Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No Brasil, cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos espaços público e privado, feita por iniciativa da Fundação Perseu Abramo e do Serviço Social do Comércio (Sesc), em 2010. Para além do ambiente doméstico, as mulheres também enfrentam situações vexatórias e violentas. Um levantamento feito pela campanha Chega de Fiu Fiu revelou que 81% das mais de 7700 entrevistadas já deixaram de realizar tarefas e atividades triviais, como sair a pé, por medo de sofrer assédio nas ruas. Já o Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, mostra que quase 57% das vítimas dos estupros registrados naquele estado em 2014 eram negras. O mesmo trabalho indica ainda que 62% das mulheres assassinadas eram negras (19%) ou pardas (43%). Os três estudos citados, feitos em anos diferentes, ajudam a sistematizar com mais precisão e a tornar menos abstrato o cenário de abusos e maus tratos impostos às mulheres no Brasil.
Que a situação é gravíssima, enraizada na nossa cultura machista e patriarcal e dispersa por diversos grupos e camadas que compõem a nossa sociedade, já se sabia. O que ainda não existia era um local ou uma plataforma que reunisse todos esses trabalhos, para facilitar a atuação de pesquisadores e da imprensa, ajudando a democratizar informações. Desde o último dia 05 de agosto, no entanto, essa realidade começou a mudar. A Agência Patrícia Galvão, instituição que atua na área dos direito das mulheres, lançou um dossiê digital que compila, organiza e disponibiliza centenas de pesquisas a respeito do tema.
A jornalista Débora Prado, responsável pela construção do documento, conta que há 15 anos o Patrícia Galvão vem acompanhando e monitorando as violências praticadas contra mulheres. Justamente por desenvolver esse trabalho, a instituição acabou virando referência para repórteres e pesquisadores que buscavam informações confiáveis e especialistas em assuntos como estupro, violência doméstica e abusos cometidos contra as brasileiras. “As informações ficavam difusas, espalhadas em várias fontes. Os jornalista recorriam ao Patrícia Galvão para encontrar fontes confiáveis, pesquisas e especialistas”. Ela completa: “A gente já fazia dossiês que tinham boa circulação, mas apenas entre quem já era sensibilizado para essa questão”. O que faltava era ampliar esse alcance. E assim nasceu a ideia de um dossiê digital, com indicação de estudiosos e sugestões de abordagens. “Porque isso alimentaria os jornalistas, professores, pesquisadores e interessados em geral”, explica Débora, que é coordenadora de comunicação digital da Agência.
O dossiê digital
A diferença entre a forma anterior e a atual não é apenas a hospedagem em meio digital em detrimento do papel. A sacada foi justamente usar as características e ferramentas próprias dos sites e das redes sociais para melhorar a busca e a difusão das informações sobre violência contra a mulher. “O dossiê digital é intuitivo, tem um mecanismo de busca que funciona bem, usa filtros específicos, pode ser acessado por celular, tablete ou computador e, principalmente, é muito familiar para qualquer internauta, seja leigo ou estudioso da área”, afirma Débora. Tudo isso, garante, para facilitar o acesso às informações relativas à violência contra a mulher.
E, se a busca for mesmo bem sucedida, o que o usuário vai encontrar? “Dividimos essa grande temática inicialmente em oito tópicos: cultura e raízes da violência contra as mulheres; violência doméstica e familiar; feminicídio; violência sexual; violência de gênero na internet; violência contra mulheres lésbicas, bis e trans; violência e racismo; e direitos, responsabilidades e serviços para enfrentar a violência”, lista a coordenadora de comunicação digital. Em cada uma dessas páginas, o internauta se depara com o resultado de pesquisas realizadas por institutos, universidades e ONGs. “Números, comparações e gráficos com as respectivas fontes e os filtros vão ajudando a guiar a busca nesse universo de informações”, completa.
Além disso, cada um dos temas ganhou um banco de especialistas, com currículo, contato e área de estudo detalhada. “Como se fosse um mapa e um lugar de consulta”, sugere. Para os jornalistas, chama atenção uma seção de pautas, abordagens e cuidados na confecção das reportagens. “E um glossário com termos técnicos, específicos, que facilitam as buscas e dissolvem os enganos conceituais”. E para usuários em geral, a página de direitos, responsabilidades e serviços para enfrentar a violência é uma inovação. “A gente quis ter uma postura propositiva e não só de denúncia. Porque a pessoa pode ficar sem saber o que fazer depois que se depara com os dados de violências contra a mulher que sistematizamos. Então indicamos serviços de referência, de proteção, de cuidados com a saúde, delegacias e etc”, conta Débora.
Quem é essa mulher?
Superado o entendimento mais técnico do funcionamento do dossiê e sua proposta, a coordenadora de comunicação digital da Agência Patrícia Galvão reconhece que é impossível traçar um perfil único da mulher violentada que o usuário do site vai encontrar. Ela é enfática: “É um engano achar que apenas alguns grupos específicos de mulheres sofrem maus tratos e abusos”. Segundo a jornalista, o documento mostra que a violência é esparramada e difusa, “mulheres de todas as idades, etnias, classes sociais e escolaridades são maltratadas, estupradas, apanham, sofrem ofensas e têm medo”. O cruzamento de dados, no entanto, permite conhecer situações bem definidas. “Fomos propondo cruzamentos e identificando que algumas mulheres sofrem violências mais específicas, por exemplo, negras sofrem as violências das demais, como estupros e espancamentos, e ainda outras bem próprias, como exclusão do mercado de trabalho. O mesmo se passa com mulheres do campo, em comparação com aquelas da cidade”, explica.
O dossiê aponta ainda como os meios de comunicação tratam e refletem a violência contra a mulher. Ao observar as pautas e narrativas midiáticas, os organizadores do trabalho perceberam um espaço considerável para matérias que tratam de casos emblemáticos, como as violências cometidas contra Maria da Penha (que ficou paraplégica por conta das agressões do marido) ou Eliza Samudio (assassinada pelo goleiro Bruno). A imprensa reproduz também mitos e valores que legitimam posturas mais agressivas contra as mulheres. “Normalmente não é deliberado, mas num escorregão, o discurso que culpabiliza a vítima acaba se revelando”, alerta Débora.
A vantagem oferecida pelo dossiê, segundo a jornalista, é que quando os repórteres estão bem informados, adotam uma postura vigilante e mais cuidadosa, que ajuda muito a difundir valores contrários à violência, que criminalizam atos e posturas agressivas com as mulheres. “E isso causa um grande impacto na sociedade”, comemora. Ela garante que “o primeiro passo para enfrentar qualquer forma de agressão ou abuso é torná-lo visível. E nada mais eficaz para isso do que nomear”, ensina a coordenadora de comunicação digital da Agência Patrícia Galvão. Violência obstétrica, por exemplo, é um termo cunhado recentemente, mas que já foi adotado nas reportagens e vem ganhando espaço nas redes sociais, fóruns e etc. No futuro, essa modalidade de agressão deve entrar no dossiê, que vai ser atualizado constantemente, segundo Débora.
Por fim, a jornalista lembra que professores e escolas têm parcela importante no combate às violências e sugere que desde cedo o assunto pode estar em sala de aula. “É importante que as escolas comecem ainda na pré-escola a questionar sobre o papel atribuído às mulheres e aos homens e a discutir como isso no futuro pode impregnar as relações e autorizar violências”, sugere. Ainda segundo ela, a escola parece ser o melhor lugar para reunir e combinar os saberes. “Essa divisão em oito formas de violência contra a mulher é mais didática que real. Na prática, as violências são conjugadas, articuladas.”, explica. Só como exemplo, às vezes a mulher que apanha do marido também é impedida de buscar sua independência econômica e é ameaçada o tempo todo. Só aí, são três formas de agressão num único cenário.
Assim, associar as formas de agressão é uma tarefa primordial. As escolas já buscam esse diálogo entre as disciplinas. Inserir a violência contra a mulher como tema horizontal pode ser um bom exercício. Simultaneamente, desnaturalizar práticas, questionar comportamentos, enfrentar tabus e buscar as origens culturais que autorizam essa violência também é fundamental. A escola costuma ser um bom ambiente para dissolver mitos e trabalhar com fatos e realidades, contextualizando tudo histórica ou cientificamente. “Melhor ainda será se os alunos, desde muito cedo, entenderem que a violência é sempre uma imposição do poder de um sobre o outro e que uma cultura consciente e cotidiana de direitos humanos desestimula essas práticas”, avalia Débora.