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Trabalho

A conversão da tecnologia: de perigosa a parceira

By 30/09/2016No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Um grupo de alunos de uma escola pública em Araraquara, no interior de São Paulo, participou de uma experiência científica bastante divertida: dentro de uma sala de aula convertida em laboratório, transformaram tarefas cansativas e enfadonhas em simpáticas e encantadoras interações com tablets, notebooks e computadores. Nenhuma mágica explica o feito. Foi pesquisa mesmo.

O coordenador do estudo é o sociólogo Silvio Henrique Fiscarelli, mestre e doutor em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara. Fiscarelli é professor há cerca de 10 anos no Departamento de Didática da instituição, e vem ajudando educadores a ensinar de maneira mais prazerosa e eficiente. Para chegar aos bons resultados da pesquisa realizada em 2013 e 2014, ele precisou selecionar bem os elementos da experiência. Escolheu professores voluntários de cinco disciplinas do ensino médio da escola estadual Bento de Abreu. Os líderes das cadeiras de Língua Portuguesa, Matemática, Física, Química e Filosofia aderiram ao projeto imediatamente. “A gente até queria que professores de outras disciplinas também participassem, mas aceitamos de imediato a ajuda dos que se prontificaram”, conta o pesquisador.

Depois disso, a equipe do professor da Unesp tratou de conhecer bem as características daqueles primeiros elementos do experimento. “Ouvimos bem o que aqueles professores precisavam, conhecemos os conteúdos que eles queriam trabalhar com seus alunos dos 1º, 2º e 3º anos do ensino médio e começamos a pesquisar como poderíamos ajudá-los”, continua explicando Fiscarelli. Neste ponto, como esperado quando substâncias pulsantes são colocadas em contato, aconteceu uma reação. “Os materiais que tínhamos disponíveis não foram suficientes para eles aprofundarem os temas com os alunos, então, junto com cada educador, pautados pelas singularidades, os pesquisadores desenvolveram objetos próprios para cada aplicação e então surgiram os instrumentos de aprendizagem específicos das matérias”, lembra o líder da pesquisa.

Tudo indicava que o experimento já caminhava muito bem, mas houve um desvio nessa narrativa. Atente, leitor, que até o momento não temos a pergunta que norteou o estudo e, sem ela, não dá para ir adiante, como ensina a produção científica de qualidade. Vamos lá: então, professor Fiscarelli, quais foram afinal esses objetos de aprendizagem que vocês desenvolveram e para que servem eles? A resposta é justamente o resumo do trabalho que a equipe da Unesp desenvolveu nos últimos anos e publicou há poucos meses. A ideia que motivou a pesquisa nasceu da percepção de Fiscarelli de que a tecnologia pode mediar o aprendizado. A linguagem digital é facilmente reconhecida pelos mais jovens, é intuitiva e, aparentemente, vista como divertida.

“Assim, o ponto de partida foi associar um caminho simpático a tarefas que precisam ser cumpridas, reflexões que devem ser feitas, assuntos que têm ser abordados”, ensina o sociólogo.  No entanto, os velhos sites e portais não são os melhores aliados para os professores. Ao menos foi isso que os pesquisadores da Unesp vieram percebendo ao longo dos anos de estudos. “Sites comuns, mesmo que educativos, são muito amplos e genéricos, precisam carregar, em geral lentamente, contém muita informação, podem dispersar o aluno ou o professor no meio do caminho”. A solução encontrada foi usar os chamados objetos de aprendizado, que são, traduzindo em miúdos, animações, simulações, realidades virtuais e situações semelhantes feitas com objetivo de sensibilizar para um tema específico, ou para fixar, reforçar ou ampliar os conhecimentos sobre aquele conteúdo. “Eles são feitos para isso, trabalham um tópico, aprofundam, são mais contextualizados e vão apresentando paulatinamente o que o aluno precisa conhecer, estudar”.

Na prática, esses objetos de aprendizagem podem estar em computadores, em notebooks ou em tablets, conectados ou não à internet. “E para ser considerado um legítimo objeto de aprendizagem, ele precisa ser dinâmico, interativo e aceitar interferência dos alunos”, explica. De uma forma geral, os jovens têm grande facilidade para decifrar a linguagem digital na qual se apoiam os objetos; entretanto, Fiscarelli levanta um ponto bastante perspicaz: “os adolescentes operam computadores e tablets com desenvoltura e reconhecem a linguagem, mas eles têm esse manejo intuitivo apenas para fins de entretenimento”, revela o pesquisador.

E esse foi mais um desafio: como convencer o jovem a mergulhar no conteúdo do objeto de aprendizado, pedagogicamente, e usando para isso o caminho que eles dominam tão bem? Ou, em outras palavras, como provar que a linguagem na qual eles surfam por recreação pode ser justamente a prancha apropriada para navegar num mar um pouco mais profundo? Havia ainda um segundo desafio, que nadava na direção contrária. “Como os alunos usam bastante a tecnologia, a linguagem por si só poderia não ser um atrativo e, portanto, o objeto poderia não despertar interesse nas classes”.

Aí entram os professores. O domínio da matéria e das atividades necessárias para os alunos se apropriarem dos conhecimentos, os educadores já possuíam. Ninguém melhor que eles para escolher os objetos de aprendizagem que mais fisgariam os estudantes. Assim, ao lado dos pesquisadores da Unesp, selecionaram os melhores objetos, desenvolveram novos e decidiram o melhor momento para aplicar esse recurso para a classe. Alguns professores preferiram oferecer o objeto como primeiro contato com o assunto; outros, logo após a apresentação, para aprofundar as explicações; outros ainda lá no final, como exercícios de fixação.

Nesse momento, a missão da turma de pesquisadores era observar o passo a passo das atividades, facilitar o trabalho do professor e colher informações para analisar os efeitos da utilização dos recursos, a partir do desempenho dos estudantes e dos educadores. Uma ferramenta útil desenvolvida por sugestão dos professores foi o roteiro, o passo a passo, para os estudantes. Não apenas para eles manusearem corretamente o objeto de aprendizagem, mas também para que soubessem em qual etapa da aprendizagem estavam, o que precisavam cumprir, quais eram os objetivos educacionais de cada tópico.

Uma experiência como essa realizada em Araraquara tem forte potencial de estimular outros professores do Brasil a lançar mão da mesma estratégia. Afinal, em tese, um experimento funciona da mesma forma e provoca os mesmos resultados mesmo em ambientes e em tempos diversos. Acontece que as primeiras fagulhas de animação podem ser apagadas com uma dúvida que sempre corrói os pensamentos dos educadores: para estudantes jovens e pesquisadores jovens é simples, eles falam a língua dos computadores com fluência. Mas e que não é assim tão despachado? Faz como?

Fiscarelli diz que essa é uma das perguntas mais recorrentes, mas também ela se encaixa melhor no polo positivo que no polo negativo das forças. “A professora de Matemática que participou da pesquisa era a mais velha do grupo e mostrava a maior animação para usar os objetos de aprendizagem, porque ela viu ali uma chance rara de despertar o interesse dos alunos”, conta. “Claro que ela teve receio da tecnologia no início, mas os objetos são tão focados e contextualizados, que a linguagem é facilmente decodificada. Intuitivamente eles assimilam e seguem adiante, porque conhecem muito bem os conteúdos”, pontua o coordenador do estudo.

Essa etapa foi superada tão bem que um roteiro de estudos e manuseio para professores que havia sido desenvolvido foi abandonado por absoluta falta de necessidade, como identificaram os pesquisadores. Junto com o mal estar inicial, vai embora também o velho receio de ser substituído por máquinas. “Os professores percebiam rapidamente que eles eram os líderes das atividades. Sem eles não havia sentido. Tanto assim que os melhores resultados foram obtidos quando o objeto de aprendizagem era apresentado depois da aula teórica do professor, esse foi o melhor binômio”, defende o sociólogo. Quebrada a resistência, energia nova é liberada e é essa carga extra que os professores aplicaram nas aulas de Araraquara. E, como num balanceamento de equações químicas bem resolvido, o que é injetado de um lado, aparece, ainda que transformado, do outro. Ganham todos.

Num balanço final, o professor elenca vários pontos positivos alcançados com o trabalho de sua equipe na escola Bento de Abreu. “Primeiro, ganham todos, porque todos aprendem novas habilidades; segundo, o professor se fortalece e fica mais confiante nas suas habilidades com tecnologias; nessa mesma linha, também fica mais seguro para aplicar as técnicas de ensino e aprendizagem”, inicia. E para os alunos? “O que notamos primeiro é que eles se envolvem, jamais ficam indiferentes ao objeto de aprendizagem. E, com um pouquinho de estímulo, se concentram e até mergulham nos conteúdos. E isso era visível e gritante se comparado com outras aulas sem esses recursos”, comemora. Por fim, uma dificuldade que muitos alunos sinalizaram, de sair do raciocínio mais concreto para um entendimento mais abstrato e sofisticado, foi por vezes dirimida. “A experiência com as simulações, por exemplo, ajuda a fazer o estudante entender de forma mais global conceitos que são difíceis mesmo, como titulação de soluções ou estatística e probabilidade”, conclui Fiscarelli, satisfeito.

E a gente completa assim: como se queria demonstrar.

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