Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.”
Os versos de Manoel de Barros talvez sejam uma boa maneira de contar que, aos 97 anos, muito frágil e quase inconsciente, faleceu um dos mais importantes poetas brasileiros, em 13 de novembro de 2014.
Nascido em Cuiabá, Mato Grosso, em 1916, ele começou a publicar poemas com 20 anos. Aos 70, recebeu do ilustre e reverenciado Carlos Drummond de Andrade um caloroso reconhecimento. Disse o mineiro de Itabira que Manoel era o maior poeta brasileiro vivo. Pouco depois, foi a vez do crítico literário Antonio Houaiss afirmar que “a poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Com declarações como essas dá para começar a entender a falta que o pantaneiro vai fazer no cenário literário do Brasil.
Mais conhecido do público por conta do Livro sobre Nada, lançado pela Editora Record em 1996, o poeta era, acima de tudo, alguém que brincava com as palavras e provocava a sintaxe. “São vários os fatores que levam Manoel de Barros a ser considerado um dos grandes do país, mas principalmente a maneira como ele compõe seus poemas, causando um desassossego no leitor”, começa a explicar a professora de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Marta Aparecida Garcia Gonçalves. “O trabalho dele com a linguagem arranca o leitor da perspectiva mais cartesiana do mundo, onde tudo tem seu lugar. A poesia de Barros é o oposto: desaloja, faz ver o mundo ao redor com outras perspectivas”, completa.
Versos como “Os morros se andorinham longemente… /Eu me horizonto./ Eu sou o horizonte dessas garças.”, de Caderno de Apontamentos, traduzem bem essa ideia que a professora da UFRN propõe. Já o professor de teoria da literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), João Carlos Prioste, lembra que Manoel de Barros gostava de dizer que “falava um idioleto manuelês arcaico e que sua tarefa era desenferrujar as palavras, errar a língua, dar um novo sentido”. “Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo”, escreveu ele em O apanhador de desperdícios, como que para comprovar o que Prioste sugere. “A produção toda de Barros leva o falante da língua habitual, automática e óbvia a rever o significado da palavra, não do mais óbvio que há nela, nas do encantado que mora ali”, completa o pesquisador. No entanto, Barros não é uma unanimidade entre os especialistas em literatura. O professor da UERJ conta que a manufatura da sua poesia é muitas vezes tida como a versão em poesia para a obra de João Guimarães Rosa, com quem se pode mesmo comparar, mas nunca reduzir a imitador.
E não é só a escrita de um mundo deslocado e nada óbvio que tira Manoel de Barros do lugar comum. “A obra que ele nos legou foi uma poesia mais atenta ao ínfimo, às delicadezas”, reforça Prioste. O poeta pantaneiro tinha um jeito de olhar para o mundo e traduzi-lo a partir das coisas mais miúdas, inúteis, asquerosas até. Barros trazia o lixo, o restolho, o anônimo, o desprezado e o desprezível para as suas obras. “Estas latas têm que perder, por primeiro, todos os ranços (e artifícios) da indústria que as produziu. Segundamente, elas têm que adoecer na terra. Adoecer de ferrugem e casca. Finalmente, só depois de trinta e quatro anos elas merecerão de ser chão. Esse desmanche em natureza é doloroso e necessário se elas quiserem fazer parte da sociedade dos vermes”, escreve o pantaneiro, em Latas.
Em verdade, esse recurso não é novo nem inédito na poesia, vista de forma universal, mas a maneira como Manoel de Barros o faz cria, de acordo com Marta, uma estética própria e peculiar. “Ele nos chama a atenção para o ínfimo, para as lesmas, os sapos e as pedras, o pequeno da natureza, que não está dentro da tradição do sublime. Nossa sensibilidade do olhar guiado por ele leva para o que não tem a grandeza”, propõe também Prioste. E, quase como um poeta do absurdo, Barros saca os chamados ‘inutensílios’, como os parafusos de veludo, que subvertem a lógica pragmática e consumista e apontam para o encantamento com o que não existe.
Poeta fora do eixo
Os lugares de nascimento e pertença do poeta morto, Cuiabá e o Pantanal mato-grossense, respectivamente, são ao mesmo tempo importantes e desimportantes na obra de Barros. O fato de não fazer parte do tradicional eixo Rio-São Paulo, ou a Minas Gerais, como seu admirador Drummond, chama atenção pelo inusitado. “Não é mesmo muito comum e a gente não espera que a mídia dê espaço para artistas do Centro-Oeste. É bom porque diversifica as origens da poesia brasileira”, afirma o professor da UERJ.
Por outro lado, Marta acredita que ter nascido no Pantanal não faz de Barros um poeta pantaneiro. “Claro que ele cantou o mundo a partir do seu quintal, mas a questão que ele traz não é o Pantanal. A poesia de Manoel de Barros podia ter sido escrita em Copacabana, do Nordeste, ou a partir de qualquer outra região. É o trabalho com a linguagem que coloca o poeta numa perspectiva universal. Não fosse isso, a poesia dele não transporia nenhuma fronteira”, defende.
Para Prioste, toda a noção de natureza miúda é de fato independente do Pantanal, que seria apenas o lugar onde o poeta teria experimentado certa epifania muito mais pelo prisma do estranhamento do que pela sensação do costume, do conforto. “O cenário no qual Manoel de Barros cria traz mais atenção para as coisas que não são do mundo urbano, a gente já falou da natureza, do ínfimo, mas também há um cuidado com o ser humano, com a essência da vida humana e isso está muito além do Pantanal”, diz o professor da UERJ.
O avesso do eixo também se mostra, de acordo com Prioste, na preferência do poeta pelas crianças, pelos lunáticos, vagabundos, errantes e anônimos, tudo aquilo que traz um discurso ao avesso da práxis utilitarista da sociedade industrializada. “A voz do poeta ecoa e clama por uma condição humana que foi asfixiada por esse ritmo da sociedade industrial e urbana em que o humano perdeu a essência”, reflete. Aqui, certamente, acreditam e concordam Marta e Prioste, viver no Pantanal colocou o poeta mais perto de uma vida menos acelerada e, portanto, mais dada a observações e a traduções. Para o leitor urbano pode soar quase como uma visão paradisíaca. Não por ser o Pantanal, mas por permitir a busca de Barros por um tempo perdido e por ressignificar as palavras e a língua, por se dar ao luxo de reinventar as reflexões mais óbvias, por contemplar o simples e o descartável, resgatando uma natureza fundamental ao homem e à vida.