Por J.S. Faro
A notícia sobre a festinha de despedida que estudantes do ensino médio de uma escola gaúcha promoveram no início de junho ganhou um inesperado destaque e virou uma das notas mais comentadas na rede. Inesperado porque festinhas de despedida de alunos do colegial são corriqueiras e acontecem todos os anos. Com um misto de alívio e também com um pouco de sentimento de vingança contra a “escola opressora”, o “adeus” ensaia um gesto de desprendimento e de liberdade. Afinal, na véspera do vestibular, essa turma agora já vai se aproximando da maturidade e a maturidade sempre chega acompanhada de uma certa disponibilidade de espírito que favorece tudo.
O surpreendente no caso da Instituição Evangélica de Novo Hamburgo foi o fato de que a festa ganhou roupagem temática. “Se nada ser certo” foi o slogan que animou os estudantes fantasiados com as roupas que sempre significam profissões da mão de obra não especializada: faxineiros, vendedores ambulantes, cozinheiros… Curiosa ironia essa em que o dar errado – ou o fracasso – é a imagem do trabalho, da labuta e a do heroísmo da existência comum e anônima.
Nas redes, a manifestação dos estudantes – marcada por uma retórica ambivalente mas repleta de significados arrivistas e preconceituosos – fez inimigos com censuras à escola e à imaturidade do apelo social do slogan. Tenho dúvidas sobre o acerto da crítica, embora a oportunidade de mais uma aula não deva ser perdida nem a eventual pouca atenção que o currículo desse colégio dá à formação da consciência social dos seus alunos. Minha impressão, no entanto, é a de que esse significado depreciativo que os formandos atribuíram ao trabalho é hoje um traço da nossa construção simbólica coletiva: infelizmente, somos hoje um país onde a segregação social penetra fortemente em todas as instâncias da vida nacional e se transformou numa das sustentações ideológicas da maioria das reformas e outras iniciativas que vêm sendo postas em prática, com todo o despudor, pelo governo de Michel Temer.
Vou a um fato que pode ter passado despercebido desse composto ideológico que é enaltecido pela mídia conservadora: a renúncia ao salario que o novo prefeito de São Paulo faria jus ao assumir o cargo em janeiro último. João Doria, num gesto demagógico e hipócrita, já na campanha, anunciou sua intenção de trabalhar de graça a partir de quando se tornasse prefeito; um gesto arrogante e preconceituoso que afeta todos os que recebem salario, como se o trabalho – qualquer que seja ele e para qualquer um – não devesse ser a justa remuneração pelo esforço feito. Para Doria, que é um empresário de médio porte, quase um remediado, o trabalho é diletante e é essa a mensagem que sua demagogia consagrou ao esconder o fato de que, como empresário, sobrevive graças ao trabalho de muitos.
O prefeito de São Paulo, no entanto, apresenta-se neste caso como um aprendiz ingênuo se for comparado com a crueldade com que Temer vem formulando reformas que afetam duramente e em primeiríssimo lugar o trabalhador: a reforma da Previdência e as mudanças nas leis trabalhistas são outros dois exemplos do amplo espectro em que se insere a ideia de que o trabalho é merecedor de punição e não de retribuição pública.
No final das contas, é esse – até onde consigo entender – o paradigma que foi seguido pelos estudantes gaúchos. O “dar certo” é o que escapa da punição do trabalho associando-se a ele (ao trabalho) toda a carga de referências negativas que decorre desse conjunto de arremetidas que estamos assistindo no Brasil. Pois se o governo – que teoricamente deve responder pelo bem-estar social do país que governa – não o faz, por que seriam os futuros trabalhadores a acostumarem-se e conformarem-se a ele? A ideia me parece simples e tem deixado rastros fortes no imaginário social desta segunda década do século XXI brasileiro: nas novelas, nos anúncios, na mídia, nas leis e… nas escolas.
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