Skip to main content
Educação

Empreendedorismo e formação acadêmica

By 17/03/2016No Comments

J.S.Faro (*)


Empreendedorismo
é o mais recente modismo pedagógico que o Brasil está vivendo. Trata-se de um conceito que, a pretexto de conferir maior autonomia ao estudante no longo e tortuoso processo de definição do seu futuro profissional, oferece como perspectiva a miragem de uma vida econômica independente, livre do rigor das relações de emprego assalariadas. “Você é a sua empresa”, proclamam os adeptos dessa nova filosofia, enunciado que incopora a ideia de uma fidelidade absoluta ao ego-empreendimento – no plano psicológico e no plano mesmo das práticas profissionais.

Todas as carreiras vem sendo atingidas por esse princípio, desde o dentista que se associa a uma cooperativa de forma pejotizada e descobre uma fórmula mirabolante de empresariar sua atividade, ao garotão que abraçou a possibilidade de criar uma start-up que consubstancia na inovação  tecnológica (um outro modismo da estação) um aplicativo que bomba no mercado em razão da facilidade com que permite ao usuário fazer alguma coisa. Eis, em síntese, o universo que os líderes do movimento empreendedorista vendem em cursos, workshops, palestras, apostilas, sites, suplementos na imprensa e onde mais houver uma audiência ansiosa para escapar das determinações do mundo do trabalho e gozar as delícias do mundo empresarial.

Para que se tenha uma ideia, o fenômeno é tão abrangente e desperta tanto assentimento que uma verdadeira febre sobre o assunto alimenta-se das ilusões que ela própria cria: para Ícaro de Carvalho, a indústria do empreendedorismo é um outro tipo de auto-ajuda cercada de palcos onde verdadeiros malandros em palestras regiamente remuneradas prometem que você vai alcançar a vitória se for perseverante:

Você está a um único centímetro da vitória. Nao pare! Se desistir agora, será para sempre. Tome, leia a estratégia do oceano azul. Faça mais uma mentoria, participe de mais uma sessão de coaching. O problema é que o seu mindset não está ajustado. Você preciaa ser mais proativo. Vamos fazer mais uma powermind? Eu consigo um precinho bacana para você (CARVALHO, 2016).

Segundo o mesmo autor,

O resultado de tudo isso é uma indústria que beira a esquizofrenia. Que dissociou completamente a atividade empreendedora dos negócios, da ralação, das contas e das noites mal dormidas. É gente que acha que abrir empresa é o substituto adulto para quando, adolescente, você fazia uma banda. Hoje os encontros para empreendedores mais se parecem com igrejas neo-pentecostais, com gente pulando, gritando, louvando ao Deus Mercado, para que tenham sucesso em suas empreitadas… (CARVALHO, 2016)

Quais os motivos dessa explosão de ânimo? Afinal de contas, se há uma realidade bastante concreta e perturbadora no cenário econômico nacional e internacional esta é a permanência da instabilidade sistêmica que testemunhamos todos os dias no noticiário dos jornais e até mesmo em alguns momentos de distração. É o caso, por exemplo, do filme A grande aposta, película que concorreu ao Oscar deste ano: não há nada de enobrecedor ou de virtuoso na história contada no livro de Michael Lewis que deu origem ao filme; ao contrário, a crítica foi unânime em reconhecer que o núcleo principal da narrativa que se inspira na crise de 2008 é o mais puro gangsterismo que continua espalhando seus efeitos pela economia global. A moral da história é, nesse sentido, exemplar: o herói que suplanta o mundo incerto das fortunas é um empreendedor nato que põe sua esperteza e sua sagacidade diabólica a serviço do que há de pior na natureza humana [1]. É esse o ethos da nova filosofia pedagógica que está inspirando as escolas e o rush de iniciativas para sua adoção?

Parece que sim. No Brasil, o empreendedorismo é visto como uma marca cultural do jovem, fato que tem justificado a adoção de políticas até mesmo públicas para o seu estímulo. Numa entrevista dada em 2013 ao site Brasil Econômico, o então presidente do Sebrae Nacional, Luiz Barreto,  afirmou que a ideia inspiradora de que cada um tenha “o seu próprio negócio” é uma “alternativa de vida” que alimenta o sonho de 44% dos jovens brasileiros que têm entre 18 e 24 anos. Teria sido esse o principal motivo que levou a presidente Dilma Rousseff a criar a Secretaria da Micro e Pequenas Empresas, uma pasta com status de ministério que foi ocupada durante toda sua existência pelo lobista do pequeno e médio capital Guilherme Afif Domingos[2], uma figura que se aproveitou do posto para advogar exclusivamente em favor dos interesses privados do pessoal que o vê como o salvador da pátria do pequeno capital.

O que Luiz Barreto não disse – e sobre esse assunto pouco se fala entre os que advogam esse caminho para a formação dos jovens – é que o pequeno, médio e micro empreendimento têm um tempo de sobrevida muito curto e registram números elevados de falências de empresas mesmo antes do agravamento da crise econômica interna na qual estamos mergulhados desde 2013 (“56% [das empresas] não completam o 5º ano de vida”)[3]. Esse fato, admitido por consultorias econômicas e pelo próprio Sebrae [4], mostra que o apelo ao empreendedorismo é um convite não ao sucesso, mas a uma expectativa que amedronta, dadas as condições de fragilidade da estrutura econômica brasileira como um todo e às próprias peculiaridades gerais do capitalismo, agravadas aqui pela forma conspícua como se dá a formação da poupança empresarial. A rigor, só mesmo através de um sistema de regalias fiscais e de privilégios de todo o tipo (desonerações e desregulamentações diversas) é que seria possível prolongar a vida útil do pequeno negócio, razão pela qual o insucesso nunca é atribuído à inviabilidade do modelo empreendedor – ou à filosofia do empreendedorismo – mas associado sempre à pauta política conjuntural e midiatizada de que temos sido testemunhas nos últimos anos. No final das contas, quem acaba pagando a conta das aventura dos empreendedores é a sociedade.

No entanto, frente à possibilidade de que o sonho do “próprio negócio” não dê certo, a indignação é quase sempre dirigida ao governo, como se pode observar na reação de um leitor, entre vários, que comentou a notícia do Estadão sobre o número de falências das micro e pequenas empresas:

Quantos sonhos e anos de trabalho estão inclusos nestes frios percentuais. Tenho visto pequenos e médios empresários quebrando e perdendo economias e sonhos de uma vida inteira. E vivem hoje um pesadelo. Efeito colateral de um governo caótico que faz da economia uma cobaia de teses teóricas ideológicas que nunca funcionaram e jamais irão funcionar. O tamanho do estrago jamais será conhecido em sua realidade. Estes homens atrás do percentual são os brasileiros que trabalham (sim, eles existem… costumam chamá-los de elite) [5]

Se essa é a realidade, o que explica a crença de que é possível escapar à crônica anunciada do fracasso empreendedor e caminharmos ao ponto de sugerir que se trata de uma filosofia propriamente pedagógica destinada a intervir fortemente nos próprios currículos das escolas? Pelo menos duas hipóteses podem ser trabalhadas para a finalidade de reflexão a que se destina este artigo.

A primeira é a de que o mito do herói empreendedor se encaixa na variedade de construções identitárias do mundo contemporâneo, assemelhando-se a um credo ou a uma ideologia fundada na distinção simbólica que está associada à condição da figura do empresário. Da mesma forma que em outras conjunturas históricas, o paradigma do sucesso anda de braços dados com a condição estamental que emerge de uma sociedade de classes, como é a brasileira. Não é necessariamente a fortuna material que legitima essa condição do poder simbólico, mas a localização do indivíduo empreendedor na pirâmide dos estamentos, que podem não ter muito dinheiro, mas tem pompa e circunstância. Estar nesse âmbito, conviver com as dificuldades que o cercam, lançar mão das construções de linguagem que lhe dão essa identidade constitui-se num conjunto de atributos que conferem prestígio, mais que riqueza.

Parece-nos que gerações inteiras de brasileiros atingidos pelo processo de modernização incompleta e defeituosa da nossa economia foram atingidas por esses valores num processo em cuja ponta está a formação de uma sociedade arrivista e individualista, de forte competitividade em torno da aparência do sucesso. É possível que esse complexo seja o fundamento das práticas da camarotização bastante usuais no país, como argumenta o psicólogo Christian Dunker em sua obra Mal estar, sofrimento e sintoma ao revelar o retraimento em que as camadas sociais mais favorecidas pela renda vivem como se fossem síndicos de si mesmos (leia a resenha do livro aqui).

É por isso que Ícaro de Carvalho tem razão quando afirma que “o empreendedorismo é a nova religião do homem moderno”:

Materialista e secular, ele substituiu os Santos do seu altar por fotografias de homens bem sucedidos; os seus Evangelhos são livros como “O sonho grande” e “A força do Hábito”. Ele acredita, de alguma maneira, que tudo aquilo irá aproximá-lo do seu objetivo principal: sucesso, fama e dinheiro…de preferência agora! (CARVALHO, 2016)

Essa motivação de natureza ideológica tem sido interpretada de diversas formas pelos entusiastas do Grande Projeto Empreendedor da Humanidade, uma figuração posta aqui como expressão de uma avaliação bio-cultural das práticas do empreendedorismo: indivíduos dotados de cérebros predispostos à ousadia e ao risco, impulsivos e rápidos no poder de decisão, com maior capacidade cognitiva que os outros mortais [6], componentes capazes de provocar mutações psíquicas geracionais como quer Mohanbir Shawhney, um indu que vem fazendo sucesso internacional com obviedades do tipo “é preciso aproveitar as possibilidades da hiperconectividade e não deixar que ela roube nosso negócio”. Visto como uma das 25 personalidades mais importantes do e-business global, Shawhney foi contundente ao oferecer uma pista sobre o nível de aceitação que o apelo corporativo tem sobre os jovens, e sentenciou: “Essa geração não quer saber quem você é, mas qual a causa da empresa”.

Eis aí a segunda hipótese com que trabalhamos neste texto: o empreendedorismo veio ocupar o vazio deixado pelo processo crescente de desintelectualização das práticas culturais, em especial nos espaços onde o refinamento das ideias e da capacidade de discernir que elas permitem são da própria natureza do que fazem, como é o caso da Universidade.

No Brasil, no entanto, essa condição foi agravada por um tipo de instituição que, em favor de interesses meramente financeiros, aboliu inteiramente de seus projetos o compromisso educacional, substituindo-o pelo mito do adestramento para o mercado como virtude principal dos cursos que oferecem. Mais do que uma universidade de resultados, uma instituição onde a simplicidade de seus projetos funcionalistas criou a ideia de que não é preciso muito para que o sujeito esteja qualificado para o desempenho profissional que escolheu – fato que traduz uma certa inanição analítica e uma predisposição ao acatamento das estruturas sobre as quais refletiu muito pouco durante o curso que frequentou, se é que chegou a fazer isso.

O jornalista John Carlin, do The Guardian, conta um episódio interessante ocorrido durante um debate nos estúdios da BBC de Londres entre um colunista do The Times e um estudante de uma universidade inglesa. O jovem, que presidia uma entidade tipo DCE na instituição onde estudava, manifestou-se contrário à liberdade de expressão (o tema da discussão), a propósito da proibição de que uma líder feminista participasse de um evento na sua escola.

O fato tem peculiaridades locais, mas para Carlin é revelador de qualquer forma: ali onde o líder estudantil manifestou-se contrário à visita de Germaine Greer à Universidade Cardiff, ao contrário da opinião do velho professor que discutia a questão e defendia a presença da militante no campus da instituição, revelou-se uma sensibilidade conservadora da parte de quem se esperava transgressão, contestação, desconforto e crítica – atributos da própria vida universitária. Concluiu o repórter:

Os militantes universitários anglo-saxões de hoje censuram com base no que sentem. Praticantes de uma espécie de fascismo light, eles são os que mandarão dentro de não muito tempo. Se a coisa não mudar, teme-se pela democracia [7].

Quando observamos o panorama da Universidade brasileira, não desta ou daquela, estatal ou privada, a sensação é a de que praticamente todos os projetos pedagógicos que estão sendo postos em prática primam por essa “sensibilidade conservadora”, um eufemismo que esconde o fato de que o pensamento crítico está cada vez mais distante das salas de aula, abrindo terreno para uma postura desprovida de envergadura reflexiva e experimental – que estão entre as coisas que se a universidade não fizer não serão as empresas que o farão: refletir, experimentar, inovar e… empreender, aí sim, mas a partir de uma perspectiva que negue o conservadorismo com o qual os projetos de empreendedorismo têm sido postos em prática.

Talvez esta esteja sendo a mais nefasta consequência da adoção do empreendedorismo nessa perspectiva existencial em que a cultura empresarial o transformou: sua intromissão no reduto do currículo, lugar onde se manifesta toda a herança do pensamento reflexivo e experimental. O resultado é o que se vê: corpus inteiros de disciplinas sendo substituídos por palestrantes que literalmente vendem, como sinônimo de sucesso, pequenas receitas de empreendimentos comerciais. Para o alunado é possível imaginar que não há nada melhor do que ouvir um franqueado do McDonald narrar suas espertas aventuras comerciais, financeiras e administrativas, enredo muito mais atraente do que uma palestra hermética feita por um especialista em Chomsky, mas a sociedade vai pagar um preço altíssimo por isso…

É conhecido o ensinamento oferecido por Manuel Castells no 1º volume de sua obra A Era da Informação [8]. Segundo o professor catalão, o processo de inventividade que está na raiz das mudanças econômicas e que as estimulam invariavelmente vem acompanhado de rupturas conceituais que se transformam em desafios para os empreendimentos, e isso só é possível a partir do abandono de posturas conservadoras no terreno da cultura e da sociedade. Nos marcos de uma universidade que se limita a pensar o empreendedorismo como mimetismo do mercado – que é, ao final das contas, o que está acontecendo no Brasil – o resultado parece-nos a estagnação.

Sugestões de leitura:

* A revolução individualista, empreendedores e submissos (Carta Maior).

* Os discursos sobre o jornalista empreendedor (Contemporânea, UFBA)

* O amor virtual como instância de empreendedorismo e reificação (Galáxia, PUC-SP)

* A construção do papel do empreendedor social (Galáxia, PUC-SP)

* A invenção de um país de empreendedores sociais (Compós)

* Geração Y: superpreparados e frustrados (El País)

* O que o ecossistema de startups oferece e ninguém tem coragem de contar (Medium)

Esboços e projetos da sociedade empreendedora: mundo conexionista, sociabilidade e consumo (revista Famecos, v.23, 3, 2016)


Notas:

[1] A Grande Aposta, um filme que dá medo. El País, edição digital de 29/01/2106

[2] Jovem quer ser mais empreendedor, diz Luiz Barreto, presidente do Sebrae. Edição digital de O Brasil Econômico (IG) de 08/07/2013.

[3] Mortalidade das empresas; (Sebrae, 2013) Taxa de sobrevivência das empresas no Brasil (Sebrae, 2013); Metade das empresas fecha as portas no Brasil após quatro anos, diz IBGE (Folha de S. Paulo, 2015).

[4] Número de falências sobre 24%, puxado por micro e pequenas empresas. Edição on-line do Estadão, de 05/05/2015

[5] Idem, ibidem

[6] Como é o cérebro empreendedor. El País, 22/10/2015

[7] O estudante eunuco. John Carlin, El País, 10/11/2015

[8] A Revolução da Tecnologia da Informação, in A Era da Informação, Vol. 1, pp.53-64


Referências:

CASTELLS, M. (1999). A revolução da tecnologia da informação, in A Era da Imformação. São Paulo: Paz e Terra, 1999 (p 53-64)

CARVALHO, Í. (2016) Por que a indústria do empreendedorismo de palco irá destruir você, in Midium: https://medium.com/perestroika-blog/porque-a-indústria-do-empreendedorismo-de-palco-irá-destruir-você-3e18309ab47f#.l37wmk2aj

El País. A Grande Aposta, um filme que dá medo. El País, edição digital de 29/01/2016

El País. Como é o cérebro empreendedor. El País, 22/10/2015

El País. O estudante eunuco. John Carlin, El País, 10/11/2015

O Brasil Econômico. Jovem quer ser mais empreendedor, diz Luiz Barreto, presidente do Sebrae. Edição digital de O Brasil Econômico (IG) de 08/07/2013.

Sebrae. Mortalidade das empresas; (Sebrae, 2013)

Sebrae. Taxa de sobrevivência das empresas no Brasil (Sebrae, 2013)

Folha de S. Paulo Metade das empresas fecha as portas no Brasil após quatro anos, diz IBGE (Folha de S. Paulo, 2015)

O Estado de S. Paulo. Número de falências sobre 24%, puxado por micro e pequenas empresas. Edição on-line do Estadão, de 05/05/2015

Comentários