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Cultura

O homem Getúlio enfrenta a história

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

A conversa com o escritor Lira Neto aconteceu poucas horas depois de ele ter recebido em mãos os primeiros exemplares de Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo, o segundo volume da trilogia biográfica do ex-presidente. O autor ainda estava, nas próprias palavras, emocionado por poder folhear as páginas do livro. Embora – por conta de sua formação como editor – sempre se preocupe com as questões da forma – caracteres por folha, tamanho dos capítulos, número total de páginas –, manusear o objeto real é sempre uma grata surpresa para Lira. Dessa vez não foi diferente.

E foi tomado por essa satisfação de experimentar a textura do papel, calcular o peso da obra e aspirar o cheiro da tinta fresca e, finalmente, sentir a energia e o tempo dedicados em forma de objeto palpável, uma história ali contada, que o escritor conversou com a reportagem da Revista Giz. A entrevista longa, cheia de relações com outras obras, outros autores, outras histórias, revelou aspectos e nuances – sem estragar as surpresas – desse novo volume. A começar pelo desafio primeiro dessa nova etapa da biografia: “Enquanto, no volume anterior, eu precisava apresentar um Getúlio Vargas praticamente desconhecido, porque ainda não tinha galgado o poder, nessa segunda parte, o convite é outro. É narrar a história do ser humano Getúlio e como ele foi impactado e como também impactou os acontecimentos históricos de 1930 a 1945, período bastante conhecido da História Nacional”, conta o biógrafo.

Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo já está em pré-venda nas livrarias, mas antes que um exemplar chegue até você, recomendamos a leitura dos melhores trechos dessa conversa com o autor, Lira Neto.

Crédito da foto: Companhia das Letras

Crédito da foto: Companhia das Letras

Getúlio (1930-1945): Do governo provisório à ditadura do Estado Novo chegou às suas mãos há poucas horas. Mais uma etapa da missão cumprida?

Fui editor por muitos anos, então não consigo me distanciar do hábito de cuidar da forma também dos meus escritos. Fico preocupado com a questão dos caracteres por página, da quantidade de linhas, do tamanho que os capítulos estão ficando. Acompanho de perto a criação da capa, a escolha da foto e da letra que vai ser usada, enfim, continuo editor. Tenho alguma noção de como a peça vai ficar, mas mesmo assim, toda vez que um livro chega da gráfica, é um sentimento sublime. É uma sensação maravilhosa de ver um objeto real, físico, sólido, com 600 páginas, que é o resultado direto de muito esforço, de muito trabalho, de um trabalho incalculável. É muito bom. Essa minha preocupação com a forma é diretamente proporcional à minha postura quase obsessiva também com o conteúdo. Trabalho muito para que meu leitor tenha o melhor em termos de informação, de narrativa, de construção. Eu sou jornalista. Faço questão de dizer isso nas palestras e nas entrevistas, porque ser repórter é minha profissão de fé. É tanto o que sou que, para poder fazer direito, tive de me afastar das redações e parar de ter os dois grandes gargalos da maioria dos repórteres: o tempo e o espaço. Virei escritor, biógrafo, para continuar sendo repórter. E disse isso porque, para mim, um jornalista só existe de fato se ele tem cumplicidade com o leitor. A informação não é para mim. É para o leitor. Se não chega ao outro lado, se não faz diferença na outra ponta, meu trabalho não se concluiu, não se cumpriu. É então meu dever de jornalista me preocupar com a comunicação. Um escritor ficcionista pode não ter muito essa preocupação. O embate dele é com o universo interior. Mas meu trabalho é de repórter, então posso dizer que tive o luxo de cumprir uma pauta por dois ou cinco anos e sem limite de espaço para escrever minha reportagem. E sem as pressões que os órgãos de imprensa impõem aos meus colegas jornalistas. Pressões de toda ordem. Econômica, financeira, política e, principalmente daquela ideia de que os leitores não querem ler.

Vamos provocar: os leitores querem ler?

A melhor resposta para isso é o primeiro volume de Getúlio ter ficado por várias semanas como uma das obras não ficcionais mais vendidas do país. E são 600 páginas. De texto. E não estava sozinho. Muitas outras biografias e ensaios também figuram ali. O mercado editorial brasileiro, falando aqui de não-ficção, não vai mal. Vende bem. E se você olhar até para a ficção também são vendidos muitos livros. Os jovens leem aquelas séries enormes, com muitos volumes, muitas páginas, sem figuras. Quem inventou que as pessoas não leem também culpa os meios eletrônicos, a internet e as mídias sociais. Mas se você fizer um cruzamento rápido vai perceber que as pessoas que usam furiosamente as redes sociais são exatamente as mesmas que compram livros. E a que atribuo esse comportamento, no mínimo, curioso, para não dizer contraditório? Ao fato de as pessoas buscarem nos livros justamente o que não encontram nos jornais.

O prazer de ler uma história bem contada?

Exatamente! Os livros de História, talvez mais até os livros de História escritos por jornalistas, sempre figuram entre os best-sellers, ficam meses nas listas dos mais vendidos. E com certeza não tem o formato de 140 caracteres, ou de boletim de ocorrência que os jornais pregam. O leitor quer mais e está sendo menosprezado pela imprensa.

E então, quando esses jornalistas escrevem sobre personagens ou fatos históricos…

Ocupam um espaço que os jornais e revistas poderiam ocupar. O texto jornalístico é acessível, pode ser muito prazeroso pelo entendimento que proporciona. Mas mais do que isso. Tenho um palpite que os jornalistas que se atrevem no mundo da literatura não têm a marca dos escritores de literatura da contemporaneidade.

Vargas era imperfeito, não era imaculado e inatingível, como a propaganda difundiu

O objetivo e a causa são outros?

Ah sim, porque a literatura contemporânea tem como principal objeto a própria literatura, o embate com a palavra. A busca pela palavra certa – que parece com a do jornalista –, mas a guerra pelo efeito estético não codificável numa primeira leitura. A literatura de ficção do final do século 19 e do século 20 inteiro é metalinguística, centrada nela mesma, nessa luta que falei do autor com a palavra. E todo esse movimento criou certo hermetismo e, mais, deixou o leitor um pouco órfão das grandes narrativas. Não é uma crítica isso, é uma constatação, é um palpite. Os jornalistas não buscam essa luta com a palavra. Procuram a narrativa, a contação de histórias, que Moacyr Scliar diz que está no DNA da humanidade. E aí, na falta de grandes narrativas feitas por literatos, os jornalistas ocupam esse vácuo.

Vamos falar do seu Getúlio… Quem é o Getúlio Vargas que sai do seu segundo volume? O desafio do primeiro era apresentar um homem relativamente desconhecido, um sujeito político ainda em formação, porque ainda não tinha chegado ao ápice do poder. Mas nesse agora, é o Getúlio mais publicizado, o ditador. Qual foi a toada dessa segunda parte?

Lá no final do livro, assim como fiz com o primeiro volume, coloquei uma seção chamada “Este livro”, contando como a obra foi feita. No primeiro volume contei como foi o trabalho quase arqueológico de contar um Getúlio bem desconhecido. Por isso mesmo foi um livro com algumas revelações, com a comprovação de algumas histórias que antes eram só indícios, tradição oral.  E também naquele trabalhei muito com documentos e com a imprensa, mas foi a reunião de informações bem rarefeitas. Nesse segundo foi o oposto. Trata-se de um período da História do país fartamente documentado, analisado, referenciado. Episódios como a Revolução Constitucionalista (ou contrarrevolução) de 1932, a Intentona (ou Movimento Revolucionário) de 1935, a Polaca em 1937, a entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial e tudo mais são assuntos cobertos por uma literatura sólida. Então não tive intenção de recontar ou modificar essa história. Como biógrafo, o que fiz foi contar como esses episódios impactaram a vida do homem Getúlio Vargas e como o homem Getúlio Vargas impactou esses momentos históricos. Como ele se comportou, como reagiu.

E como ele se comportava? A imagem que nos chega é a de um homem frio, duro, que não se abalava facilmente. Confere?

De fato, foi a imagem que ficou. Mas o que as cartas e escritos pessoais revelam é que era um homem que hesitava, que se desesperava e era até deprimido. Algumas reportagens sobre o livro, aliás, mostram duas linhas que fazem bastante sentido. O Correio Braziliense trabalhou mais a questão da solidão do poder. E de fato era um homem que precisava tomar determinadas decisões e se via muito sozinho para fazê-lo. Outra reportagem, da revista IstoÉ, fala de um ditador deprimido. E é isso mesmo. Ele era bastante fatalista. Há três momentos, por exemplo, em que deixa bilhetes suicidas. Em 10 de julho de 1932, no dia seguinte do auge da revolução paulista, ele escreve uma carta afirmando que se não pudesse morrer como soldado, que preferia morrer. Depois, em 1942, num escrito pessoal, coloca que tinha tomado uma determinada decisão e que, caso ela desse errado, não conseguiria sobreviver com isso. E mais adiante um pouco, em 1945, faz uma carta extremamente parecida com a carta-testamento, quer tenha sido ele ou o assessor a escrever, as palavras são muito próximas. E isso aconteceu poucos meses antes de ele ser derrubado.

Então a ideia não era fazer nenhuma revelação bombástica.

Não. No primeiro também não era, embora algumas novidades tenham aparecido. A motivação era mesmo aprofundar o entendimento sobre Vargas. Agora, aquela imagem maquiavélica que ficou posteriormente para a História não foi à toa. Foi uma construção. Ele era uma pessoa cheia de fragilidades. Era um ser humano complexo.

Podemos dizer que biografia humaniza o ex-presidente? E, se sim, o que significa isso para o ditador que comandou o Estado Novo?

Então. Esse e um erro comum que as pessoas cometem. Quando a gente fala humanizar, não significa dizer que estamos dando uma lapidada, minimizando as atitudes que o personagem tomou. Não é isso. Humanizar é apresentar o biografado como um ser humano, com fragilidades, impulsos, complexidades e etc, como qualquer ser humano. No caso do Getúlio, é tirá-lo do pedestal construído com ajuda do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP. Vargas era imperfeito, não era imaculado e inatingível, como a propaganda difundiu. E vamos falar claramente, ele foi o líder do Estado Novo, que foi um dos regimes mais tenebrosos que esse país passou. Prendeu, matou, torturou. E se Vargas não fez isso diretamente, ao menos deixou fazer. Sabia e se omitiu. Não tentei minimizar. Falei das cartas que amigos importantes mandaram advertindo o presidente. E ele nada fez. Osvaldo Aranha escreve textualmente que no Brasil as pessoas estavam sendo presas, torturadas e mortas sem razão aparente. Vargas diz que vai apurar e envia para Filinto Müller, que comandava a tortura no Estado Novo.

Quem inventou que as pessoas não leem também culpa os meios eletrônicos, a internet e as mídias sociais. Mas se você fizer um cruzamento rápido vai perceber que as pessoas que usam furiosamente as redes sociais são exatamente as mesmas que compram livros.

Mostrar a face humana não é absolver. Mas é uma figura contraditória. Pega o país numa economia pré-agrária, em 1930, e devolve numa etapa pré-industrialização, em 1940. A legislação trabalhista foi, inegavelmente, um avanço. A primeira lei, de 1931, é assinada quando a escravidão só havia sido abolida há cerca de 40 anos. Isso, historicamente, é nada. E, veja, essa legislação não foi uma concessão, como tentam fazer a gente acreditar. O anarco-sindicalismo estava nas ruas, pressionando. Aliás, esses 15 anos foram extremamente movimentados, com gente na rua o tempo todo, pressionando, protestando, fazendo greve.

Vargas se aproveita disso, de toda essa movimentação política.

Exatamente. Ele teve a sensibilidade de trazer para si essa movimentação e cooptar o movimento. Mas é inegável que foi a primeira experiência de mediação entre capital e trabalho. E nasce assim o sindicalismo atrelado ao Estado. Por isso é que meu cuidado é não satanizar, nem exaltar, mas sim compreender o ser humano ali entre esses acontecimentos todos.

E apoiado em que você conseguiu driblar a imagem construída pelo DIP?

Usei Getúlio Vargas por Getúlio Vargas. Ou seja, cartas, escritos pessoais e documentos pessoais. Foi o antídoto. É o Vargas narrado por ele mesmo. E o que percebi e conto lá é que ele era uma pessoa reticente, hesitante e se questionava bastante sobre tudo, mergulhava em si mesmo.

Mas ele fez o diário para ele mesmo? Porque acabou se tornando um documento histórico…

Pois é… essa é uma grande questão para os biógrafos. Todo texto, mesmo que seja íntimo e pessoal, tem um público desejado. Mesmo que seja você mesmo. Todo diário e toda carta, então, tem essa mesma intenção, alguma intenção de comunicar. E como biógrafo atento, tive que me ater nessa reflexão também. Em outros livros que fiz também notei que mesmo nos diários mais íntimos, acontecem falsificações. Conscientes ou não. E acho que essas falsificações também são uma parte bem rica da história, porque é aquilo que escapa, que as barreiras não seguram. Mas, enfim, tudo é construção.

Você se apaixonou pelo personagem?

Não. Mas é comum que o biógrafo tenha extrema proximidade com seu biografado. O que não significa ser indulgente, ou fazer o trabalho com menos rigor. Como eu fujo disso? Não é uma receita, mas procuro manter o senso crítico ininterruptamente. Posso até me afeiçoar, mas não chega a atrapalhar meu trabalho. No caso dessa biografia do Getúlio, o que me encanta mais é justamente a contradição, o sujeito deliciosamente dialético que ele foi.

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