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Cultura

Arte e ofício de ser velho no Brasil

By 08/10/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O estudo Global Age Watch, coordenado pela Universidade de Southampton, no Reino Unido, em parceria com a ONG HelpAge International, divulgado na semana passada, reforça, com dados objetivos e rigor científico, um triste cenário que pode ser percebido cotidianamente: não é fácil viver a velhice com dignidade e tranquilidade. A pesquisa, que reuniu informações sobre qualidade de vida dos idosos em 96 países, é referência no assunto, porque é a única que mede o bem-estar dos velhos no mundo compilando trabalhos feitos pelo Banco Mundial, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, o documento levanta a percepção dos próprios idosos sobre seu dia a dia e analisa itens como renda, saúde, seguridade social, emprego, educação, segurança e transporte. Feitas todas as contas, o Brasil alcançou a 58ª posição nesse ranking.

Ao comentar a pesquisa, a professora de Serviço Social da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), Ursula Karsch, é enfática: “para ser velho no Brasil é preciso enfrentar muitas situações. O idoso aqui é um sobrevivente, sob vários pontos de vista. Essa pessoa teve de enfrentar um atendimento à saúde precário, uma educação que não prepara para o mundo, um mercado de trabalho que paga mal e não permite acumular para a velhice. A pessoa enfrentou a violência dos serviços públicos, a violência urbana e até a violência da família”.

Especialista em envelhecimento e condição do idoso no Brasil, Ursula vem se dedicando ao tema desde 1991, quando fez o pós-doutorado na área de Saúde Pública na Universidade de Londres, na Inglaterra, ainda em 1991. “De lá para cá”, diz, “a situação dos velhos mudou muito. Muita coisa mudou para melhor. O assunto entrou na agenda dos governos e partes pontuais viraram lei, mas ainda há um bom caminho para andar”, defende.

Para ser velho no Brasil é preciso enfrentar muitas situações. O idoso aqui é um sobrevivente, sob vários pontos de vista. Essa pessoa teve de enfrentar um atendimento à saúde precário, uma educação que não prepara para o mundo, um mercado de trabalho que paga mal e não permite acumular para a velhice. A pessoa enfrentou a violência dos serviços públicos, a violência urbana e até a violência da família”

O trabalho da Universidade de Southampton levou em conta quatro grandes critérios: segurança financeira, saúde, capacidade pessoal e o ambiente em que a pessoa vive. E, de uma forma geral, mostrou que os velhos e velhas por aqui representam 11,5% da população e se sentem inseguros, ganham pouco, têm dificuldade de locomoção, principalmente por conta do transporte público precário e despreparado para atendê-los, e têm dificuldade no atendimento à saúde. As piores notas do Brasil no levantamento, é importante reforçar, foram justamente em transporte público e segurança: só 45% sentem-se bem atendidos no primeiro quesito e apenas 28% dos entrevistados estão satisfeitos com o segundo.

Política Nacional do Idoso

A partir do levantamento, é possível sugerir que os velhos se percebem frágeis e desamparados para enfrentar a cidade. “Estudando esse tema, o que a gente nota é que o que mais falta é mesmo o respeito mesmo. O Brasil é um lugar hostil com os idosos. De forma geral, o país não se molda às necessidades dos velhos. No entanto, a gente nota algumas transformações”, conta. Ursula se refere, por exemplo, à Política Nacional do Idoso, aprovada pelo governo federal em 1994, que garantiu uma série de direitos aos brasileiros mais velhos e colocou essa fatia de cidadãos como alvo das políticas públicas. Decorrente disso, em 2003 o país aprovou e colocou em vigor o Estatuto do Idoso, uma série de leis que garantem uma qualidade mínima de vida aos velhos, assegurando inclusive aposentadoria por idade até àqueles que não conseguirem provar contribuição por tempo de serviço para requerer o benefício.

“O velho aparece nas políticas públicas desde então, mas sempre como objeto”, critica a professora da PUC/SP, “e não como propositor dessas medidas. Os governos e as demais autoridades têm muita dificuldade em entender que o idoso pode e deve ter voz no processo de construção dessas políticas públicas”. Segundo a pesquisadora, se alguém perguntar aos velhos, talvez descubra que eles não queiram mais linhas de ônibus, mas sim que o motorista pare no ponto quando o velho der o sinal, que balance menos o coletivo para ele não se desequilibrar e cair. São sutilezas nas leis que, ao não serem cumpridas, dificultam muito a vida dos mais velhos.

A boa nova é que a nota mais alta do Brasil na Global Age Watch foi em relação à seguridade social. Segundo a pesquisa, 86% dos nossos idosos recebem benefício ou aposentadoria. É um número bastante elevado, que supera vários países da América Latina, como México e Panamá. O problema é que é o orçamento público é limitado – e a renda média do brasileiro também não é elevada.

Em entrevista ao jornal O Globo, publicada em 1º de outubro, o presidente do Centro de Longevidade Internacional e um dos embaixadores da HelpAge no país, Alexandre Kalache, afirma que “os países desenvolvidos enriqueceram antes de envelhecer. Nós estamos envelhecendo muito mais rapidamente do que eles no passado, mas ainda com bolsões de pobreza, até de miséria. Os recursos públicos são disputados por uma infinidade de demandas, desde a saúde e educação à infraestrutura e à geração de emprego digno, que já haviam sido em grande parte atendidas quando os países da Europa Ocidental, por exemplo, envelheceram”. A professora da PUC/SP completa o raciocínio: “Os países subdesenvolvidos estão envelhecendo rápido e a previdência social terá que rebolar para atender todas as demandas. Isso é uma questão premente”.

Os países desenvolvidos enriqueceram antes de envelhecer. Nós estamos envelhecendo muito mais rapidamente do que eles no passado, mas ainda com bolsões de pobreza, até de miséria. Os recursos públicos são disputados por uma infinidade de demandas, desde a saúde e educação à infraestrutura e à geração de emprego digno, que já haviam sido em grande parte atendidas quando os países da Europa Ocidental, por exemplo, envelheceram”

 

Ainda assim, apesar de o valor das aposentadorias majoritariamente pagas no país estar longe do ideal, ajudou os velhos brasileiros a alcançarem um status que não tinham no passado. “O aposentado virou um esteio para a família. Ele deixa de ser o sustentado e passa a ser provedor, porque embora ganhe pouco, o dinheiro vem todo mês e isso garante o custeio da família. É cada vez mais comum que o avô ou a avó ajudem nas despesas dos netos, ou da casa”, lembra Ursula. No entanto, sustentar não traz como resposta o respeito e o cuidado. “Nos nossos estudos é bastante comum o velho dizer que a família não o leva em conta, mesmo quando ele paga a escola dos netos. Se sentem injustiçados, desmerecidos”, aponta.

Numa sociedade –e numa era – que preza e prega a juventude a qualquer preço e que costuma só respeitar aquele que está no mercado de trabalho faturando alto, o idoso é, de forma sistemática, desvalorizado. Para a especialista, uma das chaves para mudar o lugar do velho no Brasil é justamente a ponte com os netos. “De forma geral, o avô e a avó gozam de muito prestígio com os netos. Em algum momento, isso se perde. Se a gente conseguisse – via escola e família – educar os cidadãos para não perder esse carinho e entender que, no futuro, por obra da natureza, a mão do cuidado vai mudar de direção, o velho e a velha teriam situação muito melhor, com menos violência dentro e fora da família”, conclui.

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