nomes e a localização das nações do planeta. “América do Sul, todo mundo gabaritou. América do Norte, quase todo mundo. América Central e Europa, foi ficando mais difícil. Quando chegou na África, os alunos mal e mal conseguiram apontar Egito e África do Sul. E é exatamente isso que sabemos”, ainda se choca o escritor.
E, pior que não saber nome e localização dos países, é reforçar, produzir e não combater a ideia de que a África é una, um grande continente e homogêneo africano. “Não é, de jeito nenhum. Há vários aspectos, o econômico, o político, o humano, a natureza, enfim. Cada país que eu atravessei tinha características muito próprias”, ensina. São as múltiplas histórias, como defende a escritora nigeriana Chimamanda Adichie. E cada camada com que o jornalista se deparou – comida, música, religião, comércio, etc – foi dando forma ao mosaico e à riqueza de informações que fazem morada nas Áfricas. “Você vai vivenciando, reforçando ou desmentindo certas colocações que fazem sobre esse território africano, ou essa nação africana”, lembra. Cada país, cada cidade, cada vilarejo tem condições diferentes”.
A rota que a bicicleta de Nascimento idealizara deveria cruzar 10 países. No entanto, ele esteve em 11, porque, num dia mais livre, resolveu dar uma esticadinha no Zimbábue, que estava a poucos quilômetros de distância. A verdade é que quando o autor de Muito mais que um leão por dia fala que deu um pulinho no Zimbábue poucos saberíamos colocar o dedo no local exato onde se deu esse trecho da viagem. Mas folheando as páginas do livro, vai ficando mais claro que ele saiu do norte africano, do Egito, e veio descendo: Egito, Sudão e Etiópia, aí curva para o oriente, desvia do Sudão do Sul e passa por Quênia, Tanzânia e Malawi e sempre em sentido sul. As paradas seguintes foram Zâmbia, quebra de volta para o oeste, Botsuana e Namíbia. Chega à costa, e volta para a direção sul, até a Cidade do Cabo, na África do Sul, onde a aventura termina.
Entre um texto e outro, o jornalista oferece fotografias tiradas por ele mesmo durante toda a viagem. Aquelas das paisagens impressionam. Primeiro, porque o leitor abre o livro imaginando ver dezenas de imagens da Savana Africana, uma mistura de Rei Leão com Tarzan, e, evidentemente, não foi isso que Nascimento encontrou e registrou por lá. Nas palavras do autor: um choque atrás do outro. “Só para exemplificar, depois de uma semana na aridez do deserto, sem banho e regulando a água, fizemos uma curva à esquerda – não estou exagerando, é exatamente assim – e nos deparamos simplesmente com a foz do Rio Nilo, uma imensidão de água naquelas dezenas de canais. Um oásis, chocante”, lembra. O mesmo acontece com a questão humana. “Do Sudão para a Etiópia, por exemplo, foi a transição mais brusca que eu vivi. O Sudão é um país muçulmano, muito rígido. As mulheres andam cobertas, não pode beber álcool, é uma língua própria”, narra o autor. E segue: “O que separa o Sudão da Etiópia são 400 metros de uma ponte, sobre um rio seco, ou seja, uma fronteira que existe, mas é simbólica. E, do lado de lá, tudo pode: álcool, mulheres com decotes, prostíbulo, música alta, parecia uma Las Vegas Africana”. Na mesma linha, a variedade de climas enfrentados chamou a atenção do jornalista. Além de sol, chuva, frio e clima desértico, Nascimento e o grupo que fez o Tour d’Afrique com ele sentiram na pele temperaturas de zero a 43 graus. “O que mostra, mais uma vez, que aquela ideia que a África é um grande Saara, ou uma Savana ressequida, é pura falta de conhecimento. Quando a gente está lá e sente na pele, vai percebendo a riqueza de nuances”, emenda.
Antes de se despedir dos leitores da Revista Giz, Nascimento monta no selim da bicicleta e manda um último convite. “Eu uso muito a metáfora do baobá que conheci bem de perto. É uma árvore tão monumental que um elefante perto dela parece um bichinho de brinquedo. No entanto, a semente do baobá é pouco maior que um feijão, ou seja, um grão tão pequenininho pode conter um projeto tão grandioso”, resume. Assim, quem não pôde, como Nascimento, conhecer as Áfricas in loco, pode agora pegar carona na garupa do escritor. O único risco é se apaixonar por aquelas histórias e ver rebentar uma semente de baobá, que só vai se realizar completamente em solo africano. O que não chega a ser uma ideia ruim.