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Educação

Os tortuosos caminhos de uma mina de dinheiro

By 08/12/2017No Comments

Por Celso Napolitano [1]*

Introdução

O Brasil passou a ser, desde meados dos anos 1980, uma fronteira em constante expansão para grandes grupos de ensino privado, em especial nos cursos universitários. Ainda que o país apresente acentuadas desigualdades sociais e as últimas três décadas sejam pautadas por oscilações na Economia, o mercado interno se consolidou como polo dinâmico do desenvolvimento, algo que se delineava desde os anos 1930.

Este livro busca apontar as principais características dessa história recente. Tenta mostrar como e porque a o aumento do número de vagas em instituições de ensino superior se deu em sua maior parte através do setor privado – com decisivo apoio estatal – e pretende evidenciar porque nos tornamos tão atraentes para essa modalidade de negócio.

Nesse roteiro, estabelecimentos de ensino de porte local ou regional têm sido adquiridos por grandes grupos nacionais e estrangeiros de capital aberto, com ações disputadas nas bolsas de valores e no qual a característica pedagógica passa a ser um detalhe do investimento.

Dessa forma, a marca dos novos tempos é a migração das notícias sobre estabelecimentos educacionais das seções de pedagogia da grande mídia para as editorias de negócios e finanças.

O curioso é que as empresas de Educação se valeram – e fizeram lobby – por um artigo da Constituição de 1988 que era de interesse também dos setores democráticos. Trata-se da demanda pela autonomia universitária. No setor público, esta se apresenta como reivindicação antiautoritária no que toca ao conteúdo e à gestão. No setor privado, ela se refere à autonomia para todo tipo de transação comercial.

Como isso aconteceu? Por que Educação virou, antes de tudo, um grande negócio?

Vale a pena sintetizar os tortuosos caminhos percorridos até aqui. Vamos recuar quatro ou cinco décadas.

Os excedentes e as mudanças

Um jovem de classe média baixa que chegasse ao fim do ensino médio nos anos 1960-1980 tinha reduzidas expectativas de entrar em uma universidade pública, extremamente disputada, ou em uma instituição privada, em geral elitizada.

Esse contingente, que demandava vagas inexistentes ou inacessíveis, era conhecido pelo nome de “excedentes”. Quem obtivesse uma nota superior a cinco nos vestibulares, mas não estivesse entre os primeiros postos da lista, ficava fora do ensino superior.

Visando contornar o problema, a ditadura, no governo Artur da Costa e Silva (1967-1969), decidiu efetuar, através de lei ordinária, o que se denominou de reforma universitária. Isso incluía mudar os vestibulares. Regulamentados no país desde 1911, suas provas até ali eram eliminatórias, com uma nota de corte predeterminada.

A Lei 5540, de 28 de novembro de 1968 alterou suas regras em um parágrafo aparentemente secundário:

Art. 17. Nas universidades e nos estabelecimentos isolados de ensino superior poderão ser ministradas as seguintes modalidades de cursos:

a) de graduação, abertos à matrícula de candidatos que hajam concluído o ciclo colegial ou equivalente e tenham sido classificados em concurso vestibular;

A expressão “tenham sido classificados” mudou o caráter do exame. Não se tratava mais de um teste eliminatório, no qual conta uma nota mínima, mas de um concurso que classifica os melhores.

A novidade possibilitou tentar ampliar a reduzida oferta de vagas diante da demanda crescente.

Para dar conta da situação, o regime agiu em duas frentes. A primeira foi implantar pelo menos uma universidade federal em cada unidade da federação, especialmente durante a gestão de Ernesto Geisel (1974-1979). A segunda foi incentivar a expansão da rede privada. Foi dada prioridade aos cursos de maior demanda, como medicina, direito e engenharia. No caso dessa última carreira, havia o fato de o chamado milagre brasileiro (1969-1974) necessitar de engenheiros e técnicos para gerenciar obras de grande porte.

A reforma universitária também mudou a estrutura organizacional das instituições públicas. A principal característica foi acabar com as cátedras e introduzir os departamentos, como base organizacional, em seu artigo 12, parágrafo 3º:

O departamento será a menor fração da estrutura universitária para todos os efeitos de organização administrativa, didático-científica e de distribuição de pessoal, e compreenderá disciplinas afins.

Tal estrutura modernizou as instituições e contribuiu para materializar o estipulado em seu artigo 3º:

As universidades gozarão de autonomia didático-científica, disciplinar, administrativa e financeira, que será exercida na forma da lei e dos seus estatutos.

Ao mesmo tempo, o regime definia a indicação de reitores como prerrogativa de governo, no caso das públicas, e como prerrogativa de seus próprios estatutos, no caso das particulares.

Depois do AI-5

Três meses depois da reforma universitária, em 11 de fevereiro de 1969, o governo apresentou nova regulamentação, estabelecendo “normas complementares à Lei 5540”. Dessa vez, a iniciativa veio como Decreto-lei nº. 464 – ou seja, prescindia de aprovação congressual – e alertava:

“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, DECRETA:”.

(No meio da história, havia o Ato que se tornou conhecido como o golpe dentro do golpe, cuja característica maior foi endurecer ainda mais o regime).

Vale a pena ler o seguinte trecho:

Art 1º A Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, será executada com as disposições complementares estabelecidas no presente Decreto-lei.

Art 2º Será negada autorização para funcionamento de universidade instituída diretamente ou estabelecimento isolado de ensino superior quando, satisfeitos embora os mínimos requisitos prefixados a sua criação não corresponda às exigências do mercado de trabalho, em confronto com as necessidades do desenvolvimento nacional ou regional.

(…)

2º O reconhecimento das universidades e dos estabelecimentos isolados de ensino superior deverá ser renovado periòdicamente, de acordo com as normas fixadas pelo Conselho Federal de Educação.

(…)

Art 18. Dentro do prazo de noventa (90) dias a contar da vigência dêste Decreto-lei, as universidades e os estabelecimentos isolados de ensino superior submeterão ao Conselho de Educação competente os seus estatutos e regimentos adaptados às prescrições da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, e do presente Decreto-lei.

Traduzindo-se para o português claro, o governo Costa e Silva reduziu a pó a autonomia universitária. Para o setor público, isso significava controlar e coibir atividades que contestassem o regime. Para o setor privado, equivalia a interferir na liberdade dos negócios.

Apesar disso, seguia em vigor um dispositivo legal pré-golpe. Era um parágrafo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1961:

Art. 107. O poder público estimulará a colaboração popular em favor das fundações e instituições culturais e educativas de qualquer espécie, grau ou nível sem finalidades lucrativas, e facultará aos contribuintes do imposto de renda a dedução dos auxílios ou doações comprovadamente feitos a tais entidades.

Ao estipular que as faculdades privadas não tivessem finalidades lucrativas, os legisladores não tinham por meta impedir o lucro – algo inviável em qualquer  negócio capitalista -, mas alterar a apropriação do lucro. Este não poderia ser privado, mas teria de ser reinvestido na própria instituição.

Mesmo assim, havia burlas. Os grupos mantenedores faziam várias manobras legais para se apropriarem do excedente, como realizar obras superfaturadas por empreiteiras ligadas aos proprietários, transações intragrupos etc. Uma das manobras consistia em se alugar a sede física – de propriedade de algum membro da sociedade – como se fosse negócio de terceiros.

Por duas décadas, esse panorama se manteve. A expansão privada se deu através de estabelecimentos confessionais, fundações de direito privado ou público e empresas familiares.

Autonomia e setor privado

A Constituição de 1988 veio a alterar esse quadro. A luta pela autonomia universitária – demanda de estudantes e professores, no bojo de amplas manifestações pelo fim da ditadura – veio, curiosamente, a favorecer as pretensões do setor privado.

A questão seria redefinida por um artigo da Carta:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

(…)

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:

I – cumprimento das normas gerais da educação nacional;

II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Outra conquista da Carta foi a definição clara das porcentagens orçamentárias que deveriam ser destinadas ao setor:

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

A esse, se soma outro artigo:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

A partir daí, houve aumento significativo do investimento público em Educação e o país teve de cumprir metas de universalização junto a organismos internacionais ou multilaterais.

É bom atentar para o fato de que a Constituição interrompe uma trajetória de queda dos investimentos, notada entre 1973 e 1987 e retoma uma curva ascendente que vinha desde o final do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945).

O economista Paulo Rogerio Rodrigues Maduro Junior[2] utilizou dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira  (Inep) para compor o gráfico abaixo, que demonstra a progressão dos gastos de 1933 em diante:

O efeito mais visível do investimento pós-1988 é a universalização da educação fundamental e do ensino médio.

Foi algo extremamente positivo. O analfabetismo foi praticamente erradicado, em especial nos grandes centros, como mostra o gráfico. Se atentarmos para o intervalo 1980-2010, verificamos que a taxa caiu em quase três vezes.

Apesar disso, um problema foi notado. O aluno egresso do ensino médio, em grande parte, não encontrava colocação no mercado de trabalho. Ele dominava alguns conteúdos em nível instrumental –  matemática, física, química etc. – mas não tinha uma “profissão” ou uma qualificação específica, na visão desse mercado. E persistia, de outra forma, a frustração sentida décadas antes, com os excedentes. Esse estudante recém-formado não encontrava caminhos para chegar a um curso superior, forma tida como segura de ascensão social.

Nesse ponto, havia dois fatores objetivos a incentivar o aumento da oferta de vagas superiores. O primeiro era uma difusa pressão social, que se acentuara. O segundo é que a volta da autonomia universitária abria oportunidades para uma verdadeira independência operacional das empresas de educação. Como pano de fundo, existia uma relativa estabilidade monetária, desde 1994, com o advento do Plano Real. A essas condições, nos governos de Lula (2003-2011), se agregaria uma tendência constantes reduções das disparidades de renda entre os assalariados e a ampliação do crédito, em um cenário de bonança internacional.

Expansão privada

O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – em sua lógica mercadista – definiu que a expansão de vagas se daria pelas instituições privadas. Não se criou nenhuma Universidade pública em seus dois mandatos.

Nessa direção, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996), estabeleceu parâmetros da educação superior e detalhou como se daria a autonomia universitária:

Art. 53. No exercício de sua autonomia, são asseguradas às universidades, sem prejuízo de outras, as seguintes atribuições: I – criar, organizar e extinguir, em sua sede, cursos e programas de educação superior previstos nesta Lei, obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do respectivo sistema de ensino;

X – receber subvenções, doações, heranças, legados e cooperação financeira resultante de convênios com entidades públicas e privadas. Parágrafo Único. Para garantir a autonomia didático-científica das universidades, caberá aos seus colegiados de ensino e pesquisa decidir, dentro dos recursos orçamentários disponíveis, sobre: I – criação, expansão, modificação e extinção de cursos; II – ampliação e diminuição de vagas; III – elaboração da programação dos cursos; IV – programação das pesquisas e das atividades de extensão; V – contratação e dispensa de professores; VI – planos de carreira docente.

O artigo 53 foi fruto da pressão das empresas privadas. Curiosamente, como na Carta de 1988, era também uma reivindicação dos defensores da escola pública. Os motivos eram diversos. Para as primeiras, autonomia tinha a ver com livre-empresa, para outros, com liberdade de pensamento.

Ao mesmo tempo, se regulamentava uma série de tópicos das instituições públicas, liberalizava vários outros das empresas privadas. De certa forma, a LDB preconizou a inexistência de regulamentação do ensino privado, sem a obrigatoriedade de valorização e investimento na qualificação do corpo docente, consolidou o regime de trabalho remunerado por hora-aula e condenou o professor a financiar sua própria qualificação, porta de entrada no ensino superior.

Os exemplos estão em dois artigos da legislação. O de número 13 se volta claramente para o professor das instituições particulares:

Art. 13. Os docentes incumbir-se-ão de:

I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;

III – zelar pela aprendizagem dos alunos;

IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento;

V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional;

VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.

O de número 67, por sua vez, remete ao professor do ensino público:

Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:

I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;

III – piso salarial profissional;

IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;

V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;

VI – condições adequadas de trabalho.

Ou seja, ao invés de equalizar por cima as exigências para as duas modalidades, a LDB consagra duas modalidades distintas de gestão.

Coroando a questão, com um lobby fortíssimo, abriu-se a possibilidade da atividade ser lucrativa, ou seja, de não reinvestir seu excedente na própria atividade, e de não terem de prestar contas a ninguém.

Com o advento da LDB, as universidades públicas conquistaram autonomia, para serem de Estado e não de governo.

E as particulares se aproveitaram da prerrogativa para criar e fechar o curso que quisessem, sem autorização do MEC, que seguiria apenas supervisionando a qualidade de cada um deles. Repetindo: a autonomia foi aqui entendida como autonomia comercial e financeira. Faculdades isoladas não gozam desse direito.

Desse ponto em diante, tornou-se vantajoso para os investidores no setor buscar transformar seus negócios em universidades.

Além disso, é preciso dizer que antes da LDB só existiam duas figuras jurídicas para o ensino superior: escolas isoladas e universidades. Nesta última havia uma série de exigências de ensino, pesquisa e extensão.

Após a sanção da LDB – por interferência direta do então ministro da Educação, Paulo Renato de Souza – sacramentou uma nova figura jurídica, como ponto intermediário entre as faculdades isoladas e as universidades. São os chamados centros universitários. Teriam a vantagem da Universidade – autonomia – sem ter suas obrigações em ensino, pesquisa e extensão.

Mais tarde, o decreto nº 5.773, de 9 de maio de 2006 – já na gestão Lula – , que estabelecia normas sobre a regulação, supervisão e avaliação de instituições de Ensino Superior, definia o seguinte:

Art. 12.  As instituições de educação superior, de acordo com sua organização e respectivas prerrogativas acadêmicas, serão credenciadas como:

I – faculdades;

II – centros universitários; e

III – universidades.

Tensão no Conselho

O Decreto de 2006 veio apenas a reafirmar uma situação que já existia de facto desde a década anterior. A LDB suscitou uma verdadeira corrida das grandes empresas para obterem o título de universidade.

Cada demanda desse tipo tem de ser julgada no Conselho Nacional de Educação (CNE). Embora exista desde 1931, o Conselho teve suas atribuições alteradas ao longo do tempo, mantendo a característica de órgão normativo do Ministério da Educação. Em 1961, o colegiado foi reformulado, passando a se chamar Conselho Federal de Educação (CFE). Em outubro de 1994, o CFE foi transformado novamente e voltou a se chamar Conselho Nacional de Educação. teve suas atribuições e composição definidas pela Lei 9.131, de 1995. Seus 24 membros são indicados pelo presidente da República e metade é constituída por personalidades de fora do governo.

Desnecessário dizer da pressão efetuada por empresas e entidades na montagem do coletivo.

O CNE, segundo o site do MEC, delibera “sobre a autorização, o reconhecimento, a renovação de reconhecimento de todos os cursos de graduação das instituições de ensino superior vinculadas ao Sistema Federal de Ensino, sobre o credenciamento de instituições de ensino superior, assim como sobre a aprovação de Estatutos e Regimentos provenientes dessas instituições”.

Em agosto de 1997, ocorre um caso emblemático. Depois de meses de discussão, o CNE teria de deliberar sobre a autorização para que as Faculdades Anhembi-Morumbi, instituição privada de São Paulo, se transformasse em Universidade. A situação era polêmica. Alguns conselheiros alegavam que a empresa não preenchia os requisitos de “pesquisa e produção intelectual institucionalizada”.

Após tensos debates, a votação, na Câmara de Ensino Superior, que compõe o CNE, foi apertada: cinco conselheiros votaram a favor e cinco contra. O presidente se absteve.

A decisão criou tamanho incômodo, que o filósofo José Arthur Gianotti, que presidia o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e era amigo de longa data do então presidente FHC, demitiu-se em protesto, de forma ruidosa.
O repórter Fernando de Barros e Silva escreveu o seguinte, na Folha de S. Paulo de 21 de agosto daquele ano: “A votação abriu uma crise no conselho”.

Não havia debates sobre conteúdos, pedagogias, programas de pesquisa ou de extensão, mas apenas a verificação de como se explorar um promissor nicho de mercado.

A sucessora de Gianotti no Conselho foi a antropóloga Eunice Ribeiro Durham. Em julho de 201, ela desligou-se do conselho, afirmando, segundo a Folha de S. Paulo “Tem havido um crescimento desmesurado do sistema privado de ensino superior, que ameaça a credibilidade do sistema porque desequilibra a proporção público e privado”.

Um caso emblemático

A pouca importância dada à pesquisa pelas particulares pode ser evidenciada pelo juiz aposentado João Uchôa Cavalcanti Netto, fundador da Universidade Estácio de Sá. Em entrevista concedida em dezembro de 2001 ao jornal Folha Dirigida, ele foi de uma franqueza rude a respeito. Vejamos o que diz a reportagem:

Os conceitos sobre educação do fundador da universidade que mais cresceu no país nas últimas três décadas são, no mínimo, polêmicos. Juiz de formação e discípulo do banqueiro Amador Aguiar, de quem foi office boy e ‘pajem’, João Uchôa Cavalcanti Netto, 68 anos, acha que a ignorância é um opção que deve ser respeitada e que a pesquisa é uma ‘inutilidade pomposa’. Entretanto, está à frente de uma universidade que tem 90 mil alunos e 30 unidades espalhadas pelo país, número que, em março de 2002, estará defasado, se o projeto de implantação de uma filial da Estácio de Sá além das fronteiras brasileiras obtiver êxito.

Em uma de suas respostas, ele é taxativo:

As pesquisas não valem nada. A gente olha todo mundo fazendo tese, pesquisa e tal, mas não tem nenhuma sendo aproveitada, raríssimo, é uma inutilidade pomposa, é uma perda de tempo federal. Aquilo ali vai dar um monte de título para o cara, ele vai arrumar um emprego bom e vai trocar cartãozinho com o outro que pesquisa também e fica aquela troca de reverência, para um lado e para o outro, mas a pesquisa em si não vale nada. As faculdades privadas não fazem pesquisa porque não querem jogar dinheiro fora. Estou hoje trabalhando muito, a gente estava com 137 pesquisas em andamento, não tinha uma que prestasse. Parei todas elas e vamos começar a fazer pesquisa útil. E o que é pesquisa útil? É aquela que pode ser aproveitada pelo homem comum.

Hoje a Estácio é uma grande empresa, com a maior parte de seus alunos cadastrados no FIES.

Melhoria dos padrões de vida e o Fies

Nos governos de Luís Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, houve sensível melhoria no nível de vida, fruto do já mencionado quadro externo favorável. A demanda chinesa por commodities alavancou o setor exportador brasileiro, contribuindo para uma ligeira elevação da renda interna.

Com a demanda crescente e com as empresas educacionais se viabilizando, a solução vislumbrada pelo governo foi juntar as duas pontas, com forte empurrão do Estado.

Assim, em 13 de janeiro de 2005, o presidente Lula sanciona a Lei nº 11.096, que cria o Programa Universidade Para Todos (ProUni). É voltado para alunos de baixa renda. O site do MEC assim o define:

É o programa do Ministério da Educação que concede bolsas de estudo integrais e parciais de 50% em instituições privadas de educação superior, em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, a estudantes brasileiros sem diploma de nível superior.

Até o final de 2013, o Prouni atendeu 1,2 milhão de jovens, matriculados em que 1.116 instituições privadas. O governo federal trocou mensalidade por isenção fiscal.

Com crescimento do país nesse período – o PIB cresceu a uma média de 3,5% ao ano -, criou-se uma fração da população que ascendeu socialmente, com uma renda maior do que a mínima para se utilizar o ProUni.

O governo então se valeu da Lei 12260, de julho de 2001, que criava o  Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), para dar- novo rumo ao programa, em 2010. Buscava-se financiar a totalidade das mensalidades, com prazos de pagamento facilitados. De acordo com o site do MEC,

(…) A taxa de juros do financiamento passou a ser de 3,4% a.a, o período de carência passou para 18 meses e o período de amortização para 3 (três) vezes o período de duração regular do curso + 12 meses. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) passou a ser o Agente Operador do Programa para contratos formalizados a partir de 2010. Além disso, o percentual de financiamento subiu para até 100% e as inscrições passaram a ser feitas em fluxo contínuo, permitindo ao estudante o solicitar do financiamento em qualquer período do ano.

O Fies é um grande programa de inclusão social. Financia todo o curso para o aluno. Este termina os estudos, tem um ano e meio de carência e paga 3,5% de juros ao ano. São juros negativos, dada a inflação brasileira! Ele salda essa taxa e o principal é acumulado. Depois, já formado, paga a faculdade em um período igual a 3,5 vezes o período cursado. Um curso de 4 anos é pago em 14 anos, em prestações mensais sem juros. Esses são pagos concomitantemente ao curso.

É um círculo virtuoso. Isso custaria muito pouco ao Estado, se desse certo. As faculdades de início ficaram desconfiadas e a procura não foi grande. Além disso, as instituições precisariam estar sem pendências com a Receita Federal, o que raramente acontecia. A maioria não tinham o Certificado Negativo de Débitos.

Para resolver a situação, o governo Lula aprova o primeiro Refis – Refinanciamento de débitos fiscais -, em junho de 2007. Isso aumenta o número de empresas aptas a se credenciar para oferecer o serviço.

O governo Dilma decidiu dar um passo adiante: abriu um programa de renegociação de débitos chamado Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies), em junho de 2012. As dívidas seriam refinanciadas em 15 anos, com bolsa do Fies, sendo que os primeiros 10% seriam pagos no primeiro ano. Os outros 90% seriam pagos em até 14 anos, como a instituição quiser. Ela pode ficar 13 anos sem pagar nada e saldar os débitos apenas no último ano. Todo mundo se credenciou.

O Fies é um certificado de isenção de impostos, todos, em troca de vagas. E o governo se comprometeu a recomprar os certificados não utilizados no pagamento de impostos pelo preço de face. O poder público se comprometeu a fazer isso 12 vezes ao ano. Verba carimbada, sem necessidade de autorização prévia.

Projeto positivo

O projeto inicial era positivo. O governo deveria estabelecer o preço da vaga e não a instituição privada. Isso não aconteceu. O Estado passou a comprar vaga pelo preço de vitrine, sem negociar valor mais baixo. Comprou vagas no atacado pelo preço unitário, garantindo não haver inadimplência. É um verdadeiro capitalismo sem risco, com cliente cativo, inadimplência zero e com o setor privado impondo preços.

É difícil avaliar que o formulador e o gestor de tal programa sejam ingênuos. Foram venais! Se fosse um programa emergencial, isso seria compreensivo. As faculdades passaram a oferecer o Fies não apenas para os carentes, mas para os alunos pagantes. Tornou-se um ótimo negócio.

A partir daí, as Universidades passaram a ver o programa como propriedade sua. Quando o governo aventou a possibilidade de colocar regras para a obtenção do benefício – nota mínima no Enem, proibição de se tirar zero em redação etc. – as instituições protestaram. A FMU, de São Paulo, por exemplo, em 2015, colocou os alunos na rua para fazer a inscrição no programa – o que poderia ser feito via internet –, estabeleceu um gargalo e gerou filas imensas nas ruas. Legitimou entre os estudantes uma demanda sua. Criou artificialmente um problema social.

Os grandes grupos viram aí uma oportunidade de ouro para ganhar dinheiro. O negócio da educação tornou-se ainda mais atraente. Começaram a ter economia de escala. O Fies acabou por se tornar um enorme programa de concentração de capital e os mantenedores passaram a vender cabeça de alunos, ativo acadêmico, ou economia de escala.

O valor do negócio deixou de ser ativos imobiliários, mas número de alunos. Não interessa comprar prédios. O ativo acadêmico passou a ser o número potencial de bolsas a serem obtidas.

O crescimento do financiamento é espantoso. Como revelaram os repórteres de O Estado de S. Paulo, José Roberto de Toledo, Paulo Saldaña e Rodrigo Burgarelli – veja-se capítulo adiante -, os gastos governamentais com a iniciativa passaram de R$ 1 bilhão em 2010, para R$ 13 bilhões, em 2014!

Com as mudanças radicais – para pior – pretendidas pelo governo golpista de Michel Temer, o ajuste fiscal deve atingir o Fies. Assim, os grandes conglomerados estão se preparando para o seu fim.

Há gordura para se queimar. As mensalidades estão num patamar alto e as empresas conseguiram – com economia de escala, eficiência de gestão, baixos salários e ensino à distância – reduzir enormemente seus custos. Existem condições de baixar as mensalidades. É um cenário novo, no qual, pela monopolização, reduz-se muito a competição. Isso vai reduzir um pouco o número de alunos.

Universidades a granel

Durante os governos Fernando Henrique (1995-2002), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), o número de matrículas conheceu acentuada expansão. Destaque-se que na gestão de Lula, 13 novas universidades federais foram implantadas em diversos estados. Ao mesmo tempo, essas duas décadas ficarão marcadas como os da expansão, monopolização e internacionalização do ensino superior privado, com eficientes mecanismos de subsídios e garantias estatais.

O aumento do número de matrículas ao longo das últimas quatro décadas é significativo. Mas é importante atentar para o gráfico abaixo, elaborado pelo próprio MEC. Ele mostra claramente que o aumento das vagas se deu principalmente nas instituições privadas.

Atualmente, cerca de 75% das matrículas no ensino superior brasileiro são feitas em empresas privadas de Educação. De acordo com Censo da Educação Superior (Inep-MEC), “87,4% das instituições de educação superior são privadas”. De acordo com o mesmo levantamento, “Em 2014, mais de 3,1 milhões de alunos ingressaram em cursos de educação superior de graduação. Desse total, 82,4% em instituições privadas”.

Se olharmos para o números de professores, varemos que a expansão de vagas não resulta em igual expansão de postos de trabalho: “Em 2014 havia 383.386 funções docentes em exercício na educação superior no Brasil. Deste total, 57,5% tinham vínculo com IES privada e 42,5%, com IES pública” [3].

Se é possível falar em um modelo educacional brasileiro, fica claro que seus parâmetros estão em ampliar o mercado para empresas de educação particulares e tornar o setor atraente para investimentos.

Gaspari e o Fies

Vale a pena comentar algumas reflexões sobre o assunto, feitas pelo jornalista Elio Gaspari. No início de julho de 2015, ele proferiu uma palestra no 10º. Congresso da Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (Abraji). O tema era um tanto inusitado: “Kennedy está atrasado para o almoço: quando a não-notícia atrapalha a notícia”. O palestrante desejava mostrar que nem sempre o mais evidente em um acontecimento deve merecer o destaque principal em uma reportagem.

A dada altura, Gaspari usou como exemplo justamente o Fies, jogando luz em uma vistosa iniciativa dos governos petistas.

Após informar à plateia as alterações introduzidas pelo MEC nas regras de financiamento estudantil, Gaspari recordou:

Toda impressa noticiou: foi feita uma mudança os juros caíram de 6% para 3,4%, a exigência do fiador ficou mais frouxa e o prazo de quitação  foi alongado. Além disso, não foi noticiado, mas acabou sendo a prática, essas bolsas seriam obtidas numa negociação com as faculdades privadas.

O jornalista sublinhou que tal fato foi noticiado como uma mudança no sistema de financiamento. E ironizou: “Como tudo que dá dinheiro a alguém e se é considerado uma boa política social, o pensamento imediato é tamo nela”!

O FIES aparentava ser mais uma das iniciativas sociais dos governos Lula e Dilma, sublinha ele.

Em março de 2010 o governo se orgulhava do fato de o Fies ter passado de 224 mil estudantes financiados para 1,1 milhão, passando de um custo de R$ 1.8 bilhão para R$ 7.5 bilhões”, pontuou o palestrante.

No mês seguinte, um economista conservador derramou-se em elogios e, em junho, a sucessora de Lula apontava o Fies como uma obra extraordinária de seu padrinho.  Em setembro, o Banco Morgan Stanley disse que esse dinheiro não ia voltar, que a inadimplência ia ser alta, e o Fies ia ter um rombo.

Nesse momento, o que era um programa social tornou-se um programa financeiro.

As evidências desse fato estavam nas regras frouxas para a obtenção do financiamento por parte dos alunos, destaca Gaspari. Mesmo se obtivesse nota zero em redação na prova do ENEM, o estudante pode reivindicar o programa.

A expansão foi vertiginosa. “Com o FIES as universidades privadas se livraram da cobrança das mensalidades e provocaram migração do estudante que pagava no guichê para a conta da viúva”, pontua.

Como exemplo, Gaspari citou a reportagem de O Estado de S. Paulo, intitulada “Faculdade tem 99% dos alunos no FIES”. A matéria, também de autoria de José Roberto Toledo, Paulo Saldaña e Rodrigo Burgarelli. Publicado em 15 de fevereiro de 2015, o texto afirmava:

É o caso da Faculdade Tijucussu, em São Caetano do Sul, no ABC paulista. Em 2010, eram 27 alunos matriculados, nenhum com Fies. Hoje, são 1.272 estudantes – e, de todos esses, só quatro pagam suas próprias mensalidades e todos os outros estão registrados no programa federal. Esse número faz com que ela seja a faculdade com mais de mil alunos com maior porcentagem de estudantes no Fies: 99,7%. A faculdade faz parte do Grupo Uniesp, que é o que mais depende do financiamento entre os cinco maiores no País.

Não era um caso isolado. A Faculdade de São Paulo, localizada no centro da capital, registrou um salto no número de alunos inscritos no programa, entre 2010 e 2013. “O total passou de apenas oito estudantes, no último ano do governo Luiz Inácio Lula da Silva, para 13.136, o que corresponde a 90% de seu corpo discente. Em 2010, a porcentagem não chegava a 0,2%”, relatava o jornal.

O texto ainda apontava:

Se for analisado o número total de alunos com Fies entre as mantenedoras, a campeã é a Anhanguera Educacional Ltda., pertencente ao Grupo Kroton-Anhanguera. São 80,7 mil, mais estudante do que qualquer universidade federal do País.

O curioso é que, apesar do crescimento de mais de 2 mil por cento, o número total de alunos se manteve estável. Os jornalistas concluem:

Eram 230 mil estudantes em 2010 e continuam 230 mil alunos em 2013. Ou seja: a diferença é que há menos gente pagando a mensalidade por conta própria e mais dependendo do governo federal para quitar os estudos.

Para Elio Gaspari, “o governo estatizou a inadimplência escolar, com o contribuinte pagando”.

A situação chegou a tal ponto que, Cid Gomes, Ministro da Educação no início do segundo governo Dilma, em 2015, anunciou o que chamou de “mudancinhas”. Não se podia tirar zero na redação e a nota mínima no ENEM deveria ser de 450 pontos, de um total de mil.

Gaspari relata que a reação foi imediata: o presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), em uma reunião, cujo vídeo está na internet, afiirmou: Bom quanto a questão de exigir os 450 pontos mínimos, estamos de acordo que isso é inaceitável!”. Em tom irônico, o colunista emenda: “Ai levanta uma senhora, da turma dele, e diz: – “Não só acho aceitável, como acho muito bom”!

Para ele, os grandes empresários da Educação “se consideram donos dessa parte do MEC”.

O problema está colocado. Nos próximos capítulos, veremos como a Educação se tornou um dos melhores negócios no Brasil atual. Com um detalhe: o que menos interessa aqui é Educação.


[1] Presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo e professor da FGV-SP

[2] Maduro Junior, Paulo Rogério, Taxas de matrícula e gastos em educação no Brasil, dissertação de mestrado submetida à escola de pós-graduação em Economia da FGV-Rio, 2007, pág. 25

[3] Ver Censo de Educação Superior 2014, Notas estatísticas, MEC-Inep, 2015 (http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2015/notas_sobre_o_censo_da_educacao_superior_2014.pdf)

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