Francisco Bicudo*
Nascido num vilarejo da Síria, o poeta Adonis, sempre lembrado como candidato ao prêmio Nobel de Literatura e que vive desde 1985 em Paris, só começou a frequentar a escola aos 12 anos. Quem o apresentou ao mundo das letras foi o pai, profundo conhecedor da literatura árabe, principalmente dos textos e autores clássicos e mais antigos. Foi também incentivado pelo pai, que era capaz de recitar de cor cerca de cem mil versos da poesia árabe e que passava madrugadas numa espécie de desafio poético de memória com os amigos (quando o primeiro terminava de recitar, a última letra declamada deveria ser a primeira do verso que seria apresentado pelo seguinte e assim sucessivamente), que o romancista e ensaísta Amin Maalouf encantou-se pela literatura. A figura paterna foi portanto decisiva na formação intelectual dos dois autores e, de certa forma, o ponto de partida para as trajetórias literárias de ambos, como reconheceram os dois escritores no debate “Literatura e Liberdade”, mediado pela jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho e realizado ao cair da tarde da sexta-feira, 06 de julho, na Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP.
Se tivesse no entanto permanecido fiel e preso apenas às influências do pai, que lia para ele muitas vezes o Alcorão, talvez Adonis não conseguisse alcançar a condição de poeta do mundo.
“Do ponto de vista poético, tinha algo que, ainda jovem, eu não conseguia explicar. Era uma revolta contra tudo o que fosse do passado. Eu confrontava tudo o que vinha do meu pai, tinha alguma coisa contra a cultura dele”, contou.
A compreensão mais profunda sobre o estranhamento – e a mudança de rumos – aconteceram quando travou contato com poetas árabes que ele classificou de marginalizados e revolucionários, porque não submetiam suas produções às inspirações ou aos ditames da religião. “Não conheço nenhum grande poeta de tradição árabe que tenha sido religioso”, sentenciou o sírio.
Amin precisou também alargar as referências paternas – sem jamais negá-las – para promover o que chama de encontro entre vários mundos, o que, trocando em miúdos, significa dizer que não faz distinção entre as influências orientais e ocidentais que recebeu. “Fui formado numa sociedade híbrida, com histórias ricas e tradições diferentes, onde sempre houve e haverá várias línguas e narrativas a circular. Eu tentei sempre beber em todas as fontes, buscando essa concepção universalista”. Ele se considera assim um pouco árabe, um pouco libanês, um pouco francês… um pouco de tudo. E garante que o mundo será tanto melhor quanto formos capazes de reivindicar nossos distintos pertencimentos. “Se somos talhados por um só recorte, abrem-se as portas para as identidades assassinas”, alertou.
Os dois autores fizeram questão de destacar que uma cidade que encarna essa vocação de ser um ponto de convergência de diferentes vozes e culturas é Beirute, capital do Líbano, onde Adonis também viveu em sua juventude, quando inclusive conheceu o pai de Amin. Para o poeta, Beirute é politicamente construída pelo ocidente como uma cidade apagada, fechada, monotônica.
“Mas é vida em movimento, lugar de aventuras e sonhos, da formulação de perguntas”, define.
Amin reverberou a mesma impressão, reafirmando que Beirute é um laboratório da coexistência em mosaico. Parao poeta sírio, o problema é que o ocidente não entende – ou não quer entender – como acontece esse hibridismo, já que é escravo de seus preconceitos e interesses políticos e econômicos e está preocupado apenas com duas questões: a energia representada pelo petróleo e a fabricação de armamentos, só conseguindo enxergar o mundo árabe a partir dessas duas viseiras. “Em suma, nosso problema é o imperialismo americano”, sentenciou.
A conversa escapou então naturalmente para as mudanças recentemente vividas por muitas nações daquela região do globo – a chamada Primavera Árabe. Adonis definiu esses movimentos como extraordinários, principalmente porque, segundo ele, foi a primeira vez em que sociedades do oriente decidiram não imitar o ocidente. Ele comemorou ainda o advento de manifestações livres, abertas e visionárias, com intensa participação das mulheres e da juventude. “Com o passar do tempo, esses grupos hegemônicos foram sendo afastados e marginalizados, substituídos pelos fundamentalistas, que agora controlam os processos”, lamentou. Ele afirmou ainda que qualquer revolução que pretenda se consolidar na região deve ter como base de sustentação dois princípios fundamentais e inegociáveis: a separação profunda e radical Estado-Igreja, com a garantia de uma sociedade laica, e a libertação da condição feminina – as mulheres precisam ter seus direitos garantidos e respeitados.
Amin concordou que as esperanças de transformação duraram pouco e reforçou que o processo será longo. “A revolução francesa estourou em 1789, mas foi somente no final do século XIX que a França alcançou uma República relativamente estável. Nesse meio tempo, viveu períodos de terror, de restauração, de idas e vindas. Não será diferente com o chamado mundo árabe. É preciso uma revolução de mentalidades”. Ele completou que, apesar das dificuldades, já é possível vislumbrar aspectos positivos, como o hábito de votar. “Que esse jogo democrático seja perpetuado!”, desejou. Os dois autores foram então provocados pela mediadora a verbalizar o que pensam da atuação do presidente estadunidense Barack Obama em relação à região. Amin foi polido. “Obama tem ideias louváveis, mas parece buscar sempre consensos, sem tomar decisões ou fazer escolhas”. Adonis foi cortante: “Obama é simplesmente uma máscara negra em um rosto branco. Os Estados Unidos não conhecem o mundo árabe”.
Nesse cenário de profundas transformações, a cultura, de forma mais ampla, e a literatura, mais especificamente, são forças motrizes especiais e imprescindíveis, segundo os dois escritores. Adonis disse que a cultura não pode mais ser encarada como artigo supérfluo e que está mais do que na hora de repensar as identidades e de garantir a primazia da diversidade cultural.
“É preciso conhecer profundamente os outros, em gestos de tolerância. E a literatura tem papel decisivo nesse encontro e diálogo”.
Para ele, a atual produção literária árabe, real e criadora, precisa ser questionadora e transgressora, criticando tradições, hábitos, costumes, religiosidades – tudo. “Sem perguntas, não haverá grande literatura, que é justamente a criação de novas relações entre a palavra e o leitor”.
Amin fechou sua fala lembrando que os tiranos temem os romances, porque estes ajudam a reinventar o mundo. “Literatura precisa ser tensão e ruptura, deve sempre representar um estresse provocativo”.
*Fotos: Walter Craveiro/Divulgação FLIP