Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Dez anos. Desde 2015, segundo o pesquisador Dado Schneider, doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), é com essa idade, em média, que as crianças ganham seu primeiro celular. Até o ano anterior, de acordo com o mesmo especialista, ter um smartphone para chamar de seu acontecia aos 12 anos. No entanto, os filhos e filhas da chamada geração dos milennials entram no mundo das telas digitais muito antes. Tablets, por exemplo, já são um brinquedo comum para bebês de 1 ano e meio ou 2 anos. Os pais se orgulham da habilidade de seus pequenos em acessar sozinhos a internet, o Youtube e os vídeos da Galinha Pintadinha e do Mundo Bita e de ficarem ali, atentos, por vários minutos. Pois é exatamente essa mais recente relação estabelecida com as telinhas (muito tempo, falsa sensação de concentração) que está desafiando e exigindo um considerável trabalho de investigação dos estudiosos do tema e de especialistas em comportamento e interação social.
Várias pesquisas publicadas nos últimos anos, como Os neuróticos não podem se concentrar: Um estudo in situ sobre a multitarefa online no trabalho (2016), de Gloria Mark, doutora em Psicologia pela Universidade de Columbia, feito junto com especialistas da Microsoft e do Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT); ou Concentrados, despertos, mas tão distraídos: uma perspectiva temporal da multitarefa e das comunicações, realizado em 2015 pela mesma especialista, mostram que o foco de atenção das pessoas mudou depois do uso de celulares e tablets. A hipótese da pesquisadora de Columbia é que a atenção a várias tarefas cumpridas simultaneamente sempre existiu, mas a exposição a telas está elevando esse comportamento a níveis nunca antes experimentados e estudados. Em média, segundo ela, o operador do smartphone ou do tablet muda de tela – do foco de atenção – a cada 47 segundos. Em uma hora de navegação, seriam quase 70 alterações. Um número considerável e distante do padrão da natureza e da sociedade construída até agora.
“A atenção é algo complexo e cheio de facetas. Para a gente aprender a se concentrar, é preciso aprender a se desconcentrar das outras coisas”, explica a psicopedagoga Telma Pantano. Membro do serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e vice-coordenadora do Hospital Dia Infantil do Instituto de Psiquiatria da instituição, ela é especialista em linguagem. Mais que quantidade, reforça, a atenção requer qualidade. Concentrar-se numa atividade ou estímulo pede um despertar para aquele ponto e a sustentação do foco nele. Ou seja, não basta olhar para o professor na frente da sala de aula, mas manter-se ligado nele pelos 45 ou 50 minutos de aula. Não basta perceber que há uma prova na sua frente, é preciso aprender a encará-la pelo tempo que durar a avaliação. Tudo isso, para Telma, dá para aprender. A família, a escola e a sociedade treinam as crianças para padrões de atenção que consideram aceitáveis e desejáveis. No entanto, insiste, essa educação para a atenção ganhou um componente novo, ainda bem desconhecido, que são justamente os tablets e smartphones. “A bem da verdade, a gente só vai entender mesmo o que esses equipamentos vão provocar no nosso padrão de atenção daqui a 20 ou 30 anos, quando as crianças que já nasceram conectadas virarem adultos que regem a sociedade. Até lá, tem nosso receio e nossa reflexão”, projeta a psicopedagoga.
O que já se pode observar nas crianças – de forma muito semelhante com o que a pesquisadora Gloria Mark encontrou nos adultos – é que cobramos que elas estejam conectadas e atentas a tudo o tempo todo (celular ligado e com acesso à internet durante a aula, mensagens que devem ser respondidas imediatamente); no entanto, quando estão plugadas, com foco no conteúdo do smartphone, a verdade é que não estão efetivamente atentas a nada. “Elas não sustentam a atenção, são despertadas para mil estímulos, não focam em nada. Ao mesmo tempo, o que acontece no entorno desaparece”, explica Telma, que também é pós-doutora em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo.
Em termos físicos, o uso excessivo de tecnologias digitais também pode provocar prejuízos para as crianças. No final de 2016, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou um guia chamado “Manual de saúde das crianças e adolescentes na era digital”, no qual orienta pais, professores e profissionais da saúde para as consequências do abuso e do uso exagerado de telas digitais, sugerindo inclusive tempos adequados de uso para cada faixa etária. De acordo com a proposta adotada pela SBP, até os dois anos os pequenos não deveriam ter contato com eletrônicos. Esse mesmo descanso deveria preceder as refeições e as horas que antecedem o sono. O neuropediatra Cristhian Müller é um dos autores do manual e confirma os efeitos preocupantes do uso desmedido de tablets e celulares por crianças pequenas. Ele vê distintos riscos. “Do ponto de vista físico, podem acontecer dores musculares e articulares, alteração visual, pelo risco de úlcera de córnea, associada ao ressecamento dos olhos, além de má postura e dor de cabeça. Emocional e socialmente, verificamos isolamento, ansiedade, irritabilidade e, por vezes, agressividade”, preocupa-se.
Se Müller destaca a raiva, Telma aponta a falta de paciência; e, desde a década de 1980, pesquisas mostram ainda que crianças expostas a eletrônicos por muitas horas ao dia evidenciam menor capacidade de autocontrole. O que acontece, segundo a psicopedagoga, é que nas outras atividades, como brincar, desenhar, brigar com os irmãos ou conversar com os pais, a atenção precisa se voltar voluntariamente para aquelas interações. Quando estão vendo TV passivamente, ou vendo vídeos no Youtube, a atenção das crianças é abduzida e não precisa trabalhar, é a tela quem faz todo o trabalho. E por que é importante desenvolver atenção voluntária? “Porque queremos ver e criar crianças funcionais. Ou seja, que saibam como pensar e agir diante do que a vida traz, dentro e fora da escola. E, em termos do que a sociedade construiu até hoje, o padrão de atenção que os eletrônicos impõem é incompatível com tal perspectiva, porque desliga do entorno e pede multitarefas e foco em nada específico”, insiste Telma.
A discussão, claro, já está na lista de preocupações principais dos professores. Müller é enfático ao alertar que o uso (qualquer tempo) de celulares e tablets até dois anos, por mais de 1 hora entre 2 e 5 anos e sem equilíbrio acima dessa faixa provoca, sim, prejuízos na vida escolar. A psicopedagoga do HC confirma que a falta de atenção prejudica o desempenho cognitivo, de resolução de problemas, de organização e planejamento. “Se pensarmos que o futuro será como é hoje, estamos produzindo crianças disfuncionais. Mas acredito que as tecnologias vieram para ficar, então teremos um futuro diferente e a pergunta é: será que as crianças que estamos criando serão aptas para o futuro? Ainda não temos essa resposta”, provoca Telma. Se, e ela acredita nisso, não vai dar para mexer no império dos smartphones, então é a sociedade e a escola que terão de se adaptar. “Cobrar atenção por 45 minutos, aulas sem som e imagem, obrigar as crianças a ficarem sentadas por horas, sem se mexer, são padrões que vão precisar ser alterados”, imagina a psicopedagoga. Claro que mudanças assim trazem dúvidas e resistências, mas é preciso começar a projetar as próximas décadas. “A própria figura do professor como detentor único da informação precisa ser revista. O Google traz a informação. O professor é fundamental para ensinar o que fazer com aquilo”, sugere.
A escola também vai precisar rever as questões de socialização – o que só dá para fazer face a face e o que é possível fazer mediado por um eletrônico? Vai precisar ensinar didaticamente os padrões de atenção aceitáveis e desejáveis. “A verdade é que nesse momento estamos entre dois mundos. O exigido pela sociedade e o imposto pelas tecnologias. As crianças estão se saindo muito bem na adaptação, estão respondendo a essa demanda. Agora precisamos treinar os adultos para escolher os caminhos que vão desenhar o futuro”, desafia Telma.
É preciso considerar ainda que, muitas vezes, o excesso de tecnologia acaba por suprir uma ausência de interação com os pais, o que aumenta os riscos levantados por Müller. “Difícil dizer como seriam ou serão os adultos, mas me preocupam de imediato as crianças, expostas e indefesas às tecnologias. Não raro, observamos pais ausentes em seus próprios problemas, enquanto os filhos se “relacionam” com o desconhecido. O resultado são muitos prejuízos em potencial para as crianças, incluindo questões bem graves, como suicídio associado às mídias”, aponta. Nessa perspectiva, se não vai dar para suspender os tablets e smartphones porque já fazem parte da vida moderna, os dois especialistas lembram que a presença e a mediação dos adultos é fundamental. Ver TV, acessar as redes, procurar vídeos e jogar games online ganham potencial perigo quando são feitos sem orientação ou supervisão. “As crianças precisam de cotas e de tutoria. Sem isso, é perigoso mesmo, em termos de atenção e de violências que podem surgir. Pais devem estar junto com os filhos no mundo digital, tomando conta e aconselhando”, ensina a psicopedagoga. E o neuropediatra complementa: “É importante considerar as zonas “tech-free”, isentas de tecnologias, como cozinha e quartos. Estes locais não devem ter acesso à TV, tablets e celulares, que devem ficar limitados à sala de convívio, onde as crianças podem ser monitoradas”. Os dois destacam ainda o valor das refeições: famílias reunidas, à mesa, sem celular. A recomendação vale também para a hora de dormir. Esses momentos, segundo Müller, reforçam os vínculos entre pais e filhos e ensinam às crianças com quem elas podem contar na vida real. E não é com as redes sociais, antecipa o especialista.
Menos otimista que Telma, o neuropediatra defende que os benefícios do uso de smartphones e tablets não superam os malefícios do uso excessivo. “Reconheço potenciais auxílios na facilitação de trocas de informações e agilidade nas pesquisas, assim como acesso à informações”, para em seguida reforçar: “Não há, no entanto, nenhuma comprovação de que o uso desmedido dessas telas possa melhorar o desenvolvimento infantil. Pelo contrário, as atividades presentes em jogos nos celulares e tablets podem ser substituídas por outras mais lúdicas, ao ar livre e, se possível, com os pais ou amigos”. Já a psicopedagoga levanta algumas qualidades. “Se bem administrados em relação a tempo e conteúdo, os jogos podem incentivar organização, planejamento, perseverança. Se bem mediados, a leitura, a escrita, operações matemáticas e resolução de problemas podem ser beneficiados, mas tudo isso depende do ambiente e da supervisão”. Ou seja, o entretenimento vazio não traz ganhos. “Mas aí, novamente, é aquele trabalho para pais e professores: equilíbrio e propósito. Essas tarefas são nossas, não podemos deixar nas mãos das crianças”, lembra Telma. Para ela, o avanço no entendimento de o que é uma criança, a sociedade já alcançou; o exercício que se inicia agora é investigar quem é essa criança nos tempos digitais, quais são suas autonomias e o que ela ainda vai precisar dos adultos.