Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Fazia tempo que um filme brasileiro não provocava tantas análises e comentários. Mesmo antes de ser indicado como a obra que vai representar o país no Oscar de 2016, Que horas ela volta?, da cineasta Anna Muylaert, já causava buchichos na crítica especializada e nas filas das salas de cinema. O filme já recebeu o prêmio especial para as atrizes Regina Casé e Camila Márdila no Festival de Sundance e também o prêmio da Confederação de Cinemas de Arte e Ensaio na seção Panorama do Festival de Berlim. O tema central da narrativa, sugerido, com outras nuances, perspectivas e contextos, por obras comoCidade de Deus, de Fernando Meirelles, e Como nascem os anjos, de Murilo Salles, incomoda e dá o que falar. O último filme que tinha entrado de sola na discussão sobre a ascensão da chamada classe C, popular, alegre, barulhenta, extremamente exigente, e a entrada desse grupo em lugares que antes pertenciam apenas às classes mais abastadas, tinha sido O som ao redor, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, lançado em 2012. De lá para cá, o assunto seguiu desconcertando a classe média tradicional, mas estava custando a retornar à telona. Ressurgiu no primeiro semestre, com Casa Grande, de Fellipe Barbosa. E volta a ganhar força e espaço com o desembarque nos cinemas do filme dirigido por Anna.
O longa é estrelado por Regina Casé, atriz e apresentadora da TV Globo, muito conhecida e identificada com as camadas mais populares. Também a Globo, na sua porção distribuidora, a Globo Filmes, foi quem espalhou o filme pelas salas de cinema e garantiu espaço para ele na programação televisiva. Para coroar, o Ministério da Cultura escolheu a obra para representar o Brasil frente aos outros estrangeiros e tentar abocanhar a estatueta dourada mais desejada do cinema. “A boa bilheteria que o filme vem fazendo se deve muito à indicação ao Oscar, mas também a muito se discutir o filme, as falas nas mídias sociais têm um papel importante para chamar público e é uma estratégia que tem funcionado bem para filmes não muito grandes”, explica o crítico de cinema Sérgio Alpendre, que publica na Folha de São Paulo, em entrevista exclusiva à revista Giz.
Tudo isso ajuda a alcançar certo sucesso e repercussão, mas é a temática que o filme busca trabalhar que convida e causa repulsa, que encanta e perturba e, por isso, chama para o debate. O sociólogo DeniRubbo, numa crítica publicada no site Outras Palavras, resume assim o filme: “Do começo ao fim, a intenção de Que horas ela volta? é mostrar-se crítico à “família burguesa” que mora em um casarão no Morumbi, composta pelo pai, mãe e o filho. (…) Por mais que morem juntos, cada qual tem uma vida bastante independente; uma família afastada de si mesma”. O deprimido pai, a soberba mãe e o adolescente filho mimado são todos cuidados por Val, empregada da casa há anos. Tudo parece equilibrado até que Jéssica, filha de Val, chega para ficar com a mãe enquanto se prepara para prestar o vestibular.
Jéssica, como se podia esperar, é o ponto de virada, que passa incomodando, seduzindo, irritando e mobilizando a precária estabilidade da casa. O pai parece se apaixonar por ela, tenta seduzi-la e chega a assediá-la; o filho estranha, mas ao mesmo tempo quer chegar mais perto, depois sente repulsa pela concorrência que Jéssica representa, e a mãe a detesta desde o começo. Até tenta disfarçar, mas não gosta da convivência e, pouco a pouco, vai restringindo o espaço de circulação da filha de Val, que é “quase da família”.
Para viver essa narrativa, Anna foi muito feliz ao escalar um time feminino de primeira grandeza. Regina Casé faz uma Val imediatamente identificada com alguma empregada que já passou pela vida de muitos dos espectadores. Genérica, mas convincente e empática. Bárbara, a patroa, provoca indignação e nojo lá para as tantas, e cumpre bem esse papel. E Jéssica, para fechar o trio de ases, “estranha por ser muito segura de tudo”, como diz o adolescente Fabinho, transita entre a empatia e a empáfia, entre a raiva do público e torcida íntima de cada espectador.Não é melhor que ninguém, mas também não é pior, como ela mesma se define.
“É um filme de atriz, de atrizes. As mulheres estão todas muito bem, tanto as protagonistas, quanto as coadjuvantes”, defende Alpendre. E aí, talvez o fato de serem mulheres, dirigidas e roteirizadas por uma mulher, ajude na conquista do grande tesouro do filme na opinião de vários críticos: as delicadezas. O olhar feminino que procura sentido – e até beleza – nas coisas mais mundanas e banais. E assim, mais do que contar a crise da tradicional família burguesa desequilibrada pela invasão da classe C que jamais deveria ter saído do quartinho dos fundos, ou da senzala, a luta de classes no ambiente doméstico,Que horas ela volta? “finca sua criatividade nas cenas mais despretensiosas, no navio das sutilezas, no mergulho das relações sociais invisíveis, mas profundamente poderosas na relação entre patrões e criados no Brasil”, traduz Rubbo, na sua já citada crítica.
O senão mais levantado é que, em termos cinematográficos, nem sempre Anna faz as melhores escolhas. A construção dos personagens e até da história mil vezes escorregaria em estereótipos que beiram a caricatura. Talvez a personagem que melhor represente isso é Bárbara, a madame, fina, arrumada, falsa. Em nenhum momento, o espectador torce por ela. Nem quando ela sofre um pequeno acidente, nem quando ela chora se queixando que o filho não ligou para o acidente, nem quando ela se queixa que Fabinho não deixa ela abraçá-lo. Um personagem que é odiável do início ao fim da trama é, em geral, pouco humano e, portanto, não mobiliza toda a empatia que se podia alcançar.
“Aí entra naquele maniqueísmo que me incomoda um pouco, porque mostra os patrões não como vilões, mas ou parados como o Carlos, feito pelo Lourenço Mutarelli, ou arrogante como Bárbara, a personagem de Carina Teles”, propõe Alpendre, na entrevista que deu para a Giz. Para ele, as opções estéticas às vezes também favorecem a troca rasa com os protagonistas. O crítico de cinema coloca que os planos que não expõem as emoções – como na cena do esdrúxulo pedido de casamento que Carlos faz a Jéssica –, ou que não dão tempo de assimilação por parte do público – como o segundinho de incômodo que a família experimenta por Jéssica afirmar que vai prestar vestibular para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Essas ausências negam uma experiência que poderia ser importante para o espectador.
A decisão por não usar os planos clássicos, e preferir imagens mais abertas, aproveitando a casa que não é um cenário também traz consequências. “Tem um descompasso entre forma e conteúdo que talvez seja o principal ponto negativo do filme, porque isso faz com que os personagens não tenham essa dimensão maior”, critica Alpendre. O sociólogo Rubbo, no texto do Outras Palavras, concorda: “Porém, Que horas ela volta? incorre num problema comum do cinema brasileiro. Não é capaz de retratar os burgueses e suas idiossincrasias senão por meio de caricaturas (…). Recusa-se a examinar as relações sociais e psicológicas de forma a apontar contradições no terreno da luta de classes, nas dimensões da cultura, da economia, do político e do simbólico”. Curiosamente, essa mesma escolha da direção resulta em planos e posições de câmera absolutamente felizes, “como aquela fresta de onde se vê a sala de jantar do ponto de vista da cozinha”, sugere. Revela e esconde ao mesmo tempo, e oferece uma faceta xereta, intrometida de Val, o que é bom para que ela não seja só 100% boa, ou ingênua, ou simplória. Começar a desvendar as camadas psicológicas e emocionais, as sutilezas, as contradições mais profundas e mais humanas dessa classe C que passa a ser retratada cinematograficamente é uma lição que a arte do país precisa aprender ainda um pouco mais.
Entre virtudes e problemas, o crítico da Folha ouvido pela Giz sugere que, qualquer que seja o ponto de vista escolhido para abordar Que horas ela volta?,o filme é rico de conteúdos, formas, discussões e problemas que fazem dele uma exploração pertinente para aulas e projetos educativos. “Do estudo do roteiro às linguagens de cinema, passando pela discussão da luta de classes e do Brasil atual, tudo pode ser discutido em aula”, finaliza.