Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Se dúvidas havia, a presença do ministro da Economia, Paulo Guedes, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em audiência realizada na quarta-feira, 03 de abril, serviu para desnudar por completo as perversidades ultraliberais que a proposta de mudanças no sistema de seguridade apresentada pelo governo Jair Bolsonaro pretende consagrar, ao abandonar qualquer perspectiva de proteção social, condenar milhões de trabalhadoras e trabalhadores a morrer sem se aposentar (principalmente os mais pobres) e transformar o sistema de previdência em mais uma mercadoria.
Atento a esse debate e um dos principais estudiosos do tema no país, Eduardo Fagnani, economista e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), sugere que, para além dos detalhes técnicos da proposta, evidentemente relevantes, o debate se concentre também nos significados políticos mais amplos das mudanças. Para ele, o projeto apresentado pelo governo federal representa o sepultamento do chamado pacto social estabelecido pela Constituição de 1988, não por acaso também conhecida como “Constituição Cidadã”.
“Não há novidade no projeto de implantação do neoliberalismo no Brasil. Houve uma pausa nesses ataques entre o segundo governo Lula e o primeiro governo Dilma, mas a elite econômica sempre quis romper com o pacto social que a impede de agir sem qualquer tipo de freio ou controle”, analisa o especialista.
A Revista Giz conversou com exclusividade com Fagnani. Os melhores momentos da entrevista você acompanha a seguir.
Quais os verdadeiros desejos e projetos que movem essa reforma defendida pelo ministro Paulo Guedes?
A primeira coisa que é preciso entender é que não se trata de reforma da Previdência. Outros países, vários países, de tempos em tempos promovem reformas e alterações em seus sistemas de previdência, porque a população cresce, ou envelhece, ou as duas coisas. No Brasil mesmo já foram feitos ajustes e mudanças nos cálculos. Isso é normal e desejado. No entanto, o que está em jogo aqui e agora, ou o projeto oculto, é a implantação do chamado ultraliberalismo no Brasil, o que vai servir para acabar com o pacto social firmado pela Constituição de 1988. É isso.
A equipe econômica garante que, sem essa reforma, o país vai quebrar…
Acontece que, como eles não têm argumentos técnicos consistentes para defender e justificar essa reforma, partem para o terrorismo econômico. É de uma desonestidade intelectual tremenda afirmar que o Brasil vai quebrar sem a reforma. Claro que há crescimento demográfico e até o déficit pode ser discutido, mas é uma gigantesca irresponsabilidade afirmar que sem esses cortes o país quebra. Veja, qualquer estudante de primeiro ano de Economia sabe que para um país se desenvolver é preciso investimento público. Investindo no mercado interno, a renda aumenta e as pessoas compram e consomem. É assim que uma economia se desenvolve. Essa reforma, nos termos em que está proposta, é anti-crescimento. A reforma trabalhista já era anti-crescimento, porque cria empregos precários e subempregos, os salários e as rendas são rebaixados e o poder de compra e consumo cai. É mesmo um contrassenso, porque produz um capitalismo sem consumidores. E se o cidadão não compra, o país não cresce.
A conta mais uma vez vai cair nas costas dos trabalhadores, principalmente os mais pobres?
É mesmo uma reforma injusta. Do montante total que o governo diz que vai economizar em dez anos, segundo a proposta atualizada que inseriu os militares, 75% representa retirada de dinheiro do trabalhador que contribui pelo INSS, urbano ou rural, ou beneficiários do Benefício de Prestação Continuada, o BPC, ou ao abono salarial. A ideia dessa reforma é criar uma população sem proteção e sem renda. Ela vai retirar um trilhão de reais da economia, dinheiro que ia diretamente para o consumo. A Previdência reformada não vai – anote – não vai gerar emprego. Vai tirar, insisto, um trilhão de circulação, dinheiro que hoje serve ao trabalhador, consumidor e que vai desaparecer de circulação.
A intenção é também desconstitucionalizar toda a rede de proteção e seguridade social costurada pela Carta de 1988…
Nossos Constituintes, naquele processo de escrever a nova Constituição, tinham na cabeça o cenário dos anos 1970, quando a Carta Magna começou a ser almejada. O que eles viam? O cenário da social democracia, dos estados sociais e democráticos, a ideia do bem estar social da Europa do pós-guerra, o emprego assegurado, o amparo ao cidadão. Naquele momento, o neoliberalismo não era hegemônico, não era nem tão conhecido. No entanto, quando a Constituição ficou pronta e foi promulgada, em 1988, aí o neoliberalismo já era hegemônico e o pacto social nacional e toda sua gama de direitos sociais assegurados passam a ser um grande estorvo na construção do mundo neoliberal tão almejado por nossas elites.
O senhor entende que a tentativa de desmontar esse pacto social vem desde o ‘dia zero’ da nova Constituição?
Exatamente isso. Desde 1989 não há nenhuma novidade nesse discurso. Entre 1990 e 2014, os grupos que disputam o poder e a economia no Brasil vêm almejando e trabalhando para derrubar o pacto social e implantar um neoliberalismo mais profundo por aqui. Entre o segundo governo de Lula da Silva e o primeiro governo de Dilma Rousseff, esse plano deu uma reduzida, porque a condição econômica e de pleno emprego eram sólidos demais para serem atacados. Mas, desde 2013, volta à cena a discussão antidemocrática e antissocial, que reaviva esse projeto neoliberal. Com o golpe de 2016, o desmonte começa de fato a partir de um discurso de assepsia financeira.
Foi um período em que se tornou possível amansar o capitalismo?
O capitalismo não tem nenhum compromisso com o bem estar social. É uma máquina de produzir desigualdade social. O que a social democracia faz é humanizar o capitalismo, mas não por um movimento natural e próprio do sistema. Era apenas uma resposta à União Soviética. Sem o bem estar social, a Europa inteira teria se tornado socialista. Foi uma política de redução de danos no velho continente.
Chegamos então à era do capitalismo para bem poucos?
É um capitalismo burro, sem consumidores. De fato, produzir compradores é a vocação do capitalismo. Mas ele pode sobreviver muito bem trabalhando para 20% da população. O Brasil pode ser uma colônia exportadora de produtos primários e garantir renda e consumo a 20% da população, mantendo 80% das pessoas fora desse acordo. A única novidade nisso é a abertura e a publicidade do debate, que antes era oculto. Há países que adotaram esse caminho e sobrevivem bem. Na Colômbia é assim, em algumas repúblicas africanas também. Esse é o nosso futuro, segundo os idealizadores da proposta.
Há também a novidade de sair do modelo da seguridade social para o modelo da capitalização individual.
Faz parte do projeto e vai além do conceito. Hoje, uma parcela grande da população depende da seguridade social, que vem sendo construída através de anos de trabalho e contribuição. Um trabalhador sustenta o outro e os mais pobres usam mais, porque precisam mais. Com a nova Previdência, as regras para uso da seguridade social ficam extremamente exigentes e inalcançáveis e deixam de fora o grosso dos trabalhadores que hoje dependem dessa segurança para viver e consumir. Essa parcela que depende da seguridade vai começar a depender do assistencialismo que, com tanta demanda, fica de quinta categoria. Ou seja, o que o projeto propõe se choca com a realidade do Brasil, é um confronto mesmo e destrói o mercado trabalhador do país. No novo modelo, com o parcelamento da proteção previdenciária, a maioria da população não vai ter condição de contribuir e vai ficar sem proteção previdenciária e vai fugir em massa para a o assistencialismo. A contribuição individual não vai funcionar, o trabalhador não vai conseguir guardar a sua parcela para o futuro e o sistema vai minguar. A assistência social não vai dar conta e a parcela da população que terá renda vai viver entre muros, trabalhar de helicóptero e evitar contato com a massa de trabalhadores sem emprego e sem direito. E se o capitalismo aguenta? Aguenta, sim. Ele se reinventa para trabalhar dentro desses muros.
Diante de tudo isso, qual a tarefa que cabe às professoras e professores, na construção dessa resistência?
Devem agir como professores, convidando as pessoas a fazerem as contas. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE, lançou uma calculadora que mostra como seria sua aposentadoria se não houvesse a reforma e como ela vai ficar se a reforma passar sem alterações. Os professores deveriam levar essa calculadora para o almoço do domingo, mostrar e testar com os familiares, fazer o mesmo com o zelador, o cobrador de ônibus, os estudantes e os colegas. Essa é uma tarefa que cabe aos professores, mostrar a conta, apontar com doses de realidade pode dar um choque nas pessoas que ainda não entenderam o que pode vir por aí. Paralelamente, associar-se e andar junto com seus sindicatos e associações de classe, que podem impedir a sangria dos direitos.