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Cultura

A Salvaguarda de uma democracia

Cientista político defende que afastamento do presidente Collor em 1992 foi marco do avanço democrático brasileiro. “O legado [do impeachment] é bem grande, mesmo 20 anos depois. Começo destacando a lição que os políticos brasileiros tiveram em relação a um governo não consensual. Depois o fortalecimento e o aperfeiçoamento das instituições políticas”, conta Edison Nunes. 

Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

O impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, em 1992, foi um episódio simbólico e marcante da História recente do país. Mas não terminou naquele 29 de setembro, quando a Câmara dos Deputados, com 441 votos favoráveis e apenas 38 contrários, autorizou a abertura do processo contra o então chefe do Executivo, nem mesmo no dia 29 de dezembro, quando o Senado condenou Collor, que teve seus direitos políticos cassados por oito anos. De acordo com análise do cientista político Edison Nunes, as consequências daquele movimento se manifestam até hoje e continuarão se projetando no futuro.

Nunes, que é professor do Departamento de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (NUPPs-USP), sugere que o impeachment de Collor representou um marco do avanço do sistema presidencialista na América Latina, que pôde se aproximar do Parlamentarismo e garantir equilíbrio mais efetivo entre Executivo e Legislativo. Em entrevista exclusiva à Revista Giz, ele defende ainda que é notável o aperfeiçoamento das instituições políticas do Brasil a partir daquele ano. O Ministério Público, os Tribunais de Contas e até mesmo leis como a Ficha Limpa seriam evidências desse desenvolvimento.

Acompanhe a seguir os melhores trechos da conversa com o cientista político. ►

Vinte anos depois, como devemos olhar para o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo?

Prof. Edison Nunes – É muito oportuno falar desse assunto agora. Por causa da data, claro, mas também por dois outros aspectos: primeiro pelos esforços que o país vem fazendo no sentido de aprimorar o sistema democrático. Essa forma de democracia que temos no Brasil não tem mais que 25 anos e isso, em termos históricos, é nada, somos muito jovens e estamos mostrando um esforço importante para construir instituições democráticas sólidas. O segundo aspecto é que a ideia de democracia na América Latina é tão jovem quanto, e a democracia é um valor que deve ser cultivado. A confusão que nasce daí é em parte explicada por toda essa juventude. Estou me referindo a quem acredita que derrubar um presidente é um ataque à democracia. Pode não ser e não foi no caso brasileiro.

Então o senhor coloca o impeachment de Collor dentro de um contexto mais amplo de aperfeiçoamento dos regimes democráticos?

Sim, um contexto maior, num contexto de América Latina. Se observarmos os impeachments acontecidos nessa terceira onda de democracia latino-americana, podemos encontrar alguma novidade no caso Collor. O sistema presidencialista costuma ser criticado porque o presidente pode governar independentemente do Congresso, de costas para o Congresso. Em tese isso é possível, mas o que a América Latina vem mostrando é que um presidente com minoria no Legislativo não consegue governar.

O impeachment de Collor – e depois os dos outros presidentes da América Latina – mostra é que é possível destituir o presidente sem destituir a presidência. Revela-se, portanto, um avanço do Presidencialismo em direção ao Parlamentarismo. É um avanço notável, por exemplo, no equilíbrio de poder, na força dos parlamentares e nessa novidade de depor sem golpe e mantendo a democracia funcionando.

O chefe do poder político é responsabilizado, se reestabelece o equilíbrio e as relações entre o executivo e o legislativo e a crise é resolvida sem golpe. A deposição de Collor ou de Lúcio Gutierrez, do Equador, mostra que é possível tirar um presidente do poder sem aquele perigo que tradicionalmente rondava a América Latina: cair nas mãos de um governo autoritário. O que estou querendo dizer é que nessa fase mais avançada do presidencialismo, o impeachment do presidente pode não ser golpismo, pode sim ser uma salvaguarda do próprio sistema. No sistema parlamentarista, seria o similar à perda de confiança, ao voto de desconfiança, que pode derrubar o Primeiro-Ministro. Estamos, então, dando guarida à democracia.

Estamos então falando de um sistema presidencialista que pode abrir mão do presidente sem que aconteça uma ruptura irreversível no jogo democrático…

Esse é o grande avanço a que me referia. Até 1992, não era possível resolver uma crise profunda entre Executivo e Legislativo sem uma grande crise. E o que o impeachment de Collor mostrou é que é possível resolver o impasse entre presidente e congresso de forma razoável, sem partidarismo, com calma e consenso.

Foi um tremendo desafio à democracia recém-constituída do Brasil, não? Tínhamos acabado de sair de uma ditadura militar, era o primeiro presidente eleito em anos…

Foi um desafio, mas o frescor das instituições recém-constituídas foi a nossa sorte. O processo só foi pouco traumático – na medida em que um impeachment presidencial pode ser pouco traumático – porque foi consensual. Todas as instituições entenderam juntas que, para além do processo político, aquele era um presidente insustentável e, em nome de um bem maior, trabalharam unidas. Mas isso, reforço, se deveu à juventude das instituições, não estavam viciadas ou posicionadas eleitoralmente.

A que o senhor atribui esse sucesso e consenso na condução do impeachment do presidente Collor? A experiência da ditadura foi tão traumática que se preferiu uma saída mais tranquila e consensual?

Atribuo à sofisticação e à maturidade política de algumas instâncias nacionais. A vida moderna, a urbanização, a industrialização, por si só, trazem esses avanços. Além disso, é inegável que as elites políticas – os representante e líderes mesmos – aprenderam com o golpe de 64, acusaram a responsabilidade do poder civil naquilo tudo e trataram a questão com a responsabilidade devida. Eu diria que as fantasias falaram mais baixo e não transformaram tudo numa luta apenas pelo poder executivo, numa luta do bem contra o mal.

O que se pode analisar em relação à corrupção, que foi o gatilho para a deposição de Collor?

No Brasil, convenhamos, a corrupção é um problema maior. Não é um detalhe. E é um problema que tem potencialidade para corroer a Democracia. Acho que essa foi uma lição que tiramos do episódio do Impeachment. Veja só, há pessoas que dizem que o problema da corrupção é moral e lembram da UDN e das campanhas moralizantes da Classe Média. Mas não é nada disso. O uso inadequado, por exemplo, dos recursos públicos leva a distorções que podem sim minar o sistema político, do sistema democrático. Não é portanto uma veleidade, é uma questão fundamental para o avanço e o sucesso da Democracia. Quer um exemplo? A descrença no domínio da lei. As instituições passam a ser desacreditadas e isso é um perigo. Assim como a generalização da percepção da corrupção que mina a crença da sociedade no valor da Democracia. E essa é uma descrença realmente perigosa. O valor da Democracia se constrói dia após dia e não é uma tarefa fácil, a corrupção tem força para destruir esse trabalho. Mas sou otimista. Vejo a sociedade brasileira muito decidida a mudar isso. A Lei da Ficha Limpa, por exemplo, nasce dessa demanda popular e de uma iniciativa popular. Com todas as inconsistências dela, não deixa de ser um avanço. A Lei de Responsabilidade Fiscal e a Improbidade Administrativa também são, mas se diferenciam da Ficha Limpa, porque nascem de um saber e uma percepção técnica e jurídica muito específica. Só quem governa, ou administra o bem público tem essa noção. A Ficha Limpa e a corrupção fazem parte do imaginário e do universo de qualquer cidadão, que sabe que roubo é roubo e deve ser combatido a qualquer custo.

Mas o ex-presidente, que foi deposto e que renunciou, hoje é senador e tem uma grande força política local e nacional. Como a gente pode defender o impeachment diante disso?

Essa é uma ótima pergunta e sou, novamente, otimista em relação a isso. O processo de julgamento do ex-presidente foi político. E politicamente ele foi condenado e punido dentro da lei. Preste atenção, na força da lei, jamais para além dela. Não foi um processo de perseguição e de aniquilação de uma pessoa. E isso é um avanço. Em termos jurídicos, penas, etc, ele também foi julgado e poderia vir a ser condenado. Não foi. Podemos até discutir isso, mas é inegável que houve uma movimentação política e uma movimentação jurídica. Ao final dos dois processos, Collor tinha que pagar pelo que foi condenado. E pagou. E, ao pagar, zera sua dívida com a sociedade e pode voltar a exercer suas funções políticas. Isso certamente irrita muita gente, mas, ora, se os mais progressistas defendem que o sistema prisional deve servir para reabilitar o condenado e devolvê-lo à sociedade, modificado, pronto para a convivência social, por que com um ex-presidente não poderia ser assim? Seria uma incongruência. Defender o aniquilamento político de um ex-presidente corrupto é defender o atropelamento das leis nacionais. Qual seria o antídoto para a força e a vida política de Fernando Collor? Que as pessoas não votassem nele. E por que ainda votam? Porque entendem que a política não precisa ser uma luta entre o bem e o mal, o tudo e o nada. Pode ser uma construção com menos demonizações e mais tranquilidade. Quem entende que uma vez corrupto sempre corrupto, pode não votar nele, pode fazer campanha contra, mas tem de respeitar – entendendo que isso é um avanço democrático – o direito que ele tem de fazer política e se candidatar.

O senhor consegue descrever e analisar o legado deixado pelo processo todo de impeachment do presidente Collor? E aqui nos referimos à mobilização popular, dos estudantes, da imprensa que investigou e publicou, da sociedade civil organizada, das instituições de poder, etc…

O legado é bem grande, mesmo 20 anos depois. São duas grandes marcas. Começo destacando a lição que os políticos brasileiros tiveram em relação a um governo não consensual. Se até aquele momento acreditava-se que era possível governar sem consenso e sem se voltar para o povo brasileiro, essa crença caiu. E o que vimos nos governos seguintes foi um respeito muito grande ao povo e à necessidade de consenso. Outro legado foi o fortalecimento e o aperfeiçoamento das instituições políticas. Tanto daquelas que zelam pelos governos, como os Tribunais de Conta, a Advocacia Geral da União e tal, como daquelas que zelam pelo bem da sociedade, como o Ministério Público, que ressurge com força depois da Constituição de 1988, mas entra em ação mesmo a partir do Governo Collor, sempre com o intuito de promover governos que prestem contas à sociedade. Vejo uma busca por independência. Mas temos um caminho longo pela frente.

 E a segunda grande marca do impeachment, professor?

É a esperança.

O processo do impeachment foi todo muito bonito no que diz respeito à ruptura de certas crenças de que algumas práticas eram imutáveis, que as coisas não mudariam. E elas mudaram. A sociedade pode cobrar a saída de um presidente e ter certeza de que o próximo será eleito democraticamente.

A sociedade pode exigir que um governo corrupto seja julgado e condenado e que isso não signifique o fim de uma pessoa, mas sim o pagamento de uma dívida, com chance de recomeço. Não foi responsabilidade de nenhuma entidade em especial, de nenhum grupo – não foi nem a imprensa livre, nem os estudantes na rua que derrubaram sozinho o presidente Collor – foi a união de várias instâncias, em nome de um bem maior e sem prejuízos sociais ou pessoais. Esse é o efeito mais tocante e que a gente não pode deixar esquecer.

O senhor acha que a sociedade percebe esses avanços que o senhor vê? Não é exatamente isso que a imprensa constrói…

Esse é outro cuidado que os jornalistas deviam ter. Não quero generalizar, mas acho que cabe sugerir que os jornalistas se formem e se informem melhor antes de fazer suas análises, chegar às suas conclusões e darem os casos por encerrados. Deviam perguntar mais o por quê das coisas. Por que, por exemplo, foi inventada a presunção de liberdade? Tem uma razão de ser. Ou, nessa época que antecede as eleições municipais, por que ninguém pode ser preso salvo em situação de flagrante? Ora, não parece uma ferramenta muito simples prender todos os eleitores da corrente contrária bem na véspera da eleição? Esse país ainda tem práticas antigas, inaceitáveis, e a justiça enxerga isso. Será que os jornalistas também não deveriam tentar ver? Caso contrário, colocam-se em cheque conquistas fundamentais, libertadoras, e por falta de conhecimento, o jornalista derruba numa frase. E acho que devia saber mais também sobre o próprio processo político, o funcionamento das forças políticas, a viabilidade do que preconizam. A priori, isso é visto como uma coisa ruim, sinônimo de politicagem e pode não ser. Mas é preciso treinar os olhos e querer saber quando é uma coisa e quando é outra. Seria um avanço importante essa postura da mídia.

 

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