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Cultura

Um homem atravessado pelo século 20

By 31/10/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Inaugurada em meados de outubro, a exposição Salvador Dalí chega a São Paulo depois de fazer um retumbante sucesso no Rio de Janeiro. Quase um milhão de visitantes enfrentaram filas para ver as telas do surrealista de longos e engraçados bigodes. Agora instalada no Instituto Tomie Othake, em Pinheiros, zona oeste da capital, até 11 de janeiro de 2015, a mostra apresenta cerca de 200 obras de todas as fases do pintor. A versão paulistana não traz sete pinturas, mas segue a mesma lógica do evento carioca, dividindo a produção Daliniana em três períodos: de 1920 a 1927, o início de tudo; de 1927 a 1940, a fase surrealista e mais conhecida; e, de 1940, com a saída do grupo do surrealismo, até o fim da vida do artista, em 1989.

A pesquisadora Carolina de Angelis, do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Othake, conta que mostra foi organizada de forma cronológica, para que visitante vá acompanhando a trajetória do catalão. “A ideia não é mostrar a evolução, porque esse conceito não se aplica nas artes, mas o caminho, as experimentações e como certos temas se repetem, em versões renovadas”, explica. Por isso mesmo, se o público achar que só vai encontrar telas com relógios escorrendo, corpos deformados ou monstros cheios de tentáculos, vai se surpreender. Todas essas obras de referência estão lá no Tomie Othake, certamente. Mas não é só isso. Carolina dá a dica: “Mantivemos a exposição em três fases e o público que não é estudioso da obra de Dalí vai ter muita tranquilidade para entender os temas recorrentes, as pesquisas dele, os documentos e fotos que marcaram sua carreira”.

Fases do pintor

Autorretrato cubista, 1923

Na primeira fase, que vai de 1920 a 1927, a exposição retrata o início da carreira do pintor, ali ainda um aprendiz. O que se nota, segundo a pesquisadora, já é um trabalho talentoso, mas com muita inspiração nas técnicas dos grandes mestres. Trocando em miúdos, “telas com influência óbvia do cubismo, por exemplo. E o encontro de Dalí com Picasso, em 1926, que foi um divisor de águas”. Nessa seção, o visitante vai ver retratos da família, nus, naturezas mortas e paisagens da cidade natal em tons terrosos e hiperrealistas, representando ali e nas outras fases a sensação de retorno ao lar.

A seção seguinte, que ocupa o meio da mostra, é a mais fácil de reconhecer a faceta mais popular de Salvador Dalí. É o período em que o artista está ao lado de André Breton e de mãos dadas com os surrealistas. Evidentemente, as telas com imagens oníricas, pouco prováveis, mas cheias de simbologias estão ali. Chaves, muletas, árvores sem folhas, corpos disformes, antropomorfização, barcos fantasmas estão devidamente expostos, traçando um panorama rico do universo surrealista do artista. No entanto, nessa segunda parte, há três obras muito diferentes do tradicional e esperado Dalí; “São quadros com pinturas abstratas, estilo que o espanhol não usava muito. São obras raras, a exposição do Rio de Janeiro não oferecia, só a de São Paulo. Uma delas, inclusive, tem o nome de Quatro mulheres de pescadores, um tema que se repete em outras configurações – mas nunca mais abstrato – na produção de Salvador Dalí”, comenta Carolina.

Entre as telas mais tradicionais, chamam a atenção do visitante aquelas que expõem uma paisagem mineral – com tons de areia e terrosos, áridos, ressequidos; figuras que vão se construindo – ou desconstruindo -; imagens duplicadas, perspectivas pouco usuais e ilusões óticas. “Tudo isso vai mostrando a formação do vocabulário e dos recursos com os quais Dalí trabalhava. As imagens brincam também com o olhar, ele é cheio de pegadinhas, que atraem a atenção e intrigam o espectador”, ensina a pesquisadora.

“Mantivemos a exposição em três fases e o público que não é estudioso da obra de Dalí vai ter muita tranquilidade para entender os temas recorrentes, as pesquisas dele, os documentos e fotos que marcaram sua carreira”.

E ainda nesta fase aparece o cinema. Parcela menos conhecida da produção, Dalí também flertou e contribuiu com a sétima arte. Fez, ao lado do cineasta espanhol Luis Buñuel, O cão andaluz, em 1928, e A idade do ouro, em 1930. A pesquisadora explica que há duas razões mais fortes para Dalí ter investido em filmes e roteiros. A primeira é que enquanto o artista cursava a Real Academia de Belas Artes, entre 1922 e 1928, ele morou na residência estudantil, onde também vivam Buñuel e Garcia Lorca, por exemplo. A companhia dos outros artistas foi fundamental para as experimentações surrealistas do espanhol, que passeou por múltiplas linguagens – de ilustração a cinema. E, como não podia deixar de ser mencionado, “Dalí era um homem de seu tempo, são muitos exemplos na sua obra. O final da década de 1920 e o início dos anos 1930 foi um período em que o cinema cresceu muito, ia se tornando mais e mais popular e cada vez mais usado como representação de ideologias, pensamentos, ideias de mundo”, defende.

A forte relação do artista com seu tempo, como bem disse Carolina, de fato aparece em outras manifestações dalinianas. É impossível olhar as telas do pintor espanhol e não lembrar da produção revolucionária de Sigmund Freud, pai da psicanálise e cunhador de conceitos como o inconsciente. Postas lado a lado, as obras de Dali traduzem, de alguma maneira, O livro dos sonhos, ou Três ensaios sobre sexualidade do austríaco Dr. Freud. Caso o visitante faça essa ponte, estará ratificando a ideia da curadora original da exposição, a espanhola Montse Aguer. Afinal, além das imagens oníricas, simbólicas, profundas, é também recorrente o tema da sexualidade e da libido. “Essa força aparece como motriz da vida e das realizações, nas pinturas de Dalí, mas ao mesmo tempo também se nota uma dificuldade de lidar com isso. Como proceder com essa força?”, provoca Carolina.

O espectro do Sex-Appeal, 1934

A terceira e última fase retratada na exposição Salvador Dali é aquela que traz a consagração do artista espanhol. Ele já não morava na Espanha há alguns anos e fizera de Paris sua casa, mas no final da década de 1930, com o acirramento da situação europeia e a proximidade da Segunda Guerra Mundial, Dali se mudou para os Estados Unidos e fez do novo porto um trampolim para o sucesso e a popularidade. Já naquela época, suas exposições ficavam lotadas, com longas filas nas portas. Dalí era um artista comentado pelo público médio, vendia telas, era conhecido no meio artístico e fora dele. Um fenômeno. A forte relação do artista com seu contexto histórico o leva a lançar mão de recursos e ferramentas que marcariam o século XX. Para começar, Dalí criou um personagem. “Os longos bigodes, os olhos esbugalhados e o apelido de Bufão não são à toa. Trata-se da construção de um personagem, o que tornava o reconhecimento dele pela população mais fácil e até divertido”, afirma a pesquisadora. Marketing pessoal? “Sim, marketing pessoal. Mas não era só estampa, tinha muito conteúdo e inteligência. Ele foi capa de muitas revistas e aproveitava para chamar atenção da população para a sua obra. Se preocupava em deixar uma marca”, define Carolina.

Além disso, a percepção do público a respeito de sua arte interessava muito a Dalí. Era um morador dos Estados Unidos, a terra por natureza da pesquisa de opinião e, portanto, da mudança de rumo a partir do olhar das pessoas comuns. A última prova da ligação entre o homem e seu tempo se dá na predileção de Dalí pelos temas científicos. Já mais velho, o espanhol trabalhou com teorias científicas, holografia, 3a e 4a dimensões, e fusão/fissão nuclear. As pesquisas acadêmicas cresciam exponencialmente no mundo e Dali estava encantado com a possibilidade de traduzir isso em imagens para seu público. Não será estranho, portanto, que o visitante saia da exposição Salvador Dalí com a sensação de ter vivido intensamente a história contemporânea da arte ocidental e, mais ainda, de ter atravessado o século XX com suas marcas mais pulsantes.

Quem quiser visitar a Exposição Salvador Dalí deve ir ao Instituto Tomie Ohtake, que fica na rua dos Coropés, 88, Pinheiros – Zona Oeste – até o dia 11 de janeiro de 2015, de terça a domingos, das 11h às 20h. Entrada gratuita, com distribuição de senhas (saiba mais aqui)

Crédito das imagens: Divulgação

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