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Cultura

Amanhã será pior

By 25/08/2016No Comments

Por Francisco Bicudo

Cabralzinho anda triste. Cabisbaixo. Amuado. Quase não fala. Monossilábico. Demora até mesmo para responder mensagens no zapzap (sempre foi elogiado pela prontidão e agilidade). Passou a recusar os convites para papo e cerveja com os amigos no bar. Acha que não será boa companhia. Tem passado as madrugadas em claro. Angustiado, fica a pensar no que aconteceu. Como tudo começou. Na empresa de tecnologia de computadores em que trabalha como consultor de novos projetos, sofre com as notícias de demissões dos colegas. Foram dezenas nos últimos meses. Todos os dias. Reengenharia e corte de custos para adaptar-se à crise, justificam os altos executivos, todos seguros em seus cargos, salários polpudos. Apesar da crise. Solidário com os que se vão – faz questão de passar a eles seus contatos e de dizer que estará atento a eventuais novas oportunidades de emprego -, Cabralzinho sabe que sua cabeça também está a prêmio, depois de anos de sossego e estabilidade profissional. Não imaginava que voltaria a enfrentar as preocupações vividas nos anos 1990 .

Nas noites insones, engolindo sem nem sentir o gosto canecas e canecas de chá de camomila cidreira, desejando alucinadamente um sono que não vem, faz contas, preenche planilhas e prepara-se para a prometida reforma trabalhista que pretende enterrar férias e décimo terceiro salário. Modernidade, alegam os defensores da proposta. Cabralzinho fica indignado com esse discurso. É o retorno cabal à pré-revolução industrial, pensa alto, mirando as janelas todas escuras dos vizinhos. Dormem. ‘Quem é que vai conseguir trabalhar oitenta horas por semana, até os setenta anos?’, deixa escapar em voz alta, esquecendo que está sozinho.

Nostálgico, esboça sorriso de canto de boca ao lembrar que, há apenas três anos, estava nas ruas marchando por mais direitos – saúde, educação, transporte. Não era só por vinte centavos. Sempre criticou duramente a inclusão apenas pelo consumo, tinha receio danado da despolitização fomentada pelo modelo de conciliação e do ganha o andar de baixo, ganha o andar de cima. É legítimo querer ter celular, televisão de plasma, carro do ano, viajar de avião. Mas e os direitos de cidadania, reformas estruturais? Nas jornadas de junho de 2013, entendia ser fundamental ampliar, qualificar e consolidar, via políticas públicas, conquistas sociais da última década. Correu das balas de borracha e dos cassetetes da Polícia Militar. Os olhos arderam com o gás lacrimogênio. Ficou muito incomodado quando viu bandeiras de partidos políticos e de movimentos sociais sendo queimadas. Assustou-se com a perseguição e agressões a quem vestia vermelho. Teve náuseas ao se deparar com faixas que pediam a volta da ditadura militar e defendiam a tortura.

Perdemos as ruas, confidenciou a um companheiro de longa data, que estranhou e fez pouco caso do pessimismo do amigo. Cabral, você sempre foi um cara animado, otimista, de bem com a vida. Que passa? Sei não. Sei não, respondia. Sentiu cheiro de intolerância e de indignação seletiva no ar. Quando a multidão amarela transtornada inundou a avenida e o som das panelas tornou-se ensurdecedor, teve convicção que uma perigosa ruptura democrática estava em curso. Postou alguns textões nas redes sociais, alertando para o que considerava uma tragédia se anunciando. ‘Amigos e amigas, o governo é muito ruim. Fraco. Sem rumo. Abandonou a agenda progressista da campanha eleitoral, rendeu-se de vez ao mercado e quer impor um ajuste fiscal que é só pesadelo para quem vive de salário e que só vai fazer concentrar riqueza. Muito mais pertinente seria discutir a taxação de grandes fortunas. O governo escapa desse debate. Abandona sua base social. No entanto, derrubar alguém que foi eleito com 54 milhões de votos sem contundente confirmação de crime de responsabilidade é casuísmo. O golpe na democracia será duro. Levaremos anos para nos recuperar’. Foi uma saraivada de xingamentos e palavrões. Bloqueou montão de gente. A serpente escapara do ovo. Não se conformou. Preciso insistir, não posso me esconder nesse momento tão dramático. Vou travar o bom debate.

Cabralzinho fazia questão desde muito cedo de participar das lutas políticas do país, sempre defendendo a democracia, os direitos humanos. O vírus da utopia tinha sido passado de geração em geração – do avô para o pai, deste para o filho. Tinha muito receio do retrocesso que avançava muito rapidamente e ganhava contornos cada vez mais nítidos. ‘Corruptos devem ser punidos, independentemente da coloração partidária. Frustraram nossas expectativas. O sonho de construir outro jeito de fazer política. Reproduziram e sofisticaram métodos de relações espúrias entre público e privado. Mas não há provas específicas contra quem está no comando do governo. O esgoto dos vizinhos não é menos fedorento. Corrupção não foi instalada no Brasil em 2002. Não é possível que uma emissora de televisão e uma entidade de empresários se sobreponham à soberania popular e decidam quem pode e quem não pode governar o país’. Novo bombardeio de impropérios, ainda mais violento. Foi até ameaçado de morte. Ódio puro. Apagou todas as contas das redes sociais. Desativou o blog.

Num domingo, almoço de família, respirou fundo e ponderou com os tios e os primos e as primas que ‘na democracia, quem resolve a ruindade de um governo são os eleitores nas urnas, a cada quatro anos’. Por um triz, sorte que sempre teve os reflexos rápidos, escapou de bordoada de um primo que espumava e berrava palavras desconexas, transtornado. Cabralzinho entendeu que era hora de sair do circuito. Não tocava mais no assunto. Assistiu sozinho e deprimido ao show de horrores do ‘por deus, pela família, pela propriedade, pela tradição e pelos bons costumes… voto sim’. Ficou estarrecido quando foi anunciado o ministério interino – branco e sem mulheres. Fez força danada para segurar as lágrimas – misto de raiva com decepção – quando foram confirmadas as extinções dos ministérios dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial, de Políticas para as Mulheres, do Desenvolvimento Agrário. Teve vontade de bater a cabeça na quina da mesa da sala de casa ao ler nos jornais que a sessão que vai definir a cassação ou absolvição daquele que mentiu diante dos pares ao garantir que não tem contas na Suíça foi marcada para uma segunda-feira, período de eleições municipais. Plenário esvaziado.

No balanço do assalto à democracia, o consultor de tecnologia para computadores aposta num acordão para encerrar em breve a Lava Jato. Coloca na lista o abandono das universidades federais. O corte de bolsas de pesquisas científicas. Escola sem partido. Obscurantismo religioso. Bancada da bala. Manifestantes retirados à força das arenas olímpicas. Ataques aos direitos das mulheres. Secundaristas massacrados pela polícia. Índios sem terra. Negros e homossexuais isolados e demonizados. Cabralzinho está triste. Muito triste. Melancólico. Aos trancos e barrancos, havia algo diferente em curso, avalia. Tinha cheiro de povo. A casa grande, dona da bola, incomodada com o campo dividido, em ser obrigada a compartilhar espaços com quem sempre quis ver longe, resolveu apitar o final do jogo. O Brasil que poderia ter sido e que não foi. Mais um espasmo. Soluço. Quem garante que o prefeito eleito em São Paulo em outubro vai conseguir terminar o mandato?, divagou, atormentado.

Pela primeira vez, Cabralzinho cogita passar um tempo no exterior. Doutorado em Portugal é uma ideia, projeto antigo. Nunca teve coragem. Quem sabe agora. O Tejo, embora não seja o rio que passa na vila dele, pode refrescar a alma e ajudar a mandar embora a ressaca e o gosto amargo na boca. Na madrugada, já quase manhã, as primeiras luzes pipocando nas janelas vizinhas, garrafa de chá quase vazia, Cabralzinho pensa com tristeza, muita tristeza, no que está por vir.

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