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Cultura

A barbárie no sistema prisional brasileiro

By 02/02/2017No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

As notícias que chegaram logo nos primeiros dias do ano davam conta de embates violentos, mortes bárbaras e demonstrações de poder por parte de encarcerados em presídios de Boa Vista, em Roraima, e Manaus, no Amazonas. À medida que as imagens e os relatos se avolumavam, ia ficando cada vez mais evidente que não se tratava de uma rebelião chamada comum ou uma tentativa de fuga. Rapazes sobre os telhados, com armas e celulares nas mãos, desafiavam a polícia e as demais autoridades, enquanto familiares e imprensa do lado de fora tentavam entender o que acontecia; de tempos em tempos, vinha a confirmação de mais uma, ou de muitas, mortes.

Entre o final de 2016 e 20 de janeiro, os governos estaduais de Roraima e do Amazonas confirmaram 102 mortes de detentos. A razão? Choques entre facções rivais. O analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança, Guaracy Mingardi, conta que, embora chocantes, esses conflitos não chegaram a surpreender. “Há dois anos e meio ou três anos, as facções que dominam os presídios do Brasil já davam pistas de que uma guerra assim aconteceria. Os governos sabiam. Ou, ao menos, deveriam saber”, defende.

Mingardi é mestre em ciência política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor na mesma área pela Universidade de São Paulo (USP) e vem se debruçando sobre a situação dos presídios paulistas e brasileiros há muitos anos e conhece muito bem a realidade desses territórios independentes. Ali, o Estado mal entra. E, das celas, via celular e ações muito bem planejadas, se comanda uma poderosa e organizada estrutura criminal.

“As brigas dentro do presídio são por poder, pelo comando dos grupos de detentos e dos simpatizantes que estão do lado de fora. Fora dos muros, a guerra é pelo domínio de rotas de drogas, de cocaína em especial”, analisa o pesquisador, que também já foi diretor científico do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), coordenador de Inteligência e Análise Criminal do Mistério Público de São Paulo e Secretário de Segurança de Guarulhos. Para ele, no último mês, o que a sociedade viu foi justamente a publicização da guerra entre facções rivais pela supremacia da vida no interior dos presídios e da venda de drogas do lado de fora.

Além da violência protagonizada pelos detentos, chamaram a atenção também a inércia, a falta de ação, ou a morosidade na tomada de decisão, por parte do Estado. Segundo o analista criminal, as Forças Armadas, que foram convocadas de emergência para conter a violência, não são preparadas para esse papel. “A Força Nacional sim, mas ela está dispersa pelos estados, fazendo papel de polícia a pedido dos governadores”, provoca. E, tudo isso revela uma realidade que preferimos não ver e muito menos debater: o Estado brasileiro não tem planos para controlar os presídios e moralizar a situação dos presos. “Nunca foi esse o plano. Por economia, o Estado deixa os presidiários controlarem a vida dentro e a consequência é que o crime fora prospera”, lembra Mingardi, em entrevista exclusiva à revista Giz.


Professor, faz alguns dias que a crise dos presídios já não ocupa mais as manchetes principais dos meios de comunicação, embora o problema ainda exista e seja bastante grave. Estamos novamente esperando em silêncio a próxima tragédia?

É importante a gente começar explicando que aquela situação dos presídios do norte e nordeste do país não está mais nas primeiras páginas não porque esteja totalmente resolvida, mas porque não tivemos mais nenhum evento novo, digamos assim. O que está acontecendo ali é: quem toma conta do cotidiano nos presídios do Brasil – em uns mais que em outros – são os presos. Eles organizam a rotina, as tarefas, o tempo. Em alguns presídios, como em Manaus, eles retiraram as grades e ficam circulando pelo pátio e demais dependências do presídio de acordo com o desejo de cada um. Pois bem, isso não é uma posição libertária do Estado, que democratiza a gestão dos presídios. É, antes uma medida de economia por parte dos governos, porque é mais fácil e menos custoso ir deixando os internos fazerem o que querem, sem conflitos, do que enfrentar e se posicionar. E, quanto mais o Estado abre mão dessa administração, mais os presos a ocupam e mais difícil fica de reverter. A situação dos presídios é intolerável no Brasil e eles são superlotados exatamente como em outros países.

Por que atingimos esse estágio? E quais as causas dessa tragédia?

A causa de tanta violência é uma guerra entre facções. Para entender, a gente precisa voltar um pouco no tempo. Há cerca de 30 anos, o Comando Vermelho, um dos primeiros sindicatos de presos do Brasil, começou a mandar nos criminosos presos. Esse grupo nasceu quando os assaltantes de banco presos começaram a observar que os presos políticos, ocupantes de celas próximas no presídio de Ilha Grande, conseguiam muito mais conquistas. Como? Eram mais organizados e, por isso, conseguiam mais. Os assaltantes comuns começaram a fazer o mesmo. Assaltante de banco não é ladrão de galinha, é uma carreira, eram caras muito espertos e logo entenderam que essa organização daria o controle do presídio e de fora dele. Assim nasce o Comando Vermelho que, por décadas dominou o crime dentro e fora dos presídios. A partir do Rio de Janeiro, espalhou-se para o Brasil. Quando esses detentos saíram da cadeia, levaram o CV para fora e fizeram dele uma organização forte, como a Camorra, ou a Máfia napolitana.

Estamos falando do fim dos anos 1970.

Sim, e por isso digo que saíram bem da cadeia. Além de se organizarem, voltaram para a sociedade no boom da cocaína, início dos anos 1980. Era o auge do consumo nos Estados Unidos e o consumo era espantoso. A coca chegava no Brasil e era originalmente controlada pelos bicheiros, por exemplo, mas logo os presos passam a gerenciar esse negócio milionário e fazem o próprio dinheiro. O morro Santa Marta foi o primeiro grande ponto de distribuição de cocaína.

E o Comando Vermelho dominou o tráfico de droga por quanto tempo?

Durante mais de 30 anos, era a maior organização. Depois, de dentro das cadeias, começam a aparecer rachas, divergências e então surgem grupos como o 3º Comando, por exemplo, e o Amigos dos Amigos, o ADAS. Cada um que surgia virava inimigo do outro e, assim, foram se alinhando. Nos anos 1990, houve dois momentos importantes. Primeiro, a transferência de presos perigosos para o presídio de Taubaté e, logo depois, o massacre do Carandiru. A partir da matança dos presos pela polícia paulista em 1992, os presos iniciaram um discurso que atraiu muitos simpatizantes: paz, justiça e liberdade. Ou, em outras palavras, o Primeiro Comando da Capital, o PCC, surge com a ideologia de que o Estado não é confiável e que só os irmãos se protegem. É o partido do crime, como eles dizem, inimigos do Estado e dos outros grupos. Com esse discurso forte, ganham o controle do estado inteiro e começam a se espalhar pelo Brasil. Rapidamente, o PCC chega ao Paraná e a Mato Grosso do Sul. São as chamadas sementes.

Passamos a conhecer então essa realidade das grandes rebeliões.

Todas controladas pelo PCC, que domina a rota da cocaína. É coisa de grande escala mesmo. Ultrapassa Mato Grosso do Sul e Paraná e segue com o projeto de expansão. Quanto maior a expansão, maior a reação. Os presos locais não queriam ser dominados por forasteiros. Essa insatisfação abre espaço para os outros sindicatos de presos crescerem e ganharem espaço. O CV se beneficia disso. E os embates entre as facções são conhecidos e vem crescendo nos últimos dois anos e meio ou três anos. Os grupos rivais brigam entre si dentro e fora da cadeia pelo controle do tráfico de drogas, de cocaína em especial. O PCC hoje tem o controle, mas o Comando Vermelho está lutando para conquistar a rota.

O senhor disse que o embate entre as facções já era conhecido há dois ou três anos. E o Estado não atuou?

Se não era conhecido, devia ser, porque os grupos dão indícios fortes. Veja só: o Comando Vermelho, por anos, controlou a Rocinha, no Rio de Janeiro. Mas o PCC começou a crescer naquele estado e se aliou ao Amigo dos Amigos. O que aconteceu? O ADAS ganhou o controle da Rocinha e expulsou o CV dali, depois de muitos anos!

E como isso se espalha para o restante do país? Temos os episódios recentes em Manaus, Boa Vista e em Alcaçuz, Rio Grande do Norte.

Então vamos lá: os grupos sinalizaram que não se tolerariam e que começariam a se matar. Em outubro de 2016, o PCC domina o presídio de Roraima e mata os membros das duas facções rivais: CV e Família do Norte, que são aliadas. Em dezembro, a FDN responde e mata presos ligados ao PCC em Manaus. Em janeiro, em Roraima novamente, o PCC reage e mata inimigos da Família do Norte. E, como resposta, uma semana depois, em Natal, o PCC matou líderes da Família do Norte. Repare como é ação e reação. Mas que só acontece porque eles todos vivem no mesmo ambiente, sem grades ou celas para separar e dominam fisicamente os presídio. O Estado não tem vez nem voz lá dentro. Hoje o PCC tem 12 mil associados, 200 mil sob influência e uma lista de meio milhão de interessados em apoiar e participar.

E em que momento estamos agora, professor?

Os grupos estão quietos, não se sabe se por conta da presença das Forças Armadas, ou se por acordo entre os detentos. O Estado está agindo lenta e suavemente, mas deveria estar buscando o controle perdido. Mas acontece que não há um plano para esse resgate do controle. O que o Estado poderia fazer sem um plano? Mandar todo o efetivo policial? Não dá assim, não tem estratégia.

E então lança mão de medidas paliativas.

Exatamente. O que só joga a crise para frente. Idealmente, o Estado deveria estar agindo em duas frentes, uma mais longa para retomar o controle dos presídios todos, inclusive criando penitenciárias diversas para cada tipo de preso; e outra mais curta, para apagar o incêndio.

Mas não foi por isso que os governadores pediram ajuda e o governo federal enviou as Forças Armadas?

Foi, mas as Forças Armadas não servem para esse papel. Não são treinados para isso, são talhados para a guerra e não para a retomada de presídios. Não é a medida mais eficiente. O que eles podem fazer? Colocar grades, fazer revistas, diminuir o número de armas e de celulares? Isso não resolve. A Força Nacional sim é a tropa de emergência para apagar esses incêndios.

Quais são os riscos reais de se colocar as Forças Armadas para tomar conta dos presídios?

O primeiro é a contaminação. Já aconteceu antes e foi bem grave. A proximidade de militares com detentos pode gerar casos de corrupção, de contaminação e esse seria o instrumento final dos criminosos. Imagine as Forças Armadas afinadas com as facções criminosas. Seria o golpe final. E isso não é suposição. Já aconteceu antes. Há alguns anos, o comandante militar do morro da Providência – não se sabe se por corrupção, por afinidade – entregou garotos de outro morro, de grupos adversários, aos traficantes daquele morro. Isso é muito grave. Por isso é necessário evitar ao máximo esse contato. A segunda razão é de tática e estratégia mesmo. As Forças Armadas não são treinadas para lidar com situações assim. Esses militares não têm a capacitação. Ou seja, o risco de acontecer uma tragédia maior por falta de experiência e treinamento é enorme. Estamos falando de mortes das duas partes. A terceira razão é que, mais uma vez, estamos colocando as Forças Armadas para cuidarem de assuntos civis. Isso é uma inversão da ordem e das regras. Não é bom, não resolve e cria novos problemas.

E onde está a Força Nacional?

Espalhada pelo país. O governo federal foi atendendo aos pedidos dos governadores e enviando tropas. Acontece que os governadores não gostam de deixar a Força ir embora, porque a sensação de insegurança aumenta. Desde 2002, grupos da Força Nacional vão para os estados e vão ficando por lá, por isso não temos um efetivo grande para resolver crises como essa dos presídios.

Ato contínuo às primeiras mortes, a reação da população já era notada. Uma boa parcela dos usuários de redes sociais achou uma boa ideia presos se matarem, porque assim seriam menos bandidos para o cidadão de bem custear. Como o senhor avalia essa postura?

É uma bobagem atroz. Deixando de lado o elementar no que tange aos direitos humanos, que nem vale a pena discutir com quem usa desses argumentos, a experiência e a visão desses episódios ligados ao crime provam que, na prática, quem ganha a briga na cadeia são os piores presos, os mais cruéis e os mais organizados. Imagine tentar conter gente assim, que se sobressai na desumanidade… Veja, se uma facção ganhar e, sozinha, dominar tudo, na verdade o inimigo estará maior e mais forte. É de gente assim que o cidadão de bem quer se defender? É muito mais difícil combater este inimigo brutal e fortalecido. E tem mais uma coisa: uma organização de presos briga pelo poder dentro da cadeia e pelo dinheiro fora dela e quando luta fora dos muros do presídio, sobra para a população pobre, preta e da periferia, que vai morrer de tiro, de ônibus queimado. É isso que acontece quando uma facção ultrapassa os muros porque ficou grande e forte. Quanto mais forte é o inimigo, mais difícil é de controlar. Se o Estado não domina enquanto há rachas nas facções, imagine se uma só delas tiver o controle. E para cortar de vez essa conversa, pergunte a qualquer especialista em segurança, qualquer um, o que o endurecimento do Estado em casos como o do massacre do Carandiru trouxe. Redução da criminalidade? Não. União dos presos, eles encontraram um inimigo comum e se fortaleceram. Esse discurso não resolve.

Especialistas sugerem mudanças na legislação que regula os encarceramentos. A ideia é que, prendendo menos, se consiga reduzir também os conflitos e o número de crimes que nascem dentro dos presídios. O senhor acha que esse é um caminho?

Eu não sou jurista e não posso opinar sobre legislação, pelo menos não sobre como seria a melhor lei. No entanto, pela experiência e pela observação, não há dúvidas de que quanto menos detentos houver nos presídios, menos gente haverá para compor as facções. Principalmente quando são criminosos novinhos, que estão começando no crime e não cometeram violência. Esses não devem ficar em contato com os mais perigosos de jeito nenhum, porque acabam virando recrutas para as facções. Ter uma regra clara para penas alternativas, tornozeleira, regime semiaberto é fundamental para que não haja essa mistura e menos detentos sejam conquistados para as facções.

Idealmente, o que os especialistas em segurança pública acham que deveria ser feito para reverter essa situação e chegarmos a uma condição mais civilizada e controlada nos presídios?

Primeiro, como emergência, entrar nos presídios, fazer revistas, impedir a entrada e a circulação de armas e celulares. Todo o efetivo da Força Nacional devia estar direcionado para isso, porque à ação do Estado, os criminosos vão reagir não só dentro do presídio, mas principalmente fora, matando gente, tocando o terror e incendiando ônibus. A Força Nacional poderia minimizar essa reação. Depois, os estados deveriam retomar o controle dos presídios, do dia a dia, e impedir que a guerra entre facções prosperasse. Por fim, o Estado tinha de reorganizar os presídios e, vá lá, até construir novos, mas com objetivos diferentes, para presos que cometeram crimes diferentes, para evitar que o cara que roubou comida aprenda a sequestrar e a assaltar banco. A construção de presídios sozinha não ajuda, alivia a superlotação num primeiro momento, mas depois tudo volta ao normal. Por fim, não tem segredo, alguns presos não se recuperam, mas outros, a maioria, sim. E ressocializar significa: estudar e ter oportunidade de trabalho. Nossos detentos não tem primeiro grau completo e não têm profissão. Quando estudam, aumentam as perspectivas e quando trabalham, diminuem o tamanho da pena e ainda podem ajudar a família. A chance desse preso que estuda e trabalha reincidir do crime cai muito. E todos queremos menos criminosos, certo?

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