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Cultura

O Homem sem qualidades

By 29/06/2016No Comments

Por J.S. Faro*

Bem ou mal, em cima e embaixo, não são para ele ideias céticas e relativas, mas membros de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram

Ulrich é matemático, tem 32 anos, vive em Viena em plena eclosão da I Guerra (1914-1918): um homem comum, desprovido das ambições do poder, despreocupado com a simbologia da ostentação da riqueza; não se destaca pela beleza ou pela feiúra. Ulrich é um anônimo desconhecido cujas perspectivas de algum êxito durante a vida são apagadas sistematicamente por esse estar no mundo. Se pudesse ser classificado de algum modo no âmbito das correntes filosóficas contemporâneas, Ulrich seria o protótipo que sintetiza a reflexão de Martin Heiddeger sobre o Dasein: a existência é a essência de seu ser, não o espírito.

É esse o personagem principal do romance O homem sem qualidades, de Robert Musil. Publicado em dois volumes (um em 1930; outro, em 1938), o livro é considerado uma das principais obras da literatura do século XX e seu autor, embora pouco conhecido dos leitores brasileiros, é sempre colocado ao lado de nomes como Marcel Proust, James Joyce, Stefan Zweig e Thomas Mann, certamente pela sensibilidade com que conseguiu radiografar os dilemas essenciais da crise cultural que se abateu sobre o mundo entre o final do século XIX e as duas guerras mundiais.

A leitura de O homem sem qualidades apresenta dois desafios. Em primeiro lugar, pela extensão e complexidade da narrativa. A edição brasileira que acaba de ser lançada pela Nova Fronteira, num único volume, tem 1248 páginas e traduz-se, em 181 capítulos, numa espécie de caleidoscópio de situações e personagens que compõem o cenário da cidade mais diversificada e plural da Europa nas primeiras décadas do século XX: Viena. Não é um exercício desprovido de compromisso com a reflexão sobre o seu próprio presente quando o leitor se dispõe a acompanhar Ulrich, da mesma forma como é igualmente desafiador seguir Leopold Bloom pelas ruas de Dublin nos caminhos traçados por Joyce em Ulisses.

Se fosse possível simplificar esse cenário, parece-nos suficiente dizer que a Viena dos Habsburgo, uma das capitais do império Austro-Húngaro, é um conglomerado de experiências de toda ordem nos campos da arte, da ciência, da política, ainda que essa variedade de inúmeras possibilidades tenha se transformado – como de resto também ocorreu na Alemanha depois dos Tratados de Versalhes, em 1918, e da emergência do nacional-socialismo nos anos 20 – num laboratório de projetos totalitários de várias dimensões. É em meio a esse mundo de fragmentos contraditórios da civilização europeia que Ulrich faz desfilar o seu senso elementar de compreensão sobre uma realidade que ele não entende exatamente: emergência e decadência, novos paradigmas do comportamento, uma permanente reconfiguração social que cria polos antagônicos de identidade étnica, religiosa, política e em tudo isso uma psicologia reveladora que traz um sistemático desconforto para segurança da burguesia austríaca que habita a imaginária Kakânia de Musil[1], a mesma burguesia que Thomas Mann retratoiu em Os Buddenbrook[2].

Por esses motivos, ler O homem sem qualidades hoje é um exercício que nos aproxima do presente, tal é a semelhança com a crise de paradigmas que também nós vivemos nessas duas primeiras décadas do século XXI, embora  a obra de Musil nos traga essa crise de uma outra conjuntura. No entanto, as evidências das incertezas que caracterizam períodos de mudança são as mesmas: a fragilização dos conceitos que orientam nossas deliberações na esfera pública é de tal forma intensa que sua qualificação (ou os indícios de sua qualidade) emerge como uma anomia, ou seja, “um estado da sociedade em que desaparecem os padrões normativos de conduta, de crença e o indivíduo, em conflito íntimo, encontra dificuldade para corformar-se às contraditórias exigências das normas sociais”. Ou ainda: um estado de “desorganização pessoal que resulta numa individualidade desorientada, desvinculada do padrão do grupo social”[3]. Para Michael Hanke, professor da UFMG e especialista na obra de Musil,

“O homem sem qualidades é considerado como simbólico por aquilo que, através de conceitos como a ‘perda da individualidade no nosso tempo’, procura compreender a ‘abstração’ enquanto forma básica de fenômenos de decadência e de alienação e é considerada como uma característica da modernidade.

O anonimato dos processos sociais sem sujeitos é a versão social de um ‘mundo de qualidades sem homem’, ‘de vivências sem aquele que as vive’.

(…)

O que vale para o indivíduo, que já não existe mais em termos substanciais, também vale para a sociedade como um todo, descrita por Musil como ‘sociedade sem qualidades”[4] .

O segundo desafio da leitura de O homem sem qualidades decorre de uma dificuldade semântica que acompanha toda a narrativa, pois o conceito de “qualidade”, essencial para entender a história de Musil, não tem no alemão a mesma aplicação literal que tem na língua portuguesa e na língua inglesa. Hanke avalia que o escritor austríaco cria uma expressão “sem conotação valorativa”, mas que significa – segundo entendimento nosso – um deficit pessoal do personagem, deficit que opera no plano dos referentes culturais como redutor da capacidade de discernimento e de deliberação, de onde uma propensão à atonia, isto é uma disposição para a inação que compromete, social e individualmente, os elementos do pensamento crítico.

O heroi de Musil vive para si, ensimesmado, e dessa forma “mergulha no grau zero de responsabilidade”[5], uma forma de existência massificada que leva os indivíduos ao processo sistemático de jogos de força articulados em torno dos elementos simplificadores que dão origem aos pré-conceitos. O “homem sem qualidade”, aqui – não o livro, mas o personagem – é um instrumento do totalitarismo, e é a simplificação que ele faz sistematicamente no seu dia a dia que responderá pela forma como lida com sua própria vida; alguma coisa parecida como um conjunto de impulsos redutores das contradições do mundo e uma sistemática naturalização dos conflitos. Um resumo desse processo que se evidencia no plano politico, permite dizer que Ulrich é um versão do homem massificado e desprovido de ideologias que mobilizem a autonomia de sua subjetividade política. É o protagonista das multidões que acorriam aos comícios de Adolf Hitler.

Certamente foi em razão dessa denúncia subjacente à obra que fez com que o governo alemão confiscasse seu 2o. volume, em 1938, colocando-a na lista  dos livros execrados como formadores de uma opinião avessa ao espírito de reerguimento moral pretendido pelos nazistas. Musil, então, exila-se na Suiça onde virá a falecer em 1942, com 61 anos. Foi sua mulher, Martha Musil, quem reuniu o material fragmentado deixado pelo escritor e compôs um outro volume da obra com mais 40 capítulos.

Trata-se, portanto, de uma obra inacabada, ainda que em várias oportunidades admiradores da obra de Musil tenham tentado encontrar um fio de desenvolvimento conclusivo da enorme narrativa disposta em O homem sem qualidades. A chave da história, no entanto, parece confirmar a breve observação feita na nota à edição brasileira de 2015:

“Faz parte da grandeza e do fascínio da obra de Musil que ela, mesmo interrompida, nunca pareça inacabada, com suas linhas de força sempre apontando para a catástrofe que desponta no horizonte, com sua abertura sempre reproposta na tentativa de transcender a desilusão com o vazio de um mundo”[6].


[1] Tudo indica que Musil alude, no nome do país imaginário Kakânia, às letras que grafavam todas as instituições do Império dos Habsburgo, K.K. (imperial-real), conforme interpretação de Allan Janik e Stephen Toulmin, em La Viena de Wittgenstein (Madri, Taurus, 1998).

[2] Sobre a complexidade cultural de Viena, ver Janik & Toulmin, La Viena de Wittgenstein (Madri, Taurus, 1998)

[3] Definições extraídas do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (disponível em http://houaiss.uol.com.br)

[4] Michael Hanke, A qualidade do homem sem qualidades, de Roberto Musil. In Revista Alceu, v. 4, n. 8, jan/jun, 2004

[5] O Homem sem qualidades, Revista Bravo, 20/10/11. Disponível em http://tinyurl.com/ztqvme7

[6] Nota à edição brasileira, in O homem sem qualidades, Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2015, 1248 p.


Para saber mais

Robert Musil, traços biográficos

(fonte: UOL, educação: http://educacao.uol.com.br/biografias/robert-musil.htm)

Seu nome completo era Robert Edler von Musil. É considerado, juntamente com James Joyce, um dos mais importantes renovadores do romance no século XX. Ficou conhecido com a obra autobiográfica O Jovem Törless, publicada em 1906 e levada ao cinema em 1966 por Völker Schlöndorf. O pano de fundo do argumento de suas obras posteriores é a Áustria da virada do século XIX, dominada pela monarquia e pelo império até entrar na decadência definitiva. Uma época marcada pela desorientação, pela perda de referências morais. Musil estudou Filosofia e Psicologia Experimental entre 1903 e 1908 em Berlim, ganhando a vida como bibliotecário, redator e, depois de sua participação na Primeira Guerra Mundial, como crítico teatral. Publicou diversos romances e obras dramáticas até o final dos anos de 1920. Sua obra principal, O Homem sem Qualidades, cujos primeiros dois volumes foram publicados, respectivamente, em 1931 e 1933, ficou inacabada. A estrutura da narrativa é unitária e destaca, partindo de uma ação que se situa às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a insegurança e a transposição das próprias fronteiras pelo protagonista. Para este homem, a multiplicidade de idéias que dão forma à sua época constitui um símbolo da ambivalência moral de sua geração. O caráter inovador da escrita de Musil para o romance contemporâneo só seria reconhecido após sua morte.

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