Por Francisco Bicudo, de Paraty
O escritor e ensaísta Francisco Bosco pediu que desenhássemos no ar um diagrama, com uma reta dividindo o plano imaginário em duas metades. Na porção direita (aqui, sem qualquer conotação ideológica) encontraríamos o lugar da cultura – os hábitos, tradições e representações que vivemos, a partir dos quais nos reconhecemos e que nos ajudam a reforçar identidades. À esquerda, a oposição, o campo que ele chamou de destruição absoluta, uma espécie de contracultura, aquilo que se choca diametralmente com todos os nossos valores e convicções e que de alguma maneira duvida daquilo que somos.
Para o autor, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a sensação de prazer que a leitura nos proporciona pode ser explicada pelo lado direito do desenho, pois é uma percepção que mantém relações de proximidade com a cultura. Já o gozo que sentimos pelos textos explode por conta da outra metade nasce dos ruídos, estranhamentos e confrontos estabelecidos com a cultura. “Os livros de (Honoré de) Balzac, por exemplo, nos dão prazer, porque reafirmam a nossa identidade e nos confortam. Revelam o mundo tal qual o conhecemos. Já ‘Ulisses’, de James Joyce, é claramente uma obra que nos faz transbordar de gozo, porque nos tira da zona de conforto, em função da desconstrução de linguagens, do tempo, das estratégias narrativas distantes dos modos tradicionais de contar histórias”, ilustrou.
Foram esses dois conceitos originalmente desenvolvidos pelo escritor e crítico literário francês Roland Barthes (1915-1980) que inspiraram e ditaram o norte do debate travado na mesa “O prazer do texto”, que aconteceu no início desta tarde ensolarada de sexta-feira na FLIP.
Ao olhar para o próprio ofício e abordar a outra face do mesmo processo – o prazer de escrever -, Bosco afirmou que essa sensação é resultado do potencial que o escritor manifesta de conseguir passar para os seus leitores aquilo que ele (autor) não é. “A literatura faz com que a gente saia do campo do ‘eu’, implodindo a relação de impessoalidade que carregamos. Escrevemos para acionar esse transporte para a impessoalidade”, insistiu.
Candidatíssima a conquistar o posto de xodó da FLIP 2013, esbanjando didatismo e simpatia, falando em Português quase perfeito (com o charme do sotaque francês) e até arriscando cantar alguns versos de ‘Trem das Onze’, a escritora Lila Azam Zanganeh (francesa, filha de iranianos) embarcou na exposição inicial de Bosco e lembrou que Vladimir Nabokov (1889-1977) costumava dizer que lemos para nos encantar com o mundo.
Autora de “O encantador – Nabokov e a felicidade”, lançado recentemente no Brasil e onde desenvolve ensaio de fôlego sobre a obra do clássico russo, Lila revelou que decidiu escrever o livro justamente porque sentia falta de transgressão na Literatura contemporânea. “Há muitos autores atualmente nos Estados Unidos e na Europa que falam de origens, de identidades. Respeito, mas não são assuntos que me interessam. Pode parecer estranho, mas ‘Lolita’ (1955) é o mais importante romance de amor do século XX, exatamente porque lida com os dois grandes tabus do nosso tempo, a pedofilia e o incesto. É dessa forma que promove o jogo do êxtase, que é algo bem próximo daquilo que o Bosco chama de gozo”, analisou. Ela lembrou ainda que Nabokov admirava sobremaneira os contos de fadas, que considerava a literatura verdadeira, pontes mágicas para a criação de universos originais. “Ler nos faz imaginar o mundo”, completou.
Ela admitiu que “O encantador” sistematiza algumas verdades – mas é ao mesmo tempo permeado por muitas invenções e mentiras, desafiando o leitor a todo instante a exercitar esse território da imaginação. O ponto alto da narrativa é o capítulo em que Lila “entrevista” Nabokov (detalhe: ela tinha apenas dez meses quando o escritor russo morreu, muito embora alguns jornalistas já tenham perguntado para ela, em tom sério, como teria sido a experiência…). “Sonhei várias vezes com Nabokov, era uma obsessão literária. Nos sonhos, ele nunca era perfeito, tinha várias ideias atrasadas e erradas, não gostava de escritoras mulheres. Chegou uma hora em que não queria mais apenas sonhar, mas falar com ele”.
Materializou-se assim a suposta e idealizada conversa, de forma crítica e irreverente. “Construir aquele diálogo me fez sentir imenso prazer. Era a voz dele na minha voz, ele, eu, ele novamente, alternando falas, num jogo de espelhos infinito”, contou. A tensão veio à tona quando ela teve de ler o trecho, em voz alta, para o filho adoentado de Nabokov. Ele não gostou. Ficou bravo. Questionou cada resposta, afirmando que muitas não representavam o que o pai pensava. “Mas ele acabou me ajudando. E fomos procurar juntos o que significava aquela felicidade proporcionada pela escrita”.
Como bem lembrou o mediador Cassiano Elek Machado logo no início da conversa, o advento das novas tecnologias e plataformas fez com que o cuidado com as narrativas fosse relegado a quinto plano. “Mas haverá um tempo em que daremos conta da importância do tema, que voltará a ser valorizado”. Concordo. Afinal, não há existência humana civilizada sem o contato muito estreito – marcado por prazer ou por gozo – com uma boa e bem contada história.