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Cultura

Da cidade que temos à cidade que queremos

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

No último dia 26 de setembro, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, entregou à Câmara Municipal a proposta de Plano Diretor para a cidade – uma espécie de guia que estabelece regras e parâmetros para o desenvolvimento do município por um período de 10 anos. Quando se olha para a capital paulista, uma lei dessa natureza ganha caráter de relevância extrema, porque colocar ordem no crescimento e garantir o deslocamento civilizado nessa metrópole é uma tarefa hercúlea – além de urgentíssima.

De uma forma geral, com algumas ressalvas, os especialistas em políticas públicas e em urbanismo fazem um balanço positivo do documento, que agora aguarda discussões e aprovação pelos vereadores para ser sancionado pelo prefeito. “A proposta significa um passo adiante no sentido de planejar a cidade que queremos sobre novos paradigmas, como valorização dos cidadãos, das ruas, dos pedestres, com funções urbanas mais próximas e uma cidade mais compacta”, avalia o urbanista Valter Caldana, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie. Ele é também membro do Conselho Municipal de Políticas Públicas e participou das reuniões de formulação do Plano Diretor. O arquiteto Ricardo Correa, consultor de mobilidade urbana e que também acompanhou os encontros prévios, acrescenta: “O projeto é bom pelo que almeja, porque acolhe o que a sociedade deseja para os próximos 10 anos”.

Importa lembrar que o Plano Diretor não é uma lei que o Prefeito e seus assessores constroem sozinhos, trancados em seus gabinetes. É um projeto elaborado a muitas mãos, ouvindo várias vozes

No entanto, apesar dos avanços que estabelece, os dois entrevistados concordam que o Plano ainda é tímido.

Caldana aponta que faltam, por exemplo, regras mais precisas para acelerar as mudanças pretendidas. Para explicar quais seriam essas transformações almejadas, tanto o urbanista quanto Correa recorrem às manifestações que sacudiram o país em junho. “A pauta de fundo, ao menos durante a Copa das Confederações, para orgulho de qualquer urbanista, era diretamente ligada à vida na cidade: mobilidade, qualidade de vida, transporte público e etc…”, lembra o diretor da FAU/Mackenzie. E o consultor em mobilidade completa: “Os manifestantes pediam claramente uma vida melhor na cidade, isso aponta que a sociedade está pronta, ávida por mudanças. O Plano Diretor até contempla essa demanda, mas timidamente”, reforça.

E o que teria impedido o poder executivo de ser um pouco mais ousado nas propostas de transporte, ou de construção de novos imóveis? A dupla novamente responde em uníssono. Para eles, certamente a Prefeitura preferiu ir com calma para não causar desconforto na população e entre os grupos econômicos que, de alguma maneira, são protagonistas no processo da vida na cidade. “Acontece que a população dá muitas mostras de que quer a cidade para si e não para grupos de exploração. Basta ver o cicloativismo, as hortas urbanas, os pontos de cultura”, destaca Correa. “O poder público preferiu uma transição suave entre a cidade que temos e a que queremos. Mas a sociedade está pronta e esperando que não seja suave. Queremos uma cidade nova já”, propõe. A cidade a que o urbanista se refere é o modelo do século XXI, a cidade das ruas. As pessoas não vão mais morar trancafiados em suas casas, vão viver nas ruas, fora de casa, aproveitando o que a cidade tem e oferece.

Outros dois pontos que emperram o avanço para a São Paulo desejada são a cultura de um modelo antigo de desenvolvimento, que é “profundamente arraigada no paulistano médio, que acha que é assim mesmo, que é preciso gastar 4 horas por dia para ir e vir do trabalho todo dia, que a cidade se divide em centro e periferia, que pobre não tem vez”, alerta Caldana, e também a cultura econômica, que ainda não passou inteiramente do estágio extrativista para o do capitalismo avançado. Ou seja, a parcela dos grupos econômicos que entendeu que é preciso apostar em bairros integrados, com serviços, com fácil acesso aos corredores de transporte, construídos sem abalar o meio ambiente e sem piorar o trânsito, essa vai ter a adesão da sociedade e continuar fazendo dinheiro. A parcela que dizima a cidade no entorno das construções não será bem sucedida no futuro próximo. “Porque alguns valores já são reconhecidos pela população e isso pode ser transformado em produto. Bairros inteiros, parques, condomínios perto do metrô…”, completa.

Importa lembrar que o Plano Diretor não é uma lei que o Prefeito e seus assessores constroem sozinhos, trancados em seus gabinetes. É um projeto elaborado a muitas mãos, ouvindo várias vozes. A sociedade civil organizada – associações de moradores, de profissionais, corporações econômicas, etc – participa das reuniões e reivindica aquilo que acha mais relevante. É por isso que o Plano já sinaliza com essa mudança na concepção de cidade que Caldana e Correa apontam. No entanto, era visível a predominância de pessoas da classe A e B nesses encontros para proposição do documento. O consultor de mobilidade entende que o chamado processo de empoderamento da população, ou seja, a percepção de que é o cidadão quem faz a cidade, começou com as camadas mais altas mesmo, o que é uma pena, mas acredita que os sonhos de cidade das classes C e D também estão contemplados. É o urbanista quem explica: “As camadas mais baixas, C e D, estão ganhando aquilo que chamamos de consciência urbana – aquela percepção que os cidadãos de cidades bem avançadas têm – mais rapidamente que os habitantes das classes A e B, porque são os mais pobres que usufruem mais diretamente da cidade. Nas periferias, cada pracinha ou cada esquina vira um ponto de encontro da cultura. E isso faz diferença”.

Num exercício de futurologia, mas embasado na realidade, Caldana tenta antecipar para o leitor como será São Paulo caso o plano diretor entregue à Câmara Municipal seja aprovado na íntegra. “Certamente teremos viagens melhor organizadas e uma cidade mais adensada próximo aos corredores de transporte e, nos intervalos entre esses corredores, uma São Paulo mais bucólica, ou mais arquetípica, o que atende perfeitamente ao paulistano mais cosmopolita, que adoraria morar na Av. Paulista, ou daquele que aprecia a vida nos bairros e por isso se sente bem na Freguesia do Ó, por exemplo. Cabe ressaltar que essas duas cidades estão muito bem contempladas no plano a ser aprovado”.

“O poder público preferiu uma transição suave entre a cidade que temos e a que queremos. Mas a sociedade está pronta e esperando que não seja suave. Queremos uma cidade nova já”

A urbanista Raquel Rolnik, uma das principais autoridades no assunto, lança um olhar mais crítico sobre o projeto. Em texto publicado em seu blog, “Novo Plano Diretor de São Paulo – mudanças ou mais do mesmo?”, ela avalia que uma das propostas urbanísticas centrais do plano é adensar com moradias e usos mistos as áreas em volta dos corredores de transporte público de alta e média capacidade. E explica o conceito de adensar: “historicamente, tanto em São Paulo como em outras cidades brasileiras, falar em “adensamento” é permitir a verticalização, ou seja, a construção de edifícios”. A urbanista lembra que essa ação tem como referência a experiência de Curitiba, que de fato intensificou a densidade construtiva ao longo dos corredores de ônibus. “Mas hoje já sabemos que na capital paranaense muitos metros quadrados de área foram construídos nesses corredores, muitas vezes, porém, com apartamentos enormes e muitas vagas de garagem, atendendo uma população que simplesmente não usa o transporte público”, alerta.

Raquel reconhece que o conceito é de fato interessante, mas insiste que é preciso criar as resistências e mecanismos para que não se repita em São Paulo o que se passou na capital paranaense. “E isso está nos instrumentos, nos detalhes. É preciso, por exemplo, limitar drasticamente a construção de edifícios com vagas de garagem. O novo plano propõe que a construção de até uma vaga de garagem não seja computável na área construída, mas autoriza a construção de mais vagas mediante pagamento de outorga onerosa. A proposta avança em relação à situação atual, que obriga a construção de vagas em qualquer caso, sem computá-las na área construída; mas, na prática, mantém a possibilidade de construir apartamentos com muitas vagas de garagem”, escreve.

Para garantir avanços e evitar recuos, ela sugere que a proposta passe por novas rodadas de debates públicos, agora na Câmara Municipal, para escapar de pressões de agendas e interesses que chama de “misteriosos”, garantindo assim que o Plano Diretor paulistano represente efetivamente mudanças – e não mais do mesmo.

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