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Destaque

O mito da impunidade dos adolescentes

By 25/06/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Foi entoando o cântico clássico de estádios em jogos da Seleção – “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” – que deputados da chamada ‘bancada da bala’, entre eles Major Olímpio (PDT-SP), Delegado Waldir (PSDB-GO) e Marco Feliciano (PSC-SP), comemoraram o primeiro passo para a redução da maioridade penal no Brasil. Na quarta-feira, 17 de junho, a comissão especial que analisou a matéria conseguiu aprovar o relatório que altera a Constituição. A medida ainda deve ser votada no plenário da Câmara. Por se tratar de proposta de emenda à Constituição (PEC), precisará de 308 votos, em duas votações, para ser ainda em seguida enviada à apreciação do Senado. A mudança sugere que brasileiros com mais de 16 anos e que tenham cometido crimes graves, como assassinato, estupro ou latrocínio, passem a ser encarados e punidos como adultos, respondendo por seus atos.

Soa mesmo estranho que representantes legitimamente eleitos pela população comemorem com alegria e nenhum constrangimento a possibilidade de encarcerar em presídios jovens com menos de 18 anos. No entanto, o grupo de parlamentares procura justificar a euforia apoiando-se no desejo de parcela significativa de brasileiros. De fato, de acordo com pesquisa do Instituto Datafolha, divulgada no dia 22 de junho, 87% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal no país. Não seria justo, na visão dessa maioria, alguém cometer um crime como adulto, mas ser julgado e, quiçá, punido como criança. Os deputados, portanto, estariam respondendo ao anseio de uma população que “não aguenta mais tanta violência e impunidade”. Aliás, programas policialescos de TV, de rádio e matérias de jornais reverberam diariamente casos de adolescentes que desrespeitaram a lei – ‘seguindo impunes por aí’. As narrativas são repetidas à exaustão e o discurso da falta de punição e da falta de justiça também ganha ressonância.

O risco – e não é pequeno – é que esse ‘círculo de retroalimentação da impunidade’ parece não se sustentar quando se observa pesquisas e dados por elas apurados, os números oficiais. Na verdade, o estudo mais recente a respeito desse tema mostra um cenário bem distinto desse discurso recorrente: o sistema penal juvenil brasileiro existe, opera e, com frequência, é mais severo do que o recomendado. O trabalho O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Redução da Maioridade Penal, coordenado pela economista Enid Rocha Andrade e Silva, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e também por Raissa Menezes de Oliveira, mostra com rigor científico que “os menores infratores são responsabilizados sim, também são julgados e punidos e, em muitos casos, com rigor excessivo, se levarmos em conta as recomendações do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA”, destaca Enid.

Antes de entrarem na questão específica do conflito com a lei, Enid e Raissa acharam importante por bem traçar um perfil geral da situação do adolescente no Brasil. A faixa da população que vai dos 12 aos 17 anos, embora conte com 21 milhões de pessoas, não é objeto de muitos levantamentos. Assim, elas encontraram um contingente que, apesar dos avanços das políticas sociais dos últimos anos, ainda está fora da escola e não tem trabalho, justamente num período da vida em que a educação e o lazer deveriam ser as linhas mestras da vida.

Partindo para os jovens que, de alguma maneira, estão em choque com a lei, as pesquisadoras chegaram a um padrão de exclusão ainda mais potencializado. Em 2013, ano da coleta dos dados da pesquisa, o Brasil contava com cerca de 23 mil adolescentes com privação de liberdade. Desses, 64%, ou aproximadamente 15.200 rapazes e moças, estavam internados em instituições (a pena mais severa). Foi sobre esse grupo de internados que o estudo do Ipea se debruçou. E o que as pesquisadoras descobriram? Quando cometeram a infração, 50% desses jovens já haviam abandonado a escola; 50% não trabalhavam; 70% vinham de famílias extremamente pobres; 60% tinham entre 16 e 18 anos; 60% eram afrodescendentes e 95% eram do sexo masculino. Um perfil que confirma a lógica da exclusão social. “É bastante conhecida a relação entre exclusão e violência. O que encontramos entre os adolescentes em conflito com a lei e confinados em instituições só corrobora a percepção. O estado de vulnerabilidade com que eles chegam e atravessam a adolescência é um convite para romper as fronteiras da legalidade”, alerta a coordenadora do estudo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indica sete possíveis punições para o menor infrator, que vão da advertência formal à privação total da liberdade. A mesma lei define que a punição varia de acordo com a gravidade do delito cometido. A privação parcial ou total da liberdade, assim, só é recomendada em casos de atentados contra a vida, como assassinato, latrocínio e estupro. Para os outros delitos, menos sérios, porque atentam contra o patrimônio e não contra a vida, também as penas devem ser menos sérias. Entretanto, entre os internados, as pesquisadoras encontraram 3200 jovens que haviam praticado homicídios, latrocínio ou lesão corporal. “Do total considerado, esses adolescentes representam 20%. Todos os outros, em pena de privação de liberdade, tinham cometido delitos contra o patrimônio”, conta a pesquisadora. Ou seja, a privação de liberdade vem sendo indicada mesmo para delitos menos graves, prática em desacordo com o ECA. “Encontramos uma realidade de severidade na aplicação das penas. O sistema penal está operante e rígido com os adolescentes em conflito com a lei, o que mostra que o discurso da impunidade entre os jovens é mesmo um mito”, defende Enid.

Então por que a narrativa dominante defende ferrenhamente que é preciso reduzir a idade penal para punir os adolescentes infratores que cometem crimes e saem ilesos? “Porque é a opção mais fácil. Ela não é baseada em nenhum dado científico, mas soa como solução para os problemas”, alerta a pesquisadora do Ipea. E segue: “O pior é que o mito da impunidade impede de ver o que a pesquisa mostra com clareza: quando chegam ao crime, os adolescentes já viviam uma situação de exclusão social preocupante. Estavam fora da escola e do mercado de trabalho, vinham de famílias pobres e, mais, não tinham nenhuma perspectiva de futuro”, completa.

Ela toca numa questão que dialoga diretamente com a educação e com os professores. “Educadores sabem que a adolescência é um período da vida extremamente importante, porque é nele que a pessoa começa a se questionar sobre seu papel na sociedade e buscar seu reconhecimento”, lembra a economista. “Se esse reconhecimento não vem da escola ou do trabalho, que são os dois maiores motores para mobilidade social, pode, sim, vir do crime. Se o adolescente encontrar seu lugar entre as organizações criminosas, será muito difícil tirá-lo de lá”.

O trabalho, portanto, deve ser anterior ao encarceramento, com a oferta e o fortalecimento de estruturas sociais que consigam garantir outros caminhos para os jovens, de forma que o crime organizado não seja uma opção de vida. Até porque, o que a sociedade pode esperar e imaginar como futuro para um adolescente que ficou internado por meses em uma instituição prisional? “O Brasil não conhece essa população. São poucos estudos sobre os adolescentes e menos ainda sobre os adolescentes em conflito com a lei. O que a gente já pode dizer é que as penas alternativas, que oferecem outras ideias de futuro para os jovens, costumam trazer melhores resultados”, sugere a pesquisadora.

Enid refere-se às medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Para crimes menos graves, o ECA recomenda penas em meio aberto, como prestação de serviços para a sociedade. Essas ações são acompanhadas de perto por instituições sociais associadas à Justiça e contam com o apoio de assistentes sociais e de educadores e facilitam o acesso à escola, à saúde e ao mercado de trabalho. Desde que o sistema judiciário começou a apontar essas punições alternativas, com o respaldo dos Centros de Referência Especializados em Assistência Social, os CREAS, ao menos a orientação do ECA vem sendo observada.

“Já começamos a coletar os dados sobres as punições alternativas, mas ainda não temos as conclusões. No entanto, acreditamos que colocar o jovem em conflito com a lei diante de um aparato social que se responsabiliza por ele é um caminho mais eficaz para esse adolescente encontrar suas potencialidades e buscar seu lugar na sociedade”, defende a coordenadora do levantamento feito pelo Ipea. Em resumo, ela reforça, o que a pesquisa divulgada advoga é que, antes da redução da maioridade penal, a sociedade invista efetivamente na redução da exclusão social e no apoio ao adolescente que procura seu espaço no mundo.

 

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