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Educação

A dama da literatura infantil

By 16/03/2015No Comments

Nelly Novaes Coelho é uma das principais especialistas do Brasil quando o assunto é literatura infantil. Professora da Universidade de São Paulo há décadas, esteve sempre atenta à importância que a escrita tem para a formação dos pequenos leitores e, em determinado momento de sua trajetória acadêmica, disposta a colocar a teoria em prática, sugeriu a criação de uma disciplina complementar ao currículo básico da universidade e que fosse capaz de formar educadores habilitados a trabalhar com livros infantis. “Como eu não pedi verba nenhuma, a proposta foi aceita, e em 1980 o curso passou a existir”, conta, entre risos. De lá para cá, a iniciativa cresceu, formou centenas de estudantes e, segundo Nelly, conquistou o status de segundo curso mais procurado da Faculdade de Letras da USP, só perdendo para Língua Portuguesa.

Da implantação do curso para a elaboração do Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, uma de suas obras mais importantes, publicada originalmente em 1983, o caminho foi quase natural. “Nem me pergunte como se deu essa trajetória, porque fiz questão de esquecer, mas posso dizer que li cerca de quatro mil livros que viraram os verbetes do dicionário”, recorda a especialista. Embora seja pouco divulgada pela imprensa, a obra é tida como uma espécie de bíblia para professores do ensino infantil e fundamental e para todos aqueles que trabalham com linguagem e criança.

A autora conta que a grande preocupação e motivação dela sempre foram formar bem o professor. “Tudo passa pelo educador. Se ele não for bem formado, o que será de seus alunos?”, indaga.

Nesta entrevista exclusiva, concedida ao Sindicato dos Professores de São Paulo* em 2007 e agora publicada pela Revista Giz, Nelly Novaes Coelho revela as maravilhas existentes – e às vezes muito bem disfarçadas – na literatura infantil brasileira. A especialista discute a atualidade dos livros para os pequenos e como as histórias ali contidas são em geral inteligentes e de qualidade. Ela também mostra como os grandes assuntos da humanidade se refletem na nossa literatura para crianças, além de comentar a importância das obras de Monteiro Lobato e de sua Emília, de Ruth Rocha e de seu Marcelo Marmelo, de Ziraldo e do Menino Maluquinho, e até mesmo de J. K. Rowlling, a autora da saga de Harry Potter, o bruxinho que é assumidamente adorado pela pesquisadora.

Entrevista com Nelly Novaes Coelho

Originalmente publicada em 2007*

A senhora está relançando o Dicionário de Literatura Infantil 25 anos depois da publicação da obra. Muita coisa mudou de lá para cá?

É, não só é uma edição atualizada, como também é a edição definitiva. Bem, o Dicionário já está no Brasil todo, desde 1960 percorro o país dando cursos de formação de professores e desde o lançamento da obra, em 1983, vejo que ela está nas escolas, bibliotecas e é tida como uma referência em literatura infantil. Nenhuma outra obra o superou. Engraçado é que só agora ele está nos meios de comunicação. Mas é que demora mesmo para esses livros se tornarem conhecidos.

O dicionário é um desdobramento do curso de Literatura Infantil que a senhora implantou na USP? 

Não foi assim uma sequência lógica, mas é que a gente vai percebendo o que falta nessa área, não é? Em 1980, eu já era professora titular do departamento de Letras da USP, já era doutora livre-docente e me dedicava à literatura portuguesa basicamente. Acontece que desde meados da década de 1970 eu comecei a notar a importância que alguns países davam à literatura para crianças. Estive em Los Angeles, na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos e lá participei de um congresso sobre literatura infantil. E lendo esses livros tratados no congresso comecei a me dar conta que a nossa literatura infantil não deixava absolutamente nada a desejar em relação à literatura estrangeira. De volta ao Brasil, e aí já envolvida com o Centro de Estudos da Literatura Infantil, chegou às minhas mãos um exemplar de O Reizinho Mandão, de Ruth Rocha. Ainda estávamos em plena ditadura, acho que o livro é de 1976, ou 1977, e ali estava uma verdadeira obra de contestação ao regime militar. E então eu entendi que os valores da nova literatura já haviam chegado à literatura infantil e o que era de difícil compreensão nos livros dos adultos agora tinha uma tradução fácil nas obras para crianças.

O que é exatamente essa nova literatura a que você se refere? 

É a literatura feita pela turma que emergiu no boom da literatura infantil. É a Ruth Rocha, o Ziraldo, a Eva Funary, a Lígia Bojunga. Grandes nomes até hoje que, naquele momento, final da década de 1970, souberam contar para crianças como era o rico mundo em que vivíamos. Eu percebia essa preocupação de retratar e refletir um novo mundo que estava surgindo na literatura para adultos. Mas ainda era muito difícil compreender tudo aquilo nos livros de gente grande. Aconteceu que, no Brasil, os assuntos que precisavam ser tratados, como a relação eu-mundo, como a questão das palavras e das identidades, da valorização do ser humano, do lugar do ser humano nesse mundo de caos de valores, esses assuntos começaram a despontar na literatura infantil também. Só que sem a dificuldade dos adultos. Tudo isso era tratado de forma lúdica, fácil, engraçada e, o melhor, com ilustrações fantásticas e textos breves.

Ou seja, nesse final de década de 1970, os problemas do mundo que até então só eram compartilhados por adultos passam a ser divididos com as crianças, com uma linguagem apropriada para elas, uma tradução, é isso? 

Exatamente. Veja, O Reizinho Mandão foi lançado praticamente junto com A grande fala do índio guarany, de Affonso Romano de Sant’anna, e com Planoplenário, de Mário Chamie. Os dois falavam da ditadura. E O Reizinho Mandão também. Ele zombava da ditadura, só que de uma maneira divertida, engraçada até. E quando se zomba de alguma coisa é porque ela já não é mais aquela potência toda. Então, com O Reizinho na mão entendi que a ditadura não ia demorar muito mais, pois já estavam zombando dela. E foi exatamente o que aconteceu. Em 1979 a Anistia suspende o AI-5 e a ditadura começa a ir embora.

Já estava tudo ali, não é? 

Os valores novos dessa nova literatura já estavam ali expostos. De uma maneira difícil de compreender nas obras para adultos e muito fácil nas obras para crianças. A literatura é uma espécie de arauto do que acontece no mundo. Ela explica tudo o que vai acontecer ou está acontecendo muito antes que se possa suspeitar. Esses livros que falei já estavam rindo da ditadura, prenunciando seu fim. Essa nova literatura teve acesso ao que chamo de novos valores, que são os valores do ser humano, a perda do sagrado, a perda dos centros e a ligação entre o eu e o outro. E esses valores se refletem também na literatura infantil brasileira.

Só naquele momento de boom, ali pelos anos 1970 e 1980, ou até hoje? 

Começa ali, mas vem até hoje, porque o mundo está numa fase de mudança de mentalidade. E, embora isso já apareça na literatura e nas artes, ainda não atingiu todo mundo. E acho que ainda vai demorar mais uns 50, ou 60 anos para atingir. E, enquanto todos não conhecerem esses novos valores, a literatura precisará ser exatamente como vem sendo. Para que as pessoas se toquem do seu papel no mundo. E é por isso que essa mesma literatura permanece até hoje, os autores e ilustradores que trouxeram esse novo para a literatura infantil permanecem fazendo sucesso, vendendo livros.

Essa nova mentalidade então, certamente, ainda não chegou às políticas e às filosofias da educação? 

Eu acompanho o currículo educacional, as discussões e as propostas em relação a ele desde os anos 1950. Nos anos de 1960 esse currículo chegou a seu estágio máximo de desenvolvimento. A partir daí, com a chegada da ditadura, a proposta era massificar o ensino e, para isso, a qualidade caiu. As matérias que ensinavam a pensar saíram dos currículos, porque era preciso massificar. Até concordo que é preciso massificar. Mas já se passaram quase 50 anos e está na hora de recuperar a qualidade. E quando implantamos o curso de Literatura Infantil da USP foi pensando nisso, em formar bons professores. A ideia era criar na Faculdade de Letras algum curso de formação de professores em Língua Portuguesa. Na USP, assim como em boa parte das Universidades, o curso de Letras é muito distante do curso de Educação. E a gente queria aproximar os dois, porque era preciso formar o professor.

A senhora tinha essa consciência de que estava brigando contra a deficiência do Currículo Educacional? 

Absoluta consciência. Eu estava em busca de uma qualidade perdida. Quando as matérias que ensinavam a pensar saíram do currículo, elas não só foram deixadas de lado, como passam até hoje por um descrédito. Por isso montamos um curso que unisse Língua Portuguesa e Literatura Infantil para formar o professor de crianças mesmo, para garantir a formação cultural do professor. Sem isso não tem salvação. Quando o professor aprende que pode ter esse lugar na vida de uma criança, esse lugar de ir facilitando a descoberta do eu e do mundo através dos textos e das ilustrações de um livro, ele dá um salto de importância.

A senhora falou em decodificar texto e figura… 

Sabe aquela brincadeira que pais e professores fazem com as crianças de ir perguntando: ‘que bicho é esse? É um gato. E esse? Um cachorro’? O adulto vai nomeando o mundo para a criança e nomear é fazer virar real, concreto. Lacan dizia que o que não é nomeado não existe. Então brincadeiras simples assim revelam o mundo para as crianças e essa criança vai se apropriando desse mundo. E também é essa brincadeira que vai introjetando os novos valores nos leitores. E hoje esse assunto é ainda mais sério, porque vivemos num mundo do espetáculo, de referenciais exteriores. Tudo puxa o sujeito para fora, para longe do eu dele. E ele acaba virando um alienado dominado pelas imagens que só consegue reproduzir padrões e perde a oportunidade de ser um criador.

E como é que a literatura interfere nesse processo e resgata o ser criador de cada pessoa? 

A literatura pode dinamizar o mundo interior de cada um. Lendo, a pessoa vai tomando contato com as palavras, com suas representações e com o mundo que está ali por trás de cada palavra. Também toma contato com a imaginação e a fantasia e, de repente, entregue a esse processo, a pessoa se conscientiza. Descobre um lugar para si no mundo e enxerga um caminho aberto a ser desbravado. É bonito ver isso na criança, mas é bonito também ver isso nos professores do Brasil todo que a gente encontra nos minicursos e congressos. A gente dá algumas chaves, um mapa mesmo, de compreensão e, de repente, o professor toma essa consciência, tem essa revelação. Por isso é que formação do professor é a base de tudo. Sem isso estamos perdidos.

Mudando bem de assunto, professora, também neste ano a coleção Vagalume, da editora Ática, está completando 25 anos. É ainda uma coleção de grande sucesso e referência para toda uma geração de leitores. Como a senhora vê isso? 

Ah! É mesmo uma coleção maravilhosa. Mais focada no público pré-adolescente, né? A grande sorte da coleção foi contar com grandes escritores. E travestidas de mistérios, enigmas e crimes, as histórias também trabalham uma visão de mundo bem interessante. Uma visão ligada à patota, à turma, à solidariedade, a reunir várias cabeças para resolver um único problema. Todo mundo se ajuda e se protege. E isso dura, tem uma vida longa, porque também os bons autores souberam tratar os temas de sempre, os problemas que sempre afligiram os adolescentes de uma maneira nova e motivadora. É a linguagem usada que permite isso.

Que permite essa permanência? 

É. Veja, Monteiro Lobato é um autor fantástico, mas sua obra envelheceu um pouco. Porque foi revolucionário nos anos 1920, mas para os dias de hoje já não é mais uma novidade. Ele foi genial e muito sábio quando colocou a irreverência, a crítica e os questionamentos numa boneca. Emília é a figura da liberdade. Se ele tivesse colocado essas qualidades numa menina, na Narizinho, por exemplo, a gente não ia gostar, a gente não ia se identificar.

Há cerca de três anos, entrevistamos a Dona Joyce, neta de Monteiro Lobato. E perguntamos se ela se identificava com Emília. Ela disse que não, que ela era a Narizinho, porque naquele tempo não era bom ser uma Emília. Era bom ter uma amiga como a Emília. 

Exatamente. No tempo de Monteiro Lobato as crianças eram diferentes, tinham um respeito e um temor enorme pelos adultos, pelos pais, professores e pelas instituições. Então não pegava bem ser irreverente como a Emília. O ideal era ser como a Narizinho. E aí mora a genialidade de Lobato, que coloca a ciência e o questionamento num boneco de sabugo, irreverência nos bichos, e todas essas fantasias que já conhecemos.

E hoje?
Hoje a criança é a Emília. O normal é ser como a boneca: falante, irreverente, revolucionária. Por isso, às vezes, as crianças não se encantam tanto mais com Monteiro Lobato. Alguns professores se queixam que as crianças não conseguem perceber o quanto Emília rompe barreiras e marca o início de uma literatura verdadeiramente brasileira para crianças.

E a essas crianças que não se encantam com o real, o mundo de hoje (já prenunciado por Lobato), o que se deve oferecer? O mágico? O fantástico? 

Ah, sim, às vezes o mágico encanta. Veja o Harry Potter. A autora J. K. Rowlling escreve muito bem e também as traduções têm sido muito felizes. E ela vem trabalhando, a partir de uma realidade supostamente normal, uma existência mágica, cheia de encantos. E nos seis livros que ela já publicou, vem trabalhando além dos arquétipos mitológicos tradicionais, como o guerreiro, o príncipe descoberto etc., vem tratando dos sete estágios da evolução do ser humano. Cada livro, uma etapa, segundo princípios filosóficos e esotéricos. Por isso estou muito curiosa para ver o sétimo e último volume, porque ela vai ter que resolver um impasse. Harry Potter, para continuar evoluindo, precisaria criar um terceiro olho, digamos assim, e virar sobre-humano. Mas ele é um menino de carne e osso, dos dias atuais, então não vai poder ter esse terceiro olho. Porque é um livro com algum grau de realidade. Então ele vai ter que morrer… Vamos ver o que vem por aí.

Mas então o que encanta no Harry Potter não é o fato de ele ser mágico, mas sim de ser humano. 

Na verdade é a condição de humano – igual a qualquer um de nós – mas que pode descobrir poderes muito fortes, além do que chamamos de humano. O que eu tenho visto encantar adultos e crianças é a possibilidade de descobrir a beleza e a maravilha de ser humano. E isso está na boa literatura realista, como a nossa aqui do Brasil, e na fantástica, como os contos de fada ou o Harry Potter. Mas para descobrir tem que ler, não tem jeito.

 *Entrevista concedida a Francisco Bicudo e Elisa Marconi publicada em 2007 no site www.sinprosp.org.br

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