Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Em meados de março deste ano, editorias de jornais e sites que cobrem educação estamparam a novidade que ganhou rapidamente apoios e críticas nas redes sociais e ameaçou sacudir os alicerces que sustentam o sistema de ensino do Brasil. As notícias davam conta de que a Finlândia seria o primeiro país do mundo a abolir o tradicional esquema de oferta de disciplinas para educar seus alunos. A imprensa daqui repercutia uma reportagem de fôlego que o inglês The Independent produzira. Segundo o jornal britânico, as escolas do país nórdico estavam começando um processo de trocar o fatiamento do conhecimento através de grandes áreas do conhecimento – matemática, história, ciências naturais etc. – por tópicos multidisciplinares baseados em eventos e fenômenos da vida e do mundo. Assim, já a partir de 2016, novas diretrizes curriculares norteariam aulas e práticas colaborativas, com professores dos distintos saberes trabalhando simultaneamente com um mesmo grupo de alunos. Ainda segundo o Independent, em Helsinque, a capital finlandesa, 10 escolas já usariam essa nova metodologia.
Como a Finlândia é reconhecidamente uma das campeãs nos rankings de educação, que medem da qualidade de vida dos professores ao nível de competência dos estudantes, passando pelos resultados em provas de nível mundial, as atenções de educadores se voltaram imediatamente para a proposta, no mínimo instigante e inovadora. A pergunta que começou a circular era: será esse então o futuro das escolas e da educação? Professores começaram a refletir sobre como seria possível abrir mão das velhas e conhecidas disciplinas e como seria a implantação de um método diferente. A Revista Giz, por exemplo, recebeu e-mails de professores pedindo ajuda sobre a veracidade da informação.
No entanto, antes que a discussão se aprofundasse, as autoridades finlandesas vieram a público para alertar que não era bem assim, que a divisão por disciplinas seria mantida, mas que o novo método incluiria fortemente a transdisciplinaridade. O gerente educacional de Helsinque, Marjo Kyllonen, explicou que, já hoje, as escolas finlandesas oferecem ao menos um período por ano de ensino transdisciplinar, baseado em fenômenos. Em entrevista ao site de educação Porvir, Kyllonen contou que “na capital, a reforma está sendo conduzida de forma mais acelerada, com as escolas sendo encorajadas a oferecer dois períodos. A previsão de é de que em 2020 a transição estará completa em todas as escolas do país”.
“Não há comparação socioeconômica possível. Lá não tem pobreza, não tem nem miséria. É um país com território pequeno, em que as condições são mais semelhantes”
Num desmentido publicado pelo The Independent, o chefe do desenvolvimento curricular do Ministério da Educação finlandês, Irmeli Halinen, afirmou que os estudantes também deverão participar ativamente do planejamento destes estudos. E que as disciplinas tradicionais vão continuar, mas com menores fronteiras entre elas e maior multidisciplinariedade no ensino. “Teremos sete áreas de competências transversais que deverão ser desenvolvidas em conjunto com as disciplinas escolares. Esta é uma nova maneira de combinar o ensino baseado em competências com aquele baseado nos assuntos”, sugeriu. Dessa forma, a revolução muda de figura e passa a ser uma espécie de grande estímulo à transdisciplinaridade, com troca entre professores e ensino mais baseado em fenômenos que em conteúdos segmentados e não comunicantes, mais em dia com os saberes do século 21, portanto.
Modelo serve para o Brasil?
Os acontecimentos serviram para levantar as discussões sobre os rumos que o Brasil quer tomar em relação à educação. E a indagação que se faz necessária diante desse cenário é: um modelo mais aproximado com o finlandês seria adequado para a educação brasileira?
Para refletir sobre o tema, a Revista Giz ouviu a professora da Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP), Branca Ponce. Especializada em currículo educacional, a pesquisadora começa fazendo uma ressalva fundamental: a distância das realidades da Finlândia e do Brasil. “Não há comparação socioeconômica possível. Lá não tem pobreza, não tem nem miséria. É um país com território pequeno, em que as condições são mais semelhantes”. Por isso mesmo, também a Educação é completamente diferente, difícil de ser comparada. Branca explica que o sistema educacional finlandês é “profundamente afinado com o sistema internacional de cobrança de currículos, onde se forma fundamentalmente um tipo de gente que esteja a serviço da reprodução do capital, não só em cada nação, mas internacionalmente”, provoca.
Em outras palavras, o sistema internacional definiu algumas competências que têm que ser atingidas em cada nível – equivalentes ao nosso infantil, fundamental, médio e terceiro grau. Esses critérios são, segundo Branca, definidos pelo Banco Mundial, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e por outras instâncias internacionais independentes das escolas. “E, por isso mesmo, alheias às necessidades de cada nação de cada povo, às culturas. Você simplesmente tem que chegar lá”, explica. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, Pisa, é o instrumento mais conhecido para aferir as competências dos estudantes, e a Finlândia é quem ocupa o primeiro lugar, por isso ela está com tanta força para pautar as discussões mundiais. No entanto, a professora da PUC/SP reforça que “quem determina o primeiro lugar não é a educação sozinha, é a condição socioeconômica” e, por isso, se o Brasil quiser se aproximar da educação finlandesa deve, primeiro, afinar as condições sociais e econômicas daqui com as de lá. O Brasil também é adepto desse sistema internacional de avaliação e aplica não só o Pisa, como outros testes nacionais, estaduais e municipais. “Não tem como fugir desse modelo. E medir e avaliar é importante para mensurar a realidade de cada país, e o Brasil precisa apresentar esses números: certificados, estudantes que avançaram e etc. Agora, esses números são um engodo, uma balela”, sentencia a professora da Pós-Graduação em Educação da PUC/SP.
Base Nacional Comum
Coincidentemente, o Brasil também está atravessando um período de elaboração e discussão da chamada Base Nacional Comum, um documento que vai determinar o que os alunos precisam aprender em cada etapa da educação. Ainda em fase preliminar, o projeto ainda vai passar por consultas públicas antes de ser implantado de fato. A expectativa do Ministério é que o documento esteja em vigor em meados de 2016. Segundo especialistas em educação, a falta de um currículo unificado seria um dos empecilhos para o avanço da educação do país. A professora Branca acredita que não é desejável uma base nacional unificada, porque, em tese, ela já teria sido discutida em legislações anteriores e essa agora seria uma repetição. Além disso, o currículo uno abriria espaço para um fantasma que preocupa alguns educadores. “O currículo prescrito pode abrir espaço para que as escolas comprem sistemas já prontos para aplicar, ou seja, a escola pública se abriria ao sistema privado de ensino, o que pode ser bem grave”, aponta a especialista. Junto com esse temor, Branca chama a atenção ainda para outro risco: caso as escolas fiquem muito atentas à base curricular, podem esquecer uma de suas missões importantes. Ela explica: “A escola não deve só instruir. Ela tem de ser responsável por sanar as dificuldades que o aluno tem, para que possa se instruir. Se ele vive num ambiente violento, se tem problemas de nutrição, se não tem transporte para chegar na escola, não vai conseguir se instruir”. Essas responsabilidades estão propostas no Plano Nacional de Educação, aprovado em junho de 2014 e, segundo a professora, é a ele que as escolas precisariam se ater primeiro.
“Quem determina o primeiro lugar não é a educação sozinha, é a condição socioeconômica”
Entretanto, apesar de certa divergência com a Base Nacional Comum, Branca concorda que é preciso discutir o que ensinar, a que patamares os estudantes devem chegar e em que fase devem alcançá-lo. “Mas mais do que isso, devemos nos questionar qual é o conhecimento que importa. Qual é o conteúdo, a ferramenta, o conhecimento que vai fazer diferença e formar um cidadão?”, propõe. Diante disso, os educadores devem estar atentos para o fato de que todo currículo nacional é sempre construído através de embates políticos e ideológicos. O que vai ser ensinado e como vai ser ensinado é fruto de vitórias e derrotas de grupos que pensam de maneiras diferentes. Quem tem mais força, nas consultas públicas, por exemplo, é quem molda o desenho final do currículo educacional. Assim, se tem algo que a Finlândia pode ensinar, é que a participação dos envolvidos na articulação dos documentos-guia da Educação no país é fundamental. Exigir que os envolvidos sejam escutados, que suas propostas sejam anexadas aos Planos Nacionais, Bases Nacionais e outros instrumentos é um direito democrático que deve ser exercido pelos professores, diretores de escolas e comunidades de pais e alunos, porque isso, sim, pode ajudar a construir uma educação que atenda às necessidades dos brasileiros.