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Cultura

Desenvolvimento, participação e paz

By 13/06/2017No Comments

 Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

Em 2007, a cientista social Regina Magalhães de Souza defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), orientada pela professora Irene Cardoso. Nesse trabalho, ela procurou compreender e analisar o conceito de “protagonismo juvenil” e como esse enunciado cobra dos jovens uma atuação de natureza social. “O que esse discurso defende na verdade é a prestação de serviço gratuito, que devia estar sendo feito por alguém e não está, e que não vai mudar o mundo, porque não traz nada de novo, além de ações individuais, como se a atuação de vários indivíduos sozinhos tivesse a força de um grupo. Não tem”.  A professora sugere que, por conta de episódios como as Jornadas de Junho de 2013 e as ocupações de escolas em 2015 e 2016, é possível perceber mudanças consideráveis na postura dos adolescentes, que estariam agora agindo mais politicamente que socialmente, o que representaria de fato uma ruptura no padrão de mobilização. A reportagem da revista Giz conversou com exclusividade com Regina, que é professora de Sociologia da Universidade 9 de Julho (Uninove), e os melhores momentos desse papo você pode acompanhar a seguir.


Para contextualizar, a senhora pode contar como foi sua trajetória até chegar nessa tese?

Eu fiz Ciências Sociais na USP e, assim que me formei, fui dar aulas no ensino médio, até como uma maneira de suprir a obrigatoriedade das disciplinas de Sociologia e Filosofia para os secundaristas que existia naquela época. E fiquei professora da rede oficial de ensino por mais de 10 anos. Em contato com aqueles meninos e meninas da escola pública, tive vontade de voltar a estudar. E, assim, entrei no mestrado na USP mesmo e fui pesquisar qual jovem, quem era o sujeito que a escola pública estava formando.

E quem era afinal esse jovem? E de que período, mais especificamente, estamos falando?

Meu mestrado foi de 1997 a 2001. Publiquei o livro com a pesquisa em 2003. Então vou falar dos adolescentes de 17, 18 anos que estavam se formando no ensino médio. O que encontrei? No contexto de uma educação desacreditada e desvalorizada, as escolas – desprestigiadas e esvaziadas – procuram manter-se de pé por meio de regras arbitrárias. Desde as coisas mais simples – não pode usar boné, não pode short, não pode namorar – até coisas mais complexas, como querer regular o horário, as tarefas, as atividades do jovem.  Acontece que, por serem arbitrárias, essas regras não pegam, não funcionam. E os jovens vão aprendendo a driblar essas normas. O aluno vai desenvolvendo uma relação instrumental com a escola, em que o conhecimento pouco importa, o que vale é se adaptar à instituição e, paulatinamente, driblar as regras impostas e fazer dali um lugar seguro.

Ou seja, o ensino propriamente dito não é a parte mais importante.

Não, nesse sentido, a escola fornece um certificado. O que ela oferece é essa socialização adaptável e que sobrevive muito bem a condições instáveis.

Como o protagonismo juvenil aparece nesse cenário?

Aí começa a pesquisa de doutorado. Eu examinei os documentos que falavam do jovem entre 1985, que a ONU determinou como o Ano Internacional da Juventude, e 2005, ano em que eu terminei a pesquisa. Encontrei nos documentos produzidos pelas entidades que atentam para a questão do jovem – Unesco, Cepal, documentos de estados e municípios e ONGs – essa expressão “protagonismo juvenil”. Algumas delas usam abertamente, outras, embora não usem esse termo, usam o mesmo conceito. O protagonismo juvenil é, então, o enunciado que nomeia e aglutina os argumentos, ideias e propostas para os adolescentes e jovens, ao longo dos anos 1990. Em 1979, quando a ONU propôs que 1985 fosse o Ano da Juventude, os governos passam a entender a juventude como um segmento que merece políticas públicas específicas. Naquele tempo, resumidas em três palavras: desenvolvimento (mais social e humano que econômico), participação e paz. Essas três ideias nortearam as políticas públicas para a juventude nos 20 anos seguintes. E paro em 20 anos, porque minha pesquisa se conclui aí.

Na prática, as políticas públicas sugerem que o jovem deve se envolver e participar da solução dos problemas que ele enxerga. É isso?

Os documentos todos defendem que a participação do jovem é fundamental e a essa participação se dá o nome de protagonismo social. Mas a pergunta é: de que participação estamos falando? As entidades impõem, definem e defendem que o jovem deve ter atuação social. Vamos voltar um passo para entender: atuação social é a atividade do ator social. Toda a política de Educação no Brasil se propõe a transformar um jovem num ator social, em alguém que age e que aparece como protagonista. Pode olhar os documentos da Educação. Todos falam em transformar o estudante em ator social, aquele que realiza coisas, que faz coisas por si e pelos outros, e defende interesses seus. Interesses seus e não sociais ou coletivos, percebe?

Atuar socialmente significa, portanto, agir, realizar, ainda que isoladamente?

Isso. Segundo esse discurso e essas políticas, atuação é igual à realização. Trabalhar, portanto, é atuar. E trabalhar voluntariamente também. Embora essa coisa de voluntariado soe um pouco cristão e, por isso, algumas ONGs e órgãos estatais prefiram não usar explicitamente, a ideia de servir, de fazer sua parte é a alma dessa ideia. Agora, é importante destacar que vários autores que eu cito na pesquisa defendem e garantem que fazer não muda o mundo. Fazer é realizar mais do mesmo. Hanna Arendt, por exemplo, coloca que fazer é um instrumental de meios e fins e não muda os rumos, só acrescenta mais artefatos ao sistema que já existe.

Mas esse discurso é muito sedutor, porque, em geral, as pessoas querem fazer algo para mudar sua realidade.

Sim, extremamente sedutor. Primeiro, porque as pessoas têm essa disposição. Jovens e adultos gostam de pensar que estão fazendo algo para melhorar o mundo. O slogan do Ano Internacional do Voluntário, que foi em 2001 e trouxe essa expressão do protagonismo juvenil para a mídia, falava exatamente isso: faça parte, faça sua parte e dê a melhor parte de você. No entanto, o que o discurso defende na verdade é: serviço gratuito (que devia estar sendo feito por alguém e não está), que não vai mudar o mundo, porque não traz nada de novo, e ações individuais, como se a atuação de vários indivíduos sozinhos tivesse a força de um grupo. Não tem. Indivíduos sozinhos somados não formam um coletivo.

Mas aquele jovem da escola pública que, acima de tudo, aprendeu a se adaptar e a driblar, compra essa ideia?

Esse não foi o objeto da pesquisa, então posso falar da minha observação. Suponho que compra, sim. Não entrevistei aqueles adolescentes, mas entendo que essa adaptação ao meio é um dos pilares do discurso do protagonismo juvenil. O mundo é assim, melhor você estar dentro dele e tentar melhorá-lo. De fora é que não vai conseguir. Além disso, muitos desses jovens foram atendidos por ONGs e órgãos governamentais que difundiam esse discurso.

E a senhora disse que atuação social também é defender interesses, além de fazer. Quais interesses?

Interesses pessoais (estudar, se formar, melhorar de vida) e interesses locais, restritos, privados. Não estamos falando de interesses coletivos, nem sociais. Se assim fossem, chegaríamos na política propriamente dita, mas não. Minha tese é que o discurso usa o protagonismo juvenil como se fosse uma atuação política, com a participação que um movimento político deveria ter. No entanto, trata-se de um simulacro, de uma encenação, porque os documentos falam de atuação individual, local, interesses próprios, realização. E, mais, afina isso com aquela conversa de que o caminho é a ação individual, porque a política não resolve nada, pode acabar com as instituições políticas, porque ninguém presta.

É dessa forma que a gente chega na figura do gestor, em detrimento do político como governante?

Exatamente isso. A política é desacreditada, o mercado adora a ideia e passa a defender a missão, o trabalhador que veste a camisa, que não se contrapõem – que se adapta – que faz com as próprias mãos, em vez de cobrar do Estado.

E a escola que ensinou a se adaptar cumpre um papel importante.

Sim, porque o estudante que aprendeu a burlar as normas, aprendeu a se adaptar a dar um jeitinho de estar bem em qualquer ambiente. Ele entende bem o discurso de realizar e de defender seus interesses e o mercado aprova essas duas atuações. O jovem sai da escola acreditando que não há mesmo outra alternativa se não o mundo neoliberal que vê a sua volta. É o verdadeiro sujeito neoliberal. E o mercado o recebe bem. Ao mesmo tempo, a política é esvaziada em nome de um simulacro. Parece política, encanta como a política, mas não forma cidadãos políticos.

No entanto, professora, a senhora defende na pesquisa que, mais recentemente, uma nova forma de atuação dos jovens emergiu. Dessa vez, com um protagonismo político e não mais social, como os movimentos anteriores. Estamos falando das jornadas de 2013 e, logo depois, das ocupações de 2015. Como isso acontece? Por que essa mudança?

Ah sim, entendo que é outro movimento, com outras características. E ainda acrescento a sua lista alguns coletivos de jovens e movimentos de periferia. Novamente, não estudei essa virada, mas observo e sigo pela imprensa. Portanto, minha opinião é uma suposição. Minha tese é que o discurso do protagonismo juvenil não conseguiu atingir 100% dos jovens. Alguns, por situação de vida mesmo, pobreza, afastamento de ONGs, ou coisas assim, não foram alcançados. Outro ponto que emerge é que, embora os defensores do protagonismo juvenil garantam o contrário, esse discurso não é universal, não integral.

E mesmo no discurso do protagonismo social há contradições. Por exemplo, mesmo quem seguiu a cartilha à risca pode não ter visto a vida ou o mundo melhorar.

Exatamente. Além do fato de a política propriamente dita ser atraente, mesmo para quem não tinha envolvimento com as formas tradicionais, como partidos políticos ou sindicatos. Essas pessoas se mantiveram abertas e, por isso, foram atraídas para uma participação mais política que social.

A gente pode dizer que as jornadas de junho e as ocupações, além dos coletivos e dos saraus de periferia, são mesmo marcos fundamentais para essa nova construção de identidade política?

Sim. Minha hipótese é que os movimentos que levaram a 2013 – como os de mobilidade, passe livre – e os que emergiram dali tinham atuação política, porque colocam o coletivo acima do individual. Colocam o direito (de ir e vir, por exemplo) sobre a minha vida cotidiana. Entendo que a sociedade hoje é tão exigente – tem que estudar, tem que se formar, tem que fazer faculdade – e não dá as condições mínimas para esses jovens cumprirem tantas exigências. O que aconteceu em 2013 é que os jovens descobriram isso, descobriram a sociedade. E que eles estão nela, fazem parte dela, podem cobrar, portanto. A sociedade tem sim responsabilidades e os coletivos podem atuar para cobrar essa sociedade a entregar o que deve.

Se é verdade que os valores e projetos à esquerda continuam atraindo os jovens, é fato que há também um alinhamento político significativo de jovens com o pensamento da direita, conservador. Basta observar os índices de voto de Jair Bolsonaro entre a juventude. O que acontece?

Acontece com a sociedade toda e não só com os adolescentes e os jovens. Depende do meio em que vivem, depende das referências que têm. O que eu vejo é uma cobrança terrível sobre os jovens para que eles repitam e suplantem o maior movimento de juventude que foi o Maio de 1968. A geração que hoje tem 30 anos foi chamada de apática, de alienada. Ou ainda, os movimentos que esses jovens fizeram foram desmoralizados pela sociedade, como se fosse manipulação da mídia – é o caso dos caras pintadas, do impeachment do presidente Collor. Então, se esses meninos não superarem seus avós de 1968, não vale. E não é assim. E o que vejo sempre é uma vontade de participar, de atuar, de se unir e de batalhar. Isso ninguém tira dos jovens.

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