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Cultura

O silêncio sorridente

Urbanista discute os recentes incêndios em favelas em São Paulo, analisa a especulação imobiliária e cita outras forças vivas que promovem a desumanização da cidade. “Fico triste quando vejo um velho defendendo que a favela tem de sair dali mesmo, mas se vejo um jovem falando a mesma coisa, fico desesperado”, diz. Contudo, o especialista mantém o otimismo.

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Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

No último dia 17 de setembro, mais uma favela paulistana pegou fogo. Dessa vez foi a Favela do Moinho, perto do bairro de Santa Cecília, na Zona Oeste da capital. Seria uma notícia trágica, entre tantas outras nos cadernos de Cidades dos principais jornais, se não fosse por um detalhe ainda mais estarrecedor: é o 33o incêndio em favelas no ano de 2012, segundo dados da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo que investiga esses acontecimentos. Trinta e três incêndios em 10 meses. Incomum.

Some-se a isso o curioso fato de que a Zona Oeste é a região de São Paulo que menos tem comunidades com autoconstruções, como chamam os urbanistas. Contudo, foi nessa área que a maior parte dos incêndios aconteceu. Talvez porque tenha os metros quadrados mais valorizados e cobiçados da megalópole. A Prefeitura atribui as chamas em geral ao tempo seco, à falta de umidade, a acidentes e a conflitos entre moradores, que por sua vez bem lembram que as brigadas de combate a incêndio nos bairros mais precários foram reduzidas nos últimos anos, e que investimentos públicos de prevenção foram cortados.

Além da Câmara, o Ministério Público do Estado de São Paulo também está investigando o número elevado de ocorrências com fogo, porque entende que pode haver ligação entre eles e o crime organizado, por exemplo.

O urbanista Fábio Gonçalves, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), sugere que os incêndios não são fruto do acaso e que, embora os inquéritos não apontem os verdadeiros autores, existe sim – por trás de toda desocupação violenta de terrenos – a resolução de conflitos por meio de acordos não oficiais entre as forças vivas que atuam nessas comunidades: poder público, crime organizado, grupos econômicos, etc. Segundo ele, o Estado falha quando não garante moradia digna aos habitantes, falha quando não estabelece a mediação do jogo de força entre os vários agentes e falha quando se alinha aos interesses dos atores sociais mais fortes política e economicamente.

Na entrevista que concedeu à reportagem da Revista Giz, Gonçalves sugeriu várias reflexões a respeito da série de incêndios que, segundo ele, começa a estarrecer parte da população. “Parcela da população não acha ruim que a favela tenha pegado fogo e tenha saído dali de seu campo de visão, essa postura é bem arraigada aqui. Mas já começo a vislumbrar sinais de que outra parcela da população tem achado uma tragédia, um absurdo inaceitável. E assim creio que as coisas começam a mudar”. Os melhores momentos dessa conversa, você acompanha a seguir.

Leia a entrevista ao lado ►

Professor, como explicar a ocorrência de 33 incêndios em favelas paulistanas desde o início do ano?
Fábio Gonçalves – Historicamente, a cidade de São Paulo apresenta um conflito aberto ligado à permanência de grupos que moram em construções precárias, favelas e similares. Há 30 anos, por exemplo, era política de Estado tirar as pessoas desses lugares com truculência – na base do trator ou do fogo – ou pagando para os moradores voltarem a seus estados de origem, para a Bahia, como gostavam de dizer. O governo Jânio Quadros agiu assim. Negociavam, pagavam e as famílias que não saiam dessas áreas eram arrancadas de lá porque o trator passava por cima. Era uma prática comum. Foi assim na Água Espraiada, por exemplo.

O senhor acredita que ficou um resquício desse tempo? Ou seja, as pessoas não ficam chocadas com incêndios e mortes em favelas porque, de alguma maneira, foram acostumadas a isso?
Acho que essa prática só não se perpetuou porque a escala de favelados, a quantidade de gente envolvida, causaria problemas políticos para os governos. E nesse sentido podemos dizer que houve um avanço. Hoje todos os candidatos a prefeito falam da urbanização das favelas como uma plataforma positiva. O discurso do atendimento e da manutenção da população no local já é hegemônico. Por outro lado, nas periferias de autoconstrução, as pessoas moram muito mal, o lote tem dono, não tem saneamento, as casas são mal construídas, mas isso não causa espanto. Não é exagero dizer que quando pega fogo numa favela e ela tem de sair daquele terreno, uma parte da população até acha bom. O estarrecimento não é a tônica dominante. Basta lembrar do silêncio sorridente de São Paulo, cantado por Caetano Veloso, diante do massacre do Carandiru. A população não ficou indignada. É uma população violenta. Muito violenta. E, no caso da operação na Cracolândia, só houve barulho porque os viciados se espalharam pela região, em vez de ficarem contidos numa área demarcada. Na opinião dessa população, bom seria se os habitantes da Cracolândia sumissem de vez.

Mas os incêndios são cada vez mais frequentes. E quais seriam então as causas deles atualmente?
A primeira coisa que precisa ser dita quando se trata de trabalhar com favelas, comunidades, ou outros agrupamentos é que ninguém consegue fazer nada, prestar nenhum serviço, sem negociar com os grupos de poder que disputam esses lugares. A prefeitura não pode urbanizar uma área sem negociar, por exemplo, com o crime organizado, o Primeiro Comando da Capital (PCC), os traficantes de droga, os vereadores, as igrejas, enfim, as forças vivas que atuam nesses lugares. Evidentemente esses acordos não vão para o papel e nem há provas documentais deles. Então não acredito em incêndio que não tenha sido negociado e levado a cabo por alguma dessas forças em busca de interesses e vantagens. Pode ser acidental? Pode. Mas não acredito que não tenham sido negociados.

Então mesmo que o Estado não seja o responsável direto pelos incêndios, certamente está falhando no papel de mediador dessas forças…
Existem casos em que o Estado atua muito bem. Consegue mediar as forças todas, age, presta atendimento local à população e consegue bons resultados. Um exemplo é a Favela Pantanal, também conhecida como Vila Nova. Ali, depois da urbanização liderada pelo Estado, os assassinatos, que eram alarmantes, deixaram de acontecer. Estão há quatro ou cinco anos sem assassinatos. As forças que atuavam ali chegaram a um acordo e o bairro funciona, a saída não precisou ser um incêndio. Mas ali o poder público entrou, selecionou um morador de cada quadra para ser um agente, deu cursos sobre violência e violência contra a mulher e doméstica, encontrou famílias que passavam fome e crianças que morriam de subnutrição. Por que aconteceu diferente ali? Porque era uma população grande, com força política para negociar politica, econômica e socialmente, de um jeito diferente. Todo espaço é sempre construção, negociação. Às vezes a solução vem em forma de incêndio.

E a maior parte desses incêndios acontece justamente nas áreas mais valorizadas da cidade, cobiçadas pela especulação imobiliária. É coincidência?
Precisaríamos de dados estatísticos mais confiáveis. Mas o que podemos afirmar é que geograficamente, a Zona Oeste é a região que menos tem favelas na cidade, mas a maioria dos incêndios ocorreu nessa região. É uma provocação. Precisamos perguntar por que está sendo assim. As favelas que ficam longe das zonas de interesse não pegam fogo, não desaparecem assim. São Paulo não tem menos favelas que o Rio de Janeiro, acontece que a geografia impôs ocupações diferentes em cada cidade. Além de a favela subir o morro e ficar, portanto, mais visível, no Rio elas dividem espaço com os bairros nobres.Em São Paulo, as favelas foram sendo empurradas para longe da área de visão dos grupos mais poderosos. A Marginal Tietê, por exemplo, era toda ladeada por comunidades. Onde elas estão agora? Mais longe, porque a Marginal é uma via de passagem importante. Então veja, é uma remoção seletiva.

E o Estado privatizado deixa de dar conta do direito à moradia.
Ideologicamente falando, deveria garantir esse e outros direitos. Mas nunca foi assim no Brasil. Na verdade, o Estado serve aos grupos econômicos e políticos que dão sustentação ao governo. E não é segredo para ninguém que os últimos governos trabalharam a serviço dos grupos imobiliários. Portanto, aqui na cidade, o que vemos é o oposto daquele ideal de Estado que serve a todos. Trata-se de um jogo de forças desigual e covarde que mexe em interesses pesados. E junto com isso, temos uma população que faz a seguinte conta: “até que não morre muita gente nesses incêndios”. Se morresse, o preço político seria muito caro, o problema seria grande. Como não morre, dá para esquecer, relevar.

Não há perspectiva de mudar essa mentalidade, professor? Porque essa seria uma força importante para que incêndios não fossem mais aceitos como uma solução para o problema da moradia…
Olha, está despontando um incômodo com essa situação. Precisamos olhar com perspectiva histórica. E historicamente já foi pior, já foi aceitável remover populações com violência, então observamos avanços. Os candidatos e os políticos já falam em favelas-bairro, o discurso da organização e da permanência já é totalmente incorporado hoje. Os inquéritos para apurar e punir eventuais culpados não andam porque ainda somos bem atrasados e nossa Justiça não se move se não por razões políticas.Em São Paulonenhuma obra, por mais regular que esteja, avança se os fiscais não receberem propina. E a Justiça não apura, não pune. É uma violência, é uma sociedade muito violenta.

Mas ainda assim o senhor é otimista e vê avanços.
Sou professor e não poderia entrar em sala de aula e encarar os alunos se não fosse amparado na felicidade que alguns avanços me dão e na certeza de que é possível avançar mais. Os incêndios são o sintoma do atraso que ainda vivemos, mas hoje são vistos com constrangimento. A imprensa fala, a sociedade se incomoda e hoje já vê como absurdo cada incêndio e a reincidência de incêndios nas favelas. A parte mais esclarecida da sociedade experimenta o que chamamos de alteridade. Ela se põe no lugar do outro, é sensível ao outro, e acusa os absurdos e as tragédias. Se há alguns anos, a expulsão truculenta não constrangia e podia ser praticada impunemente, hoje ela é encabulada, indefensável, a política de voltar para a Bahia é inaceitável. As antigas estratégias, hoje são encabuladas. E o papel na educação frente a tudo isso é continuar despertando o olhar crítico, sensível, em busca de uma sociedade mais justa. A educação faz evoluir. Fico triste quando vejo um velho defendendo que a favela tem de sair dali mesmo, mas se vejo um jovem falando a mesma coisa, fico desesperado, porque o caminho é para frente, para a evolução.

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