Skip to main content
Cultura

Os ossos do senhor imperador

By 15/04/2013No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Trata-se de um mix de suspense, investigação policial e romance histórico. Nessa trama, segredos do passado acabam sendo revelados, cadáveres são revistados e a sagacidade dos investigadores ativa o grande ponto de virada. Poderia até ser a sinopse de um filme, mas essa descrição empolgante se refere na verdade a uma pesquisa tão inusitada quanto significativa, coordenada pela historiadora e arqueóloga Valdirene Ambiel, durante o mestrado dela.

Durante três anos – 2010 a 2012 -, a pesquisadora decidiu analisar com mais propriedade científica os restos mortais de Dom Pedro I, de Dona Leopoldina, primeira esposa do imperador, e de Dona Amélia, segunda mulher do monarca. Todos eles estavam abrigados no Museu do Ipiranga, zona sul da capital paulista, no mesmo Parque da Independência em que Valdirene passou a infância. A ideia era investigar detalhes das ossadas e, assim, apresentar com grau ampliado de exatidão aos brasileiros quem foram seus mandatários e, ainda, descobrir se certas afirmações presentes em livros de História tinham ou não sustentação. Há quem defenda, por exemplo, que Dona Leopoldina teria rolado escadaria e fraturado o fêmur depois de uma briga conjugal e de ter sido chutada pelo marido, o que teria inclusive provocado a morte dela.

Crescer ao lado dos imperadores do Brasil – ou do que havia restado deles (ainda que bem escondido sob as campas de mármore) – foi a primeira razão para Valdirene desejar pesquisá-los no mestrado cursado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).

Cabe lembrar que os imperadores chegaram na calada da noite, numa operação sigilosa, para não causar grande rebuliço na cidade e no Hospital da Clínicas de São Paulo. Aliás, os ilustres objetos de pesquisa foram fichados, como se dá com qualquer paciente plebeu que dá entrada no maior complexo hospitalar do estado de São Paulo.

No entanto, a autora já tinha certa proximidade com a primeira imperatriz, objeto da monografia de conclusão do curso de História, concluído em 2008, no Centro Universitário Assunção (UNIFAI).

Dom Pedro I, Dona Leopoldina (à esquerda) e Dona Amélia (à direita)

Entre uma pesquisa e outra, ela dedicou-se a investigações forenses, nos mesmos moldes daquelas que seriam realizadas para o mestrado, mas, naquele período, aplicadas a estudos desenvolvidos pelo Museu e até por empresas privadas, no Nordeste. Coube ao professor Astolfo Gomes de Mello Araújo orientar a historiadora. E foi assim que, em 2010, admirando Dona Leopoldina e agora especialista em arqueologia forense, Valdirene começou a aventura de conseguir as autorizações de todas as autoridades que cuidam dos despojos da família real.

“O primeiro susto foi do orientador, que já entrou na história substituindo a orientadora original, que se afastou por questões de saúde. Ele achou uma maluquice, mas me deixou tocar em frente”, conta a pesquisadora. E continua: “Depois, por uma questão ética, pedi a primeira autorização para os descendentes, que não se opuseram de maneira nenhuma, pelo contrário”.

A monografia de conclusão de curso novamente ajudou nesta primeira etapa, já que Valdirene já tinha travado de alguma forma contato com os netos da imperatriz. Na sequência, a Prefeitura de São Paulo, representada pelo Departamento do Patrimônio Histórico, que cuida do prédio onde estavam as urnas, deu o aval. Por fim, restava o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional, Iphan. Aqui entram algumas cenas de comédia, leitor. A pesquisadora ri ao lembrar que precisou repetir a história sem precedentes de sua pesquisa a cada um dos órgãos responsáveis. “Para todos tive de contar tudo de novo, desde o começo. Em todos os relatos, houve algum grau de espanto. Mas, por sorte, conseguimos convencer todos eles e, apesar das desconfianças que provocamos, fomos adiante”, brinca.

O exame de nome difícil consiste em separar e analisar cada fase de uma mistura qualquer. Nesse caso, saber as substâncias contidas naquela atmosfera lacrada das campas imperiais era imprescindível para confirmar se a urna poderia ser aberta ou não pelos cientistas da equipe e, se sim, quais os riscos que eles corriam. Por sorte, o resultado da análise foi tranquilizador, e os pesquisadores puderam finalmente conhecer pessoalmente Dom Pedro I, Dona Leopoldina e Dona Amélia.Para conseguir as derradeiras respostas positivas para tocar a investigação, ela precisou também oferecer algumas garantias aos gestores desse patrimônio, relacionadas ao compromisso de devolver, em condições adequadas, as ossadas e os objetos que seriam analisadas. Mas repare também leitor, que as garantias estavam ligadas à saúde dos pesquisadores envolvidos. “Não sabíamos bem o que podia ter ali dentro das urnas. Vírus, gases, substâncias que fazem mal. Por isso foi fundamental o trabalho de cromatografia gasosa, feito pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, o Ipen”, conta.

Ouvidos atentos podem começar a captar uma trilha de suspense, com acordes agudos, tensos, enquanto a equipe de Valdirene começa a destravar as tampas das urnas funerárias. Cabe lembrar que os imperadores chegaram na calada da noite, numa operação sigilosa, para não causar grande rebuliço na cidade e no Hospital da Clínicas de São Paulo. Aliás, os ilustres objetos de pesquisa foram fichados, como se dá com qualquer paciente plebeu que dá entrada no maior complexo hospitalar do estado de São Paulo. “Não precisa dizer que não dormi na noite anterior da chegada de cada um dos corpos. Imagine que eles eram personagens históricos, que moravam nas páginas dos livros e no Parque da Independência, e, naquele momento, passaram a ser pessoas de verdade – de carne e osso – sob nossos olhos. Muito emocionante. Incrível”, revela a atriz principal.

A primeira a ser analisada foi Leopoldina, mais íntima de Valdirene, como já foi explicado. Na sequência foi Pedro e, por fim, Amélia. A partir da abertura das tampas, a equipe dedicou um mês e meio para cada um, até chegar às conclusões apresentadas. O detalhe aqui é que com Dona Amélia foi necessário menos tempo, porque o trabalho de preservação feito em seu corpo foi tão meticuloso e tão bem executado que várias etapas que tiveram de ser executadas com o primeiro casal puderam ser puladas no caso da última.

O exame detalhado, apoiado nas técnicas da arqueologia forense, confirmaram algumas informações e revelaram algumas surpresas. A pesquisadora começa apontando a presença de corpos mesmo e não cinzas nas urnas. “Havia essa especulação. Quando os primeiros corpos chegaram ao Parque da Independência, em 1972, diziam que só havia pó e cinza ali. Eu duvidava, porque as esquifes eram grandes e pesadas demais para não conter ossos. Aliás também havia quem dissesse que os caixões estariam vazios até”. Valdirene também relata que esperavam encontrar os trajes elegantes, as condecorações e até joias. “Parte disso apareceu mesmo”, explica.

“Não sabíamos bem o que podia ter ali dentro das urnas. Vírus, gases, substâncias que fazem mal.”

Dom Pedro, por exemplo, foi enterrado com farda militar, mas sem as honrarias brasileiras, apenas aquelas lusitanas. “Talvez os portugueses tivessem certos impedimentos com o Brasil, talvez fosse uma espécie de provocação mesmo”. Dona Leopoldina, embora estivesse vestida como para uma cerimônia do Oscar, foi enfeitada com bijuterias, uma falha para os especialistas em red carpets hollywoodianos , mas perfeitamente explicável dada à situação de penúria econômica que a família real enfrentava no momento do falecimento da rainha. “Já Dona Amélia chamou a atenção pelo estado de conservação. Ela foi mumificada e muito bem cuidada pelos patrícios antes de chegar aqui, em 1982. A gente não esperava”, revela a arqueóloga. No entanto, para a História do Brasil, para o chamado avanço do conhecimento, a autora defende que a maior descoberta foi a verdadeira causa da morte de Leopoldina.

Como já foi dito, uma corrente histórica dizia que ela havia sofrido uma queda depois de tomar uma surra de Dom Pedro e essa teria sido a razão do falecimento. Na realidade, os exames realizados pela equipe da Universidade de São Paulo mostraram uma morte bem menos aproximada com filmes violentos. “Ela morreu de infecção. Os médicos, inclusive um ginecologista obstetra que me ajudou no diagnóstico, mostraram marcas claras de infecção avançada e não curada”, conta Valdirene. Cabe lembrar que naquele tempo ainda não havia a penicilina. Os pesquisadores não se arriscam a afirmar que nunca tenha havido violência contra a imperatriz por parte de seu marido, mas a investigação provou que ela não teve fraturas e que o famoso pontapé fatal – ao estilo de Bruce Lee – não aconteceu.

Como senha para que subam os letreiros e se acendam as luzes, a arqueóloga levanta aquelas que considera as duas contribuições mais relevantes de seu trabalho. O primeiro é a possibilidade de recontar passagens da história do Brasil a partir de provas fortes, difíceis de contestar e, assim, desmentir boatos e abrir novas avenidas de investigação. A segunda é a conquista de uma expertise de trabalho coletivo. “A equipe era multidisciplinar e é muito mais seguro e rico chegar a conclusões dessa maneira. Como historiadora, não posso diagnosticar uma infecção no esqueleto. Mas quando a gente trabalha junto, os resultados são mais reveladores”, conclui.

Comentários