Sidarta Ribeiro, neurocientista e coordenador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Participou da mesa “Ilusões da mente”
“Os estudos em neurociências avançaram rapidamente nos últimos vinte anos. Eu jamais imaginei que poderia chegar a esse estágio, a analisar e mapear os pensamentos de uma pessoa, sem que ela diga o que está pensando. Era coisa de ficção científica. Hoje a gente já faz isso. Consigo também decodificar sonhos, ainda que de maneira rudimentar. Daí a alcançar a consciência vai um fosso. Não quer dizer que vamos conseguir vivenciar a consciência do outro. Aliás, para entender de fato essa questão, acho que vamos precisar realizar pesquisas neurais com a gente mesmo. Porque quando olho para o outro, essa experiência fica achatada. O que significa dizer que o futuro não é só tecnológico, é também conceitual. A pesquisa neural terá de ser feita nos cérebros dos próprios pesquisadores. Cai a separação entre sujeito e objeto. Existe uma máquina por trás das nossas escolhas que é bastante complexa, mas que está se tornando ao mesmo tempo cada vez mais transparente. Se tomamos decisões conscientes precedidas por um inconsciente, estamos em pleno domínio das contribuições freudianas. Isso é uma provocação. Mas minha escolha não é menos livre por haver um processo biológico, tudo isso só deixa claro o processo. O que eu quero muito? Conseguir descrever o cérebro como hoje a gente descreve o baço, o fígado, o coração”.
Richard Flanagan, australiano que escreveu o romance “O caminho estreito para os confins do Norte”, vencedor do Man Booker Prize 2014. Inspirado na trajetória do pai do autor, o livro resgata a história da construção de Burma, a ferrovia da morte (415 quilômetros, ligando a Birmânia à Tailândia) idealizada pelo Japão para transportar tropas pelo continente asiático durante a II Guerra Mundial e na qual trabalharam forçadamente, como escravos – e morreram –, cerca de cem mil prisioneiros de guerra.
“Demorei doze anos para concluir a obra. Escrevi cinco versões completamente diferentes do livro. Na verdade, foram cinco romances diferentes. A cada fracasso, amassava os manuscritos, queimava essa papelada numa churrasqueira de verdade e começava tudo de novo. O que parece indicar que sou um bom reescritor. Para as pessoas que passaram por tragédias, pelo inferno, sobreviver é ter que lidar com essas experiências para sempre. A obscenidade da guerra não é apenas o sofrimento. Ela exige que pessoas boas causem sofrimentos aos outros. Até quem é prisioneiro sofre pelos companheiros. Passam o resto da vida tentando lidar com esses sentimentos, muitos não conseguem, inventam mitos, apagam lembranças. Para escrever o livro, fui até o Japão, encontrar um militar japonês que era um carrasco dos tempos da guerra, o ‘Ivan, o terrível’ daqueles campos de trabalhos forçados. Tinha sido condenado à prisão perpétua. Estava com 92 anos, me recebeu muito bem, foi gentil. Não cheguei como acusador. Ele me dizia que não se lembrava das barbaridades. Depois de uma hora e meia de conversa, pedi que me desse um tapa. Parecia bizarro, e era mesmo. Mas o tapa era o primeiro flagelo, a agressão mais comum. Ele ficou em pé, tenso, postura de atleta. O corpo dele se lembrou do que a mente se recusava a recordar. O homem sobrevive por sua capacidade de esquecer, para seguir vivendo. Para que a sociedade se liberte é preciso voltar para a escuridão, transcender o horror e voltar para a luz. Achei que o livro deveria questionar nossa noção clássica de heroísmo. Quando passamos por testes, o heroísmo, a raiva, a covardia, o terror, tudo isso está junto. São várias as ficções que criamos sobre nós mesmos. No meu romance, tento registrar o que as pessoas fazem. Acho que os romances ganham vida justamente quando os leitores investem na obra todas as suas próprias histórias. Dentro da gente, há sombras que avançam e que retrocedem, às vezes somos heróis, às vezes somos estúpidos. Precisamos estar alertas. O bom romance nos alerta para essas contradições. Cresci como um filho dessa ferrovia da morte. Senti que eu tinha que escrever sobre essa experiência para minha família. Queria era usar o livro como forma de falar do bem e do mal. Escrevi uma obra que explora as várias formas de amor”.
Ngũgĩ wa Thiong’o, queniano, autor de “Um grão de trigo”, que narra a independência do Quênia e as tensas e múltiplas relações entre colonizadores e colonizados
“Em meus dois primeiros romances, tinha usado o recurso do desenvolvimento linear do enredo. Quando cheguei ao ‘Grão de trigo’, já tinha lido muito Joseph Conrad, e fiquei fascinado com a possibilidade dos deslocamentos temporais, o caleidoscópio. O mesmo fato, visto pela mesma pessoa, em momentos diferentes, têm outra dimensão. Outra pessoa tem percepção diferente desse mesmo acontecimento. Estava interessado nas múltiplas vozes. Para mim, a luta pela liberdade é coletiva. Queria capturar essa saga coletiva. Não há heróis individuais. A coletividade é o herói do meu romance. Em todos nós, há distâncias entre expectativas e realidades. Não sabemos como reagiríamos diante de uma situação limite, uma tragédia. Somos textos de contradições. O que me interessa é esse tipo de situação. Não aceito a tortura, nunca, não se trata disso, mas o que um torturador faz quando chega em casa, como ele conversa com a família? Como escritor, esse tipo de pergunta me fascina, porque são perguntas que dizem respeito ao humano. Nasci antes da Segunda Guerra Mundial, vi muito sangue. Mas minha capacidade de sonhar permaneceu. Devo muito à minha mãe, que não sabia ler nem escrever, mas me contou histórias e me botou na escola. O sonho da educação passou dela para mim”.