Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Assim que tomou posse, no dia primeiro de janeiro passado, o presidente da República, Jair Bolsonaro, fez questão de divulgar uma lista com 35 prioridades que deveriam ser encaminhadas ainda nos 100 primeiros dias de sua gestão. Entre as metas, está um projeto que autoriza e regulamenta a educação domiciliar, ou homeschooling, como é conhecido internacionalmente. A iniciativa está sob a responsabilidade não do MEC, mas do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves. A intenção da pasta é divulgar oficialmente o texto do projeto na primeira quinzena de março.
Atualmente, o Brasil não admite essa modalidade de ensino, feita em casa, por pais, professores ou tutores. Aliás, provocado sobre essa possibilidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) avaliou e votou contra o homeschooling, em setembro de 2018. Os ministros alegaram que a Constituição é bem clara ao prever apenas o modelo de ensino público ou privado – a matrícula de crianças acima de 6 anos nessas instituições de ensino é obrigatória, e os pais que não o fizerem podem ser penalizados.
Uma reportagem do jornal Folha de São Paulo, publicada em 14 de fevereiro (data em que originalmente estava previsto o envio da primeira versão do projeto à Câmara dos Deputados), trouxe dados sobre educação familiar no país. De acordo com o texto, “cerca de 5.000 famílias brasileiras são praticantes do homeschooling. A estimativa é da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned). A prática teve início no Brasil nos anos 1990 e vem conquistando a cada ano mais adeptos. Na última pesquisa realizada pelo grupo, em 2016, o número de famílias adeptas era de 3.200. Hoje, o Brasil não possui regulamentação sobre educação domiciliar. Por isso, quem deseja ensinar os filhos em casa precisa recorrer à Justiça para obter autorização, sem a certeza de que irá obtê-la”.
Para o educador e coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, Daniel Cara, o projeto traz muito mais preocupações e riscos do que boas ideias – até porque, reforça, se choca com a Constituição Federal. “Em primeiro lugar, tramitar essa questão por MP é inconstitucional. A Medida Provisória é um ato do presidente da República, com força imediata de lei, sem a participação do Poder Legislativo, que somente será chamado a discuti-la e aprová-la em momento posterior. Ou seja, é um fato consumado, que pode ser revisto e, até, descartado pelo Legislativo. Mas já começa valendo”, alerta o especialista, com quem a reportagem da Giz conversou com exclusividade, por e-mail, no dia 12 de fevereiro, já que ele estava na Costa do Marfim participando de um evento ligado a Educação. Cara reforça: para um tema como educação domiciliar – que merece discussão profunda e sem pressa –, a MP representaria um abuso por parte do Executivo, ainda mais quando o STF já se pronunciou, contrariamente, a respeito do assunto.
No campo político, chama atenção e causa estranhamento o fato de a medida provisória estar no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e não sob a tutela do Ministério da Educação, onde naturalmente deveria tramitar a questão. Entra em cena, aqui, a prevalência de uma visão de uma cultura individualista e moralista, em detrimento de uma prática coletiva e pautada por sociabilidades. A Constituição Federal, afinal, estabelece a Educação como um direito social, a ser garantido pelo Estado. Mais que isso, encaminha para a construção de políticas públicas que façam chegar às pessoas a possibilidade de usufruir da educação escolar como uma experiência republicana e iluminista. Ou seja, o homeschooling mudaria a concepção de educação no Brasil, porque entenderia que a família está acima do Estado.
Para Cara, “o homeschooling bolsonarista quer demonizar o espaço escolar, disseminando uma ideia absurda e mentirosa de que ele é amoral. A triste realidade é que o homeschooling e o Escola sem Partido colocaram as escolas no centro da guerra cultural bolsonarista, que serve fundamentalmente para amealhar militantes e apoiadores para a ultradireita – a partir da mentira astuta contra as escolas e contra a pedagogia”. Mostra-se, assim, a face sombria do projeto, que se traveste de “defensor da livre escolha”. Outra ameaça, ele ressalta, é “a demonização do espaço escolar, pois dificilmente a educação domiciliar terá matrículas em grande escala, que não tem viabilidade prática. A convivência com alunos e professores nas escolas é fundamental pedagogicamente e compreende o direito à educação, que vai muito além da mera instrução”. Há ainda, lembra Cara, no projeto do governo e nas demais declarações que tangenciam a educação uma tentativa feroz de ferir a obra e a relevância do professor Paulo Freire, considerado um dos grandes pensadores da Educação, reveenciado no mundo todo.
O projeto do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos se afina ainda perigosamente com a ladainha do Escola sem Partido, que também é a cantilena da Aned. Em entrevista à Carta Educação, o presidente da Associação explica que “um dos motivos para os pais tirarem seus filhos da escola é a ‘doutrinação ideológica”. Tudo indica que há, no governo federal, o propósito de transformar o professor em vilão. “É um dos inimigos do bolsonarismo, seja por ser injustamente rotulado como doutrinador de esquerda, seja como alguém que deseja colaborar com a emancipação dos alunos”, avalia Cara, alertando que o “o professor será atacado de todas as formas, tanto na redução de seus direitos profissionais, como salário e carreira, quanto nos elementos para o exercício do magistério e na liberdade de cátedra”.
O coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação entende que há coerência na ideia de educação fora da escola tradicional e na oferta de cursos à distância. Trata-se de uma estratégia, inclusive econômica, que cresce e ganha forças no âmbito federal. “A questão é que a EaD mobiliza muitos mercados e barateia o custo da matrícula, por ser precarizada. Com Bolsonaro, ela deve crescer, podendo avançar do ensino superior para a educação básica. E isso preocupa muito”, reforça.
As redes que atuam no campo da Educação estão de sobreaviso. Quando a medida provisória chegar ao Congresso, ela já tem força de lei e, por isso, sua tramitação pode ser mais rápida que os projetos de lei apresentados por parlamentares. Durante os 60 dias seguinte à chegada, os deputados e, posteriormente, os senadores avaliam e discutem o teor do documento e fazem sugestões de alteração. Cabe às duas Casas também decidir se a proposta vira lei permanente. Depois de passar pela Câmara e Senado, caso tenha sido aprovado, o documento segue para o Presidente da República, que pode vetar parcial ou integralmente o texto, ou sancioná-lo integralmente.
Enquanto isso, os professores devem também se manter alertas e agir com inteligência para enfrentar possíveis ataques de qualquer natureza. Cara faz coro com outros educadores já ouvidos pela Revista Giz e sugere que não se responda às provocações de maneira voluntarista, que o professor se apoie em grupos e entidades de classe, como os sindicatos e associações, para que, todos juntos, mobilizem familiares e alunos em nome da preservação de direitos e da garantia da educação de qualidade para todos, “essa sim uma causa real da educação”, finaliza.