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Cultura

Literatura não só infantil

By 04/04/2013No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Uma blitz hipotética realizada em estantes de livros de crianças brasileiras e de miúdos portugueses provavelmente encontraria nas prateleiras duas obras clássicas do universo infantil: O reizinho mandão, aqui, e Dinossauro excelentíssimo, lá. O primeiro foi lançado em 1978, por Ruth Rocha, autora adorada pelos pequenos. O segundo é de autoria do lusitano José Cardoso Pires – que em geral produziu mais para adultos – e foi publicado em 1972. Além de figurarem entre os preferidos dos meninos e meninas e de terem sido escritos em língua portuguesa, os dois títulos guardam outras semelhanças. E uma das mais estreitas – a liberdade, ou a falta dela – foi tema da dissertação de mestrado da professora de Literatura Juliana Camargo Mariano, da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

“Questões profundas ligadas ao autoritarismo e a governantes pouco democráticos são a alma dessas duas obras que, embora sejam endereçadas para crianças, falam também com adultos”, conta a autora da dissertação Um cotejo literário entre Ruth Rocha e José Cardoso Pires e os regimes autoritários no século XX, defendida em 2009 e orientada pela professora Maria Lúcia Pimentel de Sampaio Góes. Para ela, lidar com temas tão complexos não foi uma escolha gratuita ou aleatória dos dois autores infantis. Na década de 1970, o Brasil vivia os anos de chumbo da ditadura civil-militar e era governado, na época do lançamento do Reizinho, pelo general João Baptista Figueiredo. Eram os tempos derradeiros do regime, é verdade, mas a democracia ainda levaria quase outros dez anos para ser restaurada de fato.

Em Portugal, o cenário político não era diferente: Marcelo Caettano, o presidente-tirano, havia substituído o ditador António Salazar (1889-1970), que morrera anos antes. O regime também era de exceção, havia censura, prisões arbitrárias e torturas e assassinatos patrocinados pelo Estado.

Em situações assim, falar de democracia, de direitos humanos e de liberdade pode ser uma tarefa considerada subversiva e bastante perigosa para os escritores. No entanto, para muitos deles, calar-se diante de tamanha violência pode ser mais dolorido do que enfrentar o arbítrio. “Os dois escritores não tinham planos de fazer literatura infantil. Foram levados a isso por força das circunstâncias. E, frente ao que acontecia em seus países, preferiram falar de liberdade”, explica a pesquisadora. Mas para crianças? Juliana concorda que pode parecer curioso abordar problemas tão profundos com meninos e miúdos; no entanto, afirma, “os dois tiveram a mesma sacada, que foi tratar de forma lúdica e adaptada à realidade das crianças tópicos como autoridade, autoritarismo e liberdade de expressão”. São, portanto, livros com histórias divertidas, ilustrações, narrativas próprias para crianças; no entanto, o adulto que ler certamente vai enxergar além e refletir sobre a situação política e social de seu país.

Duas obras subversivas

Para quem não conhece, Dinossauro excelentíssimo conta a história de um garotinho muito pobre que foge de sua cidade natal para estudar. Ele estuda muito, vira advogado depois de grande e toma o poder num lugar fictício chamado Reino do Mexilhão. Governa com tanto autoritarismo, que acaba provocando uma metamorfose no seu corpo e virando um dinossauro. A autora da dissertação aponta que essa trajetória se parece muito com a do próprio Salazar, que tinha uma origem humilde, formou-se em Direito e exerceu o poder com mão de ferro. Até mesmo o fim da narrativa é muito semelhante com o que aconteceu de fato. O ditador português teve um acidente vascular cerebral, em 1968, e morreu após dois anos, embora ainda pertencesse ao conselho que geria o país. Algo muito próximo se dá nas páginas escritas por Cardoso Pires.

Já em O reizinho mandão – que faz parte da chamada Tetralogia de Reis, junto com O rei que não sabia de nada (1980), O que os olhos não vêem (1981), e Sapo vira rei vira sapo (1982) – traz a história de um garotinho rico que chega ao poder depois da morte do pai. Sem experiência e sem maturidade, o reizinho vai criando leis absurdas que acabam transformando o país num lugar triste e sem vida. A sorte é que o monarca percebe a tempo que as pessoas estão caladas demais, se arrepende e vai buscar a solução com um mago. Finalmente, ao ouvir de uma criança de outra terra que ‘cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu’, o reizinho entende que ele era a causa de tanta tristeza e volta para o reino para restaurar a liberdade e a felicidade.

Juliana defende que, quando as crianças leem as obras, associam o que é contado ali com situações próximas das vidas cotidianas delas, na relação com os pais, com os professores, com os colegas. “As disputas nos jogos, nas brincadeiras, a dificuldade de cumprir combinados e até a frustração quando as coisas não saem como a criança quer que seja. Tudo isso é muito vivo no cotidiano dos pequenos”. Contudo, se é um adulto quem folheia as páginas, faz outras associações.

A pergunta que se deve fazer aqui é: como duas obras que abrigam temas subversivos puderam chegar às mãos dos adultos em lugares que viviam sob ditaduras e praticavam censura à literatura? “A censura não confiscou as obras, porque julgava a literatura infantil como uma arte menor e, por isso mesmo, inofensiva. Assim, tratados sobre não-autoritarismo e democracia passaram batido aos olhos dos censores e não foram proibidos”, comemora e explica a pesquisadora. Cabe reforçar que, para ela, Ruth Rocha e Joaquim Cardoso Pires apostaram nessas brechas. “Não foi um acaso. Eles perceberam que havia essa fratura no sistema repressivo e se aproveitaram dela”.


Para usar em sala de aula

E não foram só os dois. Ana Maria Machado, Chico Buarque de Holanda e outros brasileiros e portugueses começaram a produzir para os miúdos daqui e de lá como uma maneira de dar vazão ao inconformismo com a falta de liberdade. “Ou seja, de boba essa literatura infantil não tem nada”, destaca a autora da dissertação.

E como o belo dá o que falar, Juliana acredita que as duas obras e outras semelhantes da literatura para crianças podem ser referências atuais muito ricas na sala de aula, principalmente quando se deseja trabalhar questões como organização social, direitos humanos, liberdade, democracia e intolerância. “Eu imagino que dê para partir da questão da contação de história. As crianças adoram. E o bom contador também aproveita o que está sendo narrado. Por isso livros de crianças que revelam discretamente temas de adultos costumam ser muito bem aproveitados”, analisa a pesquisadora, que sugere por fim que em seguida os educadores trabalhem na prática com as questões levantadas nos textos, discutindo a importância do respeito à opinião do outro, o cumprimento de regras justas e a negociação para se chegar a uma situação satisfatória para todos.

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