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Cultura

O limite da notícia

 

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Desde as primeiras horas da manhã do domingo, 27 de janeiro, o assunto inescapável nos veículos jornalísticos brasileiros é o incêndio na boate Kiss, que vitimou 236 pessoas (número oficial em 1º de fevereiro),em Santa Maria, cidade de intensa vida universitária, no interior do Rio Grande do Sul. Como era de se esperar em situações como essa, um batalhão de repórteres foi mobilizado para a cobertura da tragédia. Contudo, ao contrário de fazer valer o sereno e responsável direito à informação, o que uma parcela significativa dos meios de comunicação apresentou esteve (e está) muito além dos limites da notícia. Não raro, fronteiras éticas foram ultrapassadas, o interesse público foi ignorado e investiu-se vorazmente em narrativas embriagadas pelo entretenimento e pelo espetáculo.

O sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, especialista em televisão, mostrou-se bastante incomodado com as histórias veiculadas, principalmente (embora não exclusivamente) pelas emissoras de TV. “Não é possível fazer uma definição geral da cobertura que as TVs deram, mas é possível, por exemplo, observar mais especificamente os telejornais. E a maior parte deles cruzou a linha da informação, da notícia jornalística e deixou no ar um espetáculo, um show, com pouquíssimas exceções”, reforça o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).

O pesquisador lembra que a discussão a respeito das fronteiras entre notícia e espetáculo não é nova; no entanto, cada vez que um grande acidente, ou um acontecimento com número elevado de mortos ou feridos se dá, o debate volta à tona, porque toca em questões nevrálgicas para o jornalismo. Ele cita a postura e a reação, ainda que não manifestadas abertamente, dos empresários de TV, que chegam “a ter certa satisfação quando tragédias assim acontecem, porque sabem que serão garantia de audiência, porque a lógica nesse meio é a luta pelos pontos do Ibope”, provoca. Lalo, como é popularmente conhecido, lembra ainda os estragos cada vez mais profundos sofridos pelo jornalismo quando essa faceta perversa das sensações e do entretenimento revela-se à sociedade. Nas palavras do professor, “coberturas como essa que vimosem Santa Mariaarranham o que entendemos como jornalismo, que não deve ser corrompido pela ganância e deve se manter atento a limites”.

Ao sugerir essa reflexão, o especialista prefere retomar as premissas da atividade jornalística. “Essa discussão sobre a fronteira entre o que pode e o que não pode precisava ser muito mais viva, mais recorrente. As escolas de jornalismo tinham de debater muito mais o assunto”. Ele prossegue: “Nem tudo é notícia, nem tudo deve ser mostrado, você não deve expor quem está fragilizado, fora da condição emocional mais equilibrada. O manual de jornalismo da BBC diz que não se pode aumentar – ou mostrar aumentado – o sofrimento de quem já está sofrendo”. Conceitualmente, caberia ao repórter buscar contextos e a reconstrução racionalizada da melhor versão possível da realidade. Trocando em miúdos, se o jornalismo ajuda a exercitar o livre pensar, o espetáculo faz explodir emoções e sensações.

Daí as críticas às imagens, repetidas à exaustão, das pessoas caídas do lado de fora da boate, recebendo atendimento, dos pais chorando, dos corpos empilhados nos banheiros, das mães chorando debruçadas nos caixões, das ambulâncias com sirenes ligadas carregando os feridos, dos maridos chorando, dos restos do incêndio, das mulheres chorando. Quantas vezes não vimos repórteres lançando a estúpida pergunta “o que você está sentindo?”. O close, a imagem aproximada da lágrima escorrendo – recurso recorrente no telejornalismo brasileiro – também fere de morte esse princípio defendido por Leal Filho. “Não estou dizendo – de forma nenhuma – que não deve ser noticiado. Tem de ser, precisa ser. O que precisa acontecer é uma discussão com os editores sobre o que é notícia. E, portanto, qual é o conteúdo, também chamado de notícia, e qual é a forma. Em geral, no telejornalismo brasileiro, onde mais se peca é nisso, na forma”, propõe.

Na mão contrária, muitas vezes repórteres que participam dessas coberturas alegam que esse é o modelo tradicional e que fazem aquilo para o que são instruídos pelos veículos nos quais trabalham – e que esse debate entre informação e entretenimento cabe bem nos bancos universitários, mas não encontra eco e nem respaldo nas redações. “De fato, vivemos um tempo em que se teme pelo emprego. De qualquer forma, não é também verdade que a discussão permeia as salas de aula. Muitas universidades sequer debatem a ética, os limites e a tolerância a eles e isso precisava ser feito”, lamenta Lalo. Para ele, travar esse debate nas escolas é fundamental para formar jornalistas socialmente responsáveis e cientes dos fundamentos e das tarefas que verdadeiramente cabem à profissão.

Ao novamente analisar as coberturas das emissoras de TV sobre a tragédiaem Santa Maria, o professor da USP lembra que a Globo mandou William Bonner para o cenário do acontecimento, para transmitir ao vivo de lá. “Imagine o espectador que vê sempre o Bonner sentado, de segunda a sexta. Naquele domingo, dia extra, ele estava no palco da tragédia, de pé. É muita exceção, com muitas tintas carregadas. Me pergunto se é mesmo necessário”. E diante da justificativa de que não é possível fazer diferente, o jornalista aponta exemplos diversos em que a cobertura procurou ser mais sóbria e precisa. Em agosto de 1998, um atentado a bomba matou 29 pessoas na cidade de Omagh, capital do condado de Tyrone, Irlanda do Norte. Leal Filho acompanhou a cobertura pela BBC. “Fiquei sabendo de tudo que precisava. Muita informação de qualidade jornalística”. E não foi preciso ver uma única imagem de sangue, de destruição, de gente morta. Para comparar: no mesmo ano, o ator Gerson Brenner, que trabalhava na Globo, foi assaltado e baleado na rodovia Ayrton Senna. Aqui, o show prevaleceu. “Como as equipes chegaram ao local depois que ele havia sido removido de ambulância, fizeram todas as entradas, todas as matérias, focalizando a mancha de sangue no asfalto da pista. Um absurdo”. Outro exemplo positivo citado pelo professor foi a da Rede TV durante o resgate, a identificação e o enterro dos mortos no incêndio de Santa Maria. “Foram sóbrios, pontuais, ninguém chorando. Me parece que o chefe de reportagem da emissora tem uma orientação afinada com a da BBC”, recorda.

São exceções, infelizmente. Na edição dos telejornais, via de regra, e imediatamente após o zoom nas imagens de sofrimento, aparecem “repórteres que não reportam, mas emitem opinião, ou soluções mirabolantes. Bonner fez isso no dia seguinte: primeiro, auto-promoção da Globo, que deslocou dezenas de profissionais para a cobertura – o que é bem ruim – e depois gastou o tempo do espectador manifestando suas impressões e sensações. Jornalismo não se baseia nisso. Jornalismo trabalha apuração, informação, notícia. Jamais especulação”.

Na sequência, entram os repórteres ao vivo, direto de onde o fato se dá e, segundo Leal Filho, podem ser divididos em três grupos: os que entram despreparados em termos de forma e conteúdo, “gaguejam, repetem palavras, repetem informações, induzem os entrevistados”; os que trabalham com competência, porque reconhecem os limites da informação; e aqueles que seguram a audiência, “mas que longe de serem jornalistas, são showmen. A Band recrutou o Datena, que reina absoluto em situações de calamidade, de exploração de tragédias”.

E se é nas entradas ao vivo que os telejornais mais patinam, é no rescaldo, nos dias seguintes, que outros programas da TV atentam ainda mais contra o jornalismo de qualidade. “Aí complica mais ainda, porque são programas especificamente de entretenimento, que não têm nenhum compromisso com a informação”, aponta. Por fim, brotam em profusão – nos telejornais e nos demais programas – os especialistas. “De novo para dar opinião, sem conhecer a situação, para repercutir, polemizar e palpitar. Muitas vezes são especialistas usados para dizer o que a emissora gostaria de falar abertamente, mas não deve. William Waack recebeu um advogado inflamado no Jornal da Globo, que apenas acusava o governo do Rio Grande do Sul como responsável pelo incêndio em Santa Maria. Depois soube que era o filho da deputada Zulaiê Cobra, que foi um dos quadros mais importantes do PSDB. Uso político da tragédia, nota?”.

Por fim, Laurindo Leal Filho sugere que os jornalistas não esqueçam que fazem parte de uma sociedade complexa, e que suas atividades têm múltiplas implicações. A naturalização da cobertura da violência não pode anestesiar os repórteres e os editores – porque, se for assim, vai anestesiar também a sociedade. Para ele, uma das chaves para conseguir uma cobertura de qualidade é, apesar da pressão do veículo, apesar da linha que o editor segue, não se afastar dos princípios jornalísticos. “Se é notícia e nada além dela, aí sim pode ir ao ar”.

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