“Conforto é péssimo. Nada de poltrona. Escritor precisa trabalhar numa cadeira desconfortável, daquelas velhas, de madeira dura. Sem comer. Beber, nem pensar. É assim que funciona, que ele consegue produzir, se concentrar, buscar as histórias que estão escondidas e construir suas metáforas. Um romance só nasce quando tenho imagens e memórias, ideias, que de repente se movimentam como crianças, para se transformar em frases com melodia. O que está inerte e adormecido torna-se dinâmico. A escrita e a frase nascem do espaço íntimo. É o milagre humano da inspiração. A vivência é fundamental. Escritores usam pequenos detalhes do que realmente aconteceu, do que acompanharam. Com 12 anos, eu sentava com adultos na sala da minha casa para escutá-los, até que alguém dali me expulsasse. Tinha uma memória prodigiosa. Guardava e lembrava de tudo. Depois de um ano, ainda recordava falas das amigas da minha mãe. Era um perigo e um pesadelo para a minha família. É exercício fundamental para o romancista. Por essa razão, muitas das passagens de meus romances são autobiográficas. Venho de uma cidade pequena da Irlanda, perto do mar. Quando estou longe, sinto saudade. Tendo a voltar para lá sempre, nos livros. Você se acostuma, sente falta. É identidade. De fato, é uma forma muito interessante (os diálogos e as conversas fantásticas em ‘Nora Webster’, que acaba de ser lançado e narra a trajetória de uma senhora viúva, na Irlanda dos anos 1960). Procuro antes expressar o que o personagem está pensando, sonhando, lembrando. E em seguida o que ele diz. Pode ser muito diferente do que veio antes. É o jogo entre o que está acontecendo na mente dele e o que se revela. O não dito me interessa, de forma que o leitor entre numa espécie de conspiração com o personagem, o que ele sabe e o que esconde. É estratégia muito poderosa. O leitor vai lentamente seguindo e descobrindo a história. São personagens complexas, que se destacam (as personagens femininas, marcantes em seus livros). Como faço? Em primeiro lugar, sempre observei minha mãe e as irmãs dela conversando. Além disso, é incrível notar como as mulheres conseguem falar sobre assuntos aparentemente banais. Os homens falam de futebol, se repetem, falam sobre nada. É desesperador, você fica esperando, vamos lá, diga alguma coisa. Não sai. As mulheres estão sempre conversando. Minha Maria, vinte anos depois da crucificação de Cristo, queria falar tudo. Meu trabalho foi deixá-la falar. E tornar essas falas críveis. Foi impressionante (destacando como as narrativas ajudaram a aprovar o casamento homossexual na Irlanda, por meio de plebiscito). Precisava ser plebiscito, por determinação constitucional. A gente precisava mudar o voto de cerca de um milhão de pessoas. Como convencê-los? Contando histórias. Não fizemos uma campanha conceitual e abstrata, teórica, falando dos direitos humanos, dos direitos dos gays. Contamos nossas histórias. Depoimentos e testemunhos. E muita gente foi saindo do armário, o filho do político, o ministro da Defesa, todos fomos dizendo ‘temos namorados, temos namoradas, somos felizes, queremos casar, nos deixem viver assim’. E aconteceu uma coisa incrível, o filho foi pedindo para o pai, vota por mim, o vizinho também. Uma linguagem nova foi usada. Os mais novos conquistaram os votos dos mais velhos. Foi muito bonito”.