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Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Não foi sem certo pesar que a psicóloga Maria Tereza Maldonado descobriu que já tinha em mãos material suficiente para escrever um livro sobre bullying e cyberbullying, aqueles padrões agressivos de comportamento muitas vezes estabelecidos entre crianças e adolescentes – e que vêm aumentando em frequência e intensidade nos últimos anos. Autora de mais de 30 livros, entre eles A face oculta, que trata justamente de histórias de violência entre estudantes, a escritora tem percorrido o Brasil e conversado com educadores e alunos de escolas diversas. “Nessas oportunidades, fui me dando conta de como esse é um tema cotidiano na vida dessas pessoas e, com a tecnologia nas mãos, os fenômenos de bullying deram um salto e passaram a atingir também professores, educadores e funcionários dos colégios”, conta. Desses testemunhos, apareceram os pedidos para que a psicóloga escrevesse sobre a questão tão relevante quanto dolorosa.

“Reuni uma considerável gama de episódios, comportamentos e histórias ligados ao bullying e assim nasceu Bullying e cyberbullying – o que fazemos com o que fazem com a gente (Ed. Moderna)”, revela Maria Tereza. No entanto, a obra vai além da narração dos casos e oferece uma reflexão acessível sobre o que são esses comportamentos, por que prosperam e como podem ser combatidos. Não se trata de culpabilizar os meninos e meninas que praticam a violência contra colegas e professores – física ou digitalmente –. A ideia que costura o livro todo é um convite ao pensar, estabelecer e promover relações de convívio que, ao que parece, estão sendo esquecidas.

Valores fundamentais

A opinião da psicóloga é que a sociedade, de maneira geral, e as famílias, de modo particular, têm confundido um pouco valores fundamentais para a boa convivência, daí porque o bullying e o cyberbulling aumentaram tanto. “Não é só aumento na divulgação não, cresceu a quantidade real de casos. Vejo isso nas minhas andanças. E uma das razões é que as famílias acreditam de verdade que as crianças e adolescentes têm o legítimo direito de dizer tudo o que pensam”. O problema é que essa crença nem sempre avalia simultaneamente consequências e responsabilidades por aquilo que se diz. explica. Ou seja, não há freios, direitos e deveres, e o discurso da liberdade de expressão – desconectada de seu valor real – invadiu as casas e as escolas e, em nome dessa suposta liberdade, alunos podem criar comunidades que desrespeitam, ofendem, agridem e ameaçam colegas e até professores.

Como as famílias dessas crianças aparentemente neutras nos episódios podem agir? “Conversando com os filhos, debatendo os valores e defendendo que a posição certa é a de negar e denunciar os casos de violência, nunca propagar”, ensina a psicóloga.

“No auge da rede social Orkut, eram muito comuns as comunidades “Eu odeio a fulana ou o fulano”. E, se não bastasse isso, choviam ofensas e ameaças ao homenageado pela comunidade”, lembra Maria Tereza. Ela afirma, ainda com certo choque, que os pais se ofendem quando alguém diz que não, não se pode dizer o que quer, quando quer, como quer, na hora que quer. É preciso não invadir o outro, não ofender o outro. A liberdade de expressão não pode ser álibi para ataques à dignidade humana, aos direitos humanos – ou reforço de estereótipos e preconceitos.

E se as famílias andam meio atrapalhadas com os valores que devem ensinar a seus filhos, muitas escolas também não enxergam ainda os casos de violência como problema delas, ainda mais se acontecerem fora dos muros ou entre as conexões da web. “Essa insensibilidade é inaceitável. As escolas têm de se posicionar. Prevenir e combater o bullying é também dever de diretores, professores e funcionários. Precisam fazer parte do projeto pedagógico. Se não, essas instituições vão deixar o aluno à mercê de sua própria sorte, e não é assim que se educa um cidadão”, protesta a escritora.

Ela reconhece que casos de agressão física, verbal ou psicológica sempre existiram nos colégios do mundo inteiro e eram entendidos como brincadeiras de crianças, que elas mesmas poderiam resolver, e adultos não deveriam se intrometer. O que mudou, de lá para cá, é que a sociedade começou a não mais tolerar esses comportamentos e passou a tentar evitar que os envolvidos se ferissem, em todos os sentidos, emocional ou fisicamente, já que essa postura de agressividade pode ser evitada. Por isso, a psicóloga propõe que a solução está nas redes de relacionamento.

“Invasão de privacidade”

Para ela, outro conceito que está truncado é o de “invasão de privacidade”. Famílias evitam acompanhar o que os filhos fazem na internet sob o argumento de não ultrapassar o espaço do adolescente, ou da criança. “Acompanhar não é bisbilhotar. Computadores devem estar em locais abertos na casa. As conversas sobre como se portar na internet – que é um espaço público e não privado – devem fazer parte da vida familiar. Os pais se eximem dessa função, que é deles. Muitas pré-adolescentes se expõem, expõem o corpo inclusive, e são tripudiadas pelos colegas. Essas fotos e essas marcas não se apagam nunca mais”.

A escritora lembra que o bullying, ou o cyberbullying, não são fenômenos isolados, acontecem com crianças e adolescentes, que têm família, que estão na escola e, portanto, não estão soltos no mundo. A responsabilidade, então, em caso de violência, é compartilhada – e o combate às violências também. “Tenho visto casos de pais e escolas que se uniram com esse objetivo. Tem até colégio que assina contrato com os pais com um compromisso de olhar para isso, trabalhar essa questão. E tenho visto muitos alunos dispostos a levantar essa bandeira também, porque se incomodam e se angustiam, mesmo quando não são os personagens principais dos episódios”, comemora.

Longe de querer passar uma cartilha e respeitando que casa caso deve ser estudado singularmente, mas reforçando sempre os parâmetros de civilidade, a escritora propõe que cada elo dessa rede faça a sua parte, atue, não se cale. Além do comprometimento de coordenadores e professores, que atuam de perto com os alunos, os funcionários da escola precisam estar preparados para lidar com as agressões, que podem acontecer no banheiro, no pátio do recreio, ou no transporte escolar.

Três núcleos

E a família? Segundo Maria Tereza, há três tipos de núcleos envolvidos: o da vítima, o do agressor e o da plateia. E aqui, a autora faz questão de frisar que essas categorias são dinâmicas e podem se alterar sem muito esforço – hoje quem agride pode ter sido agredido ontem e o contrário também. A família da vítima, caso a criança consiga se expressar e contar o que houve, deve acolher a criança e buscar ajuda junto à escola. Atenção para o caso de estudantes que não conseguem narrar em casa e acabam tomando decisões catastróficas, “como um garoto que depois de ser ameaçado insistentemente por um colega mais velho levou uma faca para a escola. Sorte que conseguiram pegar antes que qualquer tragédia acontecesse e trabalharam a questão”, alerta. A família do agressor deve, em primeiro lugar, ser lembrada de que é responsável amorosa e legalmente por aquela criança e, portanto, cabe a ela ensinar e ser responsabilizada por violências. E as famílias reagem bem a esse choque de realidade? “Claro que não. Num tempo em que valores básicos estão decadentes e quando as famílias relegam para terceiros a educação de sua prole, ouvir que se é responsável, inclusive diante da Justiça, pelos comportamentos dos filhos é chocantes. Mas educar é sim responsabilidade familiar”, afirma.

Por fim e, talvez mais importante, seja o papel da chamada plateia. A psicóloga defende no livro Bullying e cyberbullying – o que fazemos com o que fazem com a gente que essa categoria – que não bate, não apanha, mas assiste a tudo – é a menos olhada, mas é certamente a mais decisiva. Os espectadores são o fator de difusão ou de inibição dos comportamentos agressivos. Cabe, portanto, às famílias e às escolas trabalhar com essa turma, por várias razões. A primeira é que quem só olha hoje, pode ser vítima ou algoz amanhã. Depois, quem vê a violência e não se posiciona está fazendo o jogo do mais forte; por fim, está sendo co-autor, mesmo sem perceber, quem acha que é uma atitude inofensiva apenas replicar nas redes sociais uma mentira ou uma piada de mau gosto sobre um colega. Como as famílias dessas crianças aparentemente neutras nos episódios podem agir? “Conversando com os filhos, debatendo os valores e defendendo que a posição certa é a de negar e denunciar os casos de violência, nunca propagar”, ensina a psicóloga.

“Acompanhar não é bisbilhotar. Computadores devem estar em locais abertos na casa. As conversas sobre como se portar na internet – que é um espaço público e não privado – devem fazer parte da vida familiar. Os pais se eximem dessa função, que é deles. Muitas pré-adolescentes se expõem, expõem o corpo inclusive, e são tripudiadas pelos colegas. Essas fotos e essas marcas não se apagam nunca mais”.

De qualquer maneira, embora o assunto seja duro, Maria Tereza escreveu um livro que traz uma mensagem que, se não otimista, é no mínimo inspiradora. “O subtítulo foi pensado para isso mesmo: o que fazemos com o que fazem com a gente?”, brinca. E o que podemos fazer? Segundo a autora, cada envolvido reage a seu jeito, mas se o bullying em qualquer versão for encarado de maneira franca, pode promover mudanças profundas no comportamento da vítima, que passa a saber se defender e defender seus direitos. Já o agressor, depois de ações de reparação, deve se engajar em campanhas pelo convívio mais harmônico. As famílias assumem seu papel de responsáveis amorosas e legais por suas crianças. E a escola aprofunda os trabalhos pedagógicos e humanistas, reforçando o investimento no caminho de formar também cidadãos que respeitam as diferenças e sabem apreciar a riqueza da diversidade.

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