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Educação

Educação e combate a preconceitos

By 06/02/2019No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Luana Tolentino é historiadora e professora da rede oficial de ensino na grande Belo Horizonte, em Minas Gerais. Com um bonito trabalho de inclusão e combate aos preconceitos desenvolvido há anos nas salas de aula do ensino fundamental, tornou-se nacionalmente conhecida há pouco mais de um ano, e por conta de um episódio tão comum quanto lamentável, que relatou com detalhes em suas redes sociais, em julho de 2017.

“Eu estava a caminho da escola e era de manhã, muito cedo. Uma senhora, que não conheço e nunca mais vi, me parou na rua e perguntou se eu fazia faxina. Respondi que não, que fazia mestrado e era professora de história”, relembra. O post teve rápida repercussão e a postura de Luana à abordagem arrancou elogio dos internautas. “A senhora não respondeu nada, nem poderia, ficou muito constrangida e foi embora. Fiquei impactada, mas segui para a escola, porque vieram à tona os muitos anos de ressignificação do lugar do negro, do pobre, que no Brasil, ou é escravo ou é subalterno, nunca doutor”, reforça a também pesquisadora em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Luana voltou a ganhar espaço na mídia no final do ano passado – dessa vez, porque decidiu reunir num livro (Uma outra educação é possível, lançado em dezembro pela Mazza Edições ) suas experiências nas aulas, construindo um caminho de troca com os estudantes; justamente a partir da prática e das vivências dela, a obra sugere boas reflexões e a possibilidade de ações pedagógicas concretas contra o racismo, a favor da inclusão e capazes de mirar um mundo menos machista e mais solidário.

O trabalho é resultado de mais de 10 anos de práticas pedagógicas que a autora não teme em classificar como feministas, inclusivas e antirracistas. Em tempos como o que o Brasil atravessa – quando, entre tantos outros retrocessos, a questão de gênero é condenada pelo discurso intolerante do governo federal e a população LGBT é ceifada dos programas oficiais de proteção –, chega a ser uma atitude corajosa e de bonita resistência colocar a obra à disposição do público. “Não fiz um manual, porque cada escola é única, cada turma é única e cada aluno é único, mas trouxe experiências e ideias que podem ser trabalhadas pelos colegas em outras instituições”, explica a historiadora.

O ponto de partida de Luana é buscar o que há de comum nas escolas e salas de aula do Brasil: as mazelas. “Os problemas, todos nós já conhecemos muito bem, convivemos com eles a cada dia. O que o livro propõe é que o professor inicie daí sua jornada de transformação, porque eu acredito que a educação transforma por ser um ato político, como diria Paulo Freire, mas desde que a sala de aula seja lugar de criar, de inventar”, inicia. O marco zero para essa maneira de trabalhar é encarar a realidade, conhecer o contexto e fazer perguntas sobre por que os problemas enfrentados são aqueles, quais as origens, quais as consequências.

“Os alunos são a chave. Eles são críticos, conhecem a realidade, e têm sede de saber por que chegaram nesse ponto. Aí entram a História, a Geografia, a Língua Portuguesa, as Ciências. As disciplinas devem ser pontes para buscar essas respostas”, sugere a professora. O resultado mais imediato, de acordo com Luana, é a tomada de contato com os direitos que os jovens têm e que são, por vezes, negados; e a identificação dos potenciais opressores: quem são os atores que levaram a situação até esse ponto? Em termos pedagógicos, essa trajetória é chamada de busca pela autonomia e descoberta da cidadania.

Quando se encontra o ponto sensível de cada turma – aquele assunto ou mazela que causa indignação, irritação ou motivação nos meninos e meninas –, os estudantes viram aliados da proposta. Abraçam a causa e passam a trabalhar como investigadores. “No livro, eu vou contando como, a partir dessa abordagem, pudemos trabalhar Direitos Humanos, questões policiais, estereótipos etc. Para o aluno se envolver, ele precisa ser muito ouvido e respeitado”, sugere a autora de Outra educação é possível. Mesmo quando o aluno defende a violência, a pena de morte, o linchamento, a diferença de gêneros e similares, é importante acolher e trazer para a roda a discussão. “A concorrência de referências é cruel. Os programas de TV, os vídeos no Youtube e as mensagens de WhatsApp jogam contra eles próprios, mas é o que os alunos têm, é o que trazem, e até para desconstruir essa ideia e passar novas visões, é preciso abrir espaço para o conhecimento prévio do adolescente”.

Afeto contra o medo

Justamente por permitir que o aluno compartilhe suas percepções de mundo, Luana acredita que tem alcançado um patamar que julga seguro para atuar. O respeito às leituras de mundo do aluno e a investigação de fatos e contextos fazem com que o adolescente se sinta amparado. “E, em vez de revolta, ele sente afeto pela turma, pelo professor, e abraça a metodologia e a partilha dos saberes. Por isso eu não tenho medo nenhum, nem de Escola de Sem Partido, nem de patrulha contra minha atuação. Meus alunos são parceiros e, uma vez que eles aprendem a investigar, conhecer, propor e agir, eles viram os protagonistas e eu, só a orientadora”, garante Luana.

Há, no livro, alguns exemplos de projetos desenvolvidos pelos estudantes, com apoio da professora. Os meninos e meninas da escola de Presidente Vespasiano, na região metropolitana de Belo Horizonte, produziram um vídeo inspirado num funk de repúdio à pobreza. Outras turmas refizeram a rota entre África e Brasil através de cartas entre remetentes e destinatários daqui e de lá. Promoveram até um jogo de futebol entre falantes de língua portuguesa de países diferentes. Uma mulher descendente de indígenas também aportou num espaço da comunidade para contar sua história às crianças e jovens da escola. “A gente vai inventando e os alunos vão topando, porque o que impede o conhecimento consciente é uma espécie de envenenamento. E dá para desenvenenar com leitura, discussão, reflexão”, insiste Luana.

O antídoto para o veneno do preconceito, ou do machismo, ou da exclusão, ela defende, é a esperança, no sentido de sair do lugar da queixa, da destruição de tudo e de se colocar no lugar de quem acredita e batalha para mudar. Ler Carolina Maria de Jesus ou Chimamanda Ngozi Adichie, outras vozes, ajuda. Buscar memórias de família, para dar sentido à origem e à história, também colabora. “E escrever. Cartas, diários, pensamentos, tudo ajuda a criar esse espaço de reflexão e esperança que é negado, muitas vezes, desde que os estudantes são muito pequenos”, propõe.

O fundamental, assegura Luana, é que o professor se coloque no processo educativo não como um transferidor de conteúdos, mas como um guia pelos caminhos do saber, da autonomia e da cidadania. Tempos que flertam com as trevas só podem ser dispersados com a iluminação, a racionalidade dos métodos, a investigação ética e a solidariedade entre os pares. “O professor é a peça-chave, através dele se dá o diálogo, o respeito e o método para conhecer, investigar. Através dele também se experimenta a postura de ouvir, acolher e discutir. Ele é o porta-voz da esperança e, os alunos, a semente da mudança”, conclui.

Outra educação é possível é voltado para professores, mas também pode ser lido por profissionais que se interessam pela educação de crianças e jovens. Escrito numa linguagem acessível e cheio de exemplos, pode ser uma inspiração para quem teme ver sua atuação cerceada por políticas de repressão ao livre pensar.  A obra tem 120 páginas e preço de capa de R$35.

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