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Cultura

O bom romancista é, por definição, um manipulador

Uma das mesas mais esperadas da edição 2012 foi a composta pelo autor inglês Ian McEwan e a americana Jennifer Egan. Como mediador o jornalista e crítico musical Arthur Dapieve.

Francisco Bicudo*

Dois dos mais importantes autores em língua inglesa de nosso tempo, porque recorrem às múltiplas vozes narrativas para lidar, com singularidades, com uma agonia ancestral e universal, a incomodar o ser humano desde que nos reconhecemos como tal: a passagem rápida e provocante do tempo, sempre a nos desafiar e nos confrontar com nossa própria finitude, sem que jamais possamos controlar essa dimensão. Foi recorrendo a esses atributos literários que o jornalista e crítico musical de “O Globo”, Arthur Dapieve, apresentou os escritores Ian McEwan, nascido na Inglaterra e autor de obras como “Reparação” e “Serena”, que acaba de ser lançado no Brasil, e Jennifer Egan, estadunidense autora de “A visita cruel do tempo”, que venceu o Pulitzer de Ficção de 2011. Os dois participaram da mesa “Pelos olhos do outro”, na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Travaram um diálogo inteligente, instigante e sedutor sobre processos criativos e a respeito da importância do romance em tempos de virtualidades e redes sociais.

O tema proposto era o processo de criação dos personagens. Pois diferente do escapismo, imaginar os personagens pode ser um “ato de humanização”

Provocados pelo mediador, começaram contando como constroem seus personagens. Ian revelou que suas escolhas não são conscientes. Ele disse que embarca como um sonâmbulo na história, como se estivesse a pintar um primeiro traço do rosto, depois outro, mais um – e quanto mais avança no desenho do corpo e das expressões, mais se obriga a buscar traços cada vez mais coerentes e harmônicos. “Quando começo, não faço a menor ideia de como ficarão meus personagens, não consigo imaginá-losem definitivo. Eles simplesmente vão aparecendo”, contou. Jennifer observou que procura sempre partir de uma atmosfera, de um espaço-tempo estabelecido, e garantiu que não escreve sobre a própria vida, nem se inspira em pessoas que conhece. “O que busco são as contradições e tento me imaginar nas cabeças de outras pessoas”.

Os dois concordaram com aquilo que consideram ser uma característica absolutamente fundamental e definidora do romance: nessa dinâmica criativa, é preciso encarnar outra pessoa, outra voz narrativa.

“Deixar-se absorver e abrir-se a outras mentes. Estamos sempre e invariavelmente nos apoiando nos outros”, marcou Ian, insistindo nessa palavra: outros. “Somos inventivos, ousados”, completou Jennifer.

Para eles, revelar as histórias a partir dos olhares e das percepções de mundo de alguém que não é exatamente o autor é uma das razões que confere força e atrativos ao gênero e que impede o romance de morrer.

Ao falar sobre esforço de pesquisa na construção da obra, a escritora estadunidense chegou a surpreender ao reconhecer que, para escrever “Torreão”, livro recentemente lançado no Brasil, tentou inicialmente escapar desse esforço de apuração. “Achei que não havia necessidade, que a história não exigia. Foi desculpa para minha preguiça”, continuou. Por conta dessa postura, ela admitiu que em diversos momentos da história, enquanto escrevia, sentia certa falta de autoridade nas descrições. “Não sabia por exemplo qual era o cheiro de uma prisão”. Percebeu que era preciso, ainda que minimamente, preencher essas lacunas – visitou então um presídio, onde passou oito horas, atenta aos mínimos detalhes. “Fez uma enorme diferença. A leitura tornou-se mais viva e iluminada”.

O escritor britânico Ian McEwan se firmou com um dos mais conhecidos autores no mundo dos romances. O autor de ‘Serena’ foi laureado com o Prêmio Man Booker pela novela ‘Amesterdão’

Ian usou o exemplo do livro “Sábado”, de 2005, que tem como protagonista um neurocirurgião, para detalhar o mergulho de compreensão que procura desenvolver quando está escrevendo. Ele lembrou que passou um bom tempo usando jaleco branco, em hospitais, acompanhando cirurgias. Aproveitou para contar uma passagem divertidíssima: estava certa vez no centro cirúrgico quando alunas de Medicina se dirigiram a ele para solicitar autorização para acompanhar uma operação de aneurisma. Ele foi extremamente gentil e disse que ficassem à vontade – e foi relatando o passo a passo da cirurgia, com pormenores. Ao final do procedimento, as estudantes agradeceram a paciência dele. “Fico me perguntando como elas se saíram nas provas, já que foram instruídas não por um neuro, mas por um romancista”, completou, arrancando gargalhadas da plateia.

Quando solicitado pelo mediador a destacar as virtudes que encontra nas obras de Ian, Jennifer não hesitou em apontar o fato de serem histórias convincentes e empolgantes, marcadas por tensão e beleza nas palavras, com cores e ritmos sedutores, além de os livros dele tratarem de uma diversidade ampla de temas, personagens e pontos de vista.

Já o inglês definiu a obra da colega estadunidense como “permeada por realismos e descrições competentes e minuciosas, com rigorosa articulação e concatenação de ideias”.

Instigado também a refletir sobre romances de espionagem – “Serena” escancara essa trama de suspense -, Ian arriscou dizer que muito provavelmente todos os romances de alguma maneira buscam inspiração no trabalho dos espiões, “se considerarmos que temos a consciência de que não podemos revelar tudo de uma só vez, que o trabalho do romancista consiste exatamente em reter informações, para vazá-las lentamente, aos pouquinhos, e nos momentos certos”. Sobre essa estratégia, Jennifer disse que as narrativas de espionagem são arquétipos que conseguem captar a experiência da modernidade. “Temos sempre a sensação de que temos informações secretas, só nossas, e que somos mais importante do que realmente somos”.

A autora do livro ‘A cruel visita do tempo’, ganhador do Pulitzer em 2011, Jennifer Egan, se diz assustada com as novas tecnologias por medo que afastem as pessoas dos livros.

Ao comentar ainda o sucesso e a atração provocados pelos romances de espionagem, que transitam o tempo inteiro pelo mundo dos segredos, em tempos de superexposição midiática e de rompimento de fronteiras entre público e privado graças às redes sociais, a autora estadunidense lembrou de um texto que escreveu para o New York Times sobre a vida on-line de um grupo de adolescentes homossexuais que não tinham se assumido como tal. Aqueles jovens consideravam que o mundo virtual era para eles a vida real, pois era naquele momento e plataforma que podiam ser eles mesmos, sem máscaras. No entanto, eram apenas aparências e representações, simulações, já que na virtualidade também precisavam mentir, eram adultos que se passavam por crianças, homens que se diziam mulheres. Era um paradoxo impressionante. “Para os adolescentes, era mesmo um universo de abertura e de liberdade. Mas tudo aquilo era falso. O grupo criou uma série de personagens. Tínhamos algo muito próximo do romance”, recordou Jennifer.

Já no final do debate, alguém na plateia perguntou se os autores tinham prazer em manipular seus leitores – as idas e vindas nas narrativas dos dois são uma constante. “Claro, com certeza, é o maior prazer que tenho na vida. Mas não é um prazer sádico. Pensem em quando estamos pescando trutas. Quando conseguimos segurá-las, é comum fazer cócegas nas guelras delas, quando elas entram numa espécie de transe, e a pesca se concretiza. Essa é uma analogia possível para a relação que estabeleço com meus leitores”, respondeu Ian. Para Jennifer, todo bom romancista é, por definição e recusando o sentido pejorativo da palavra, um manipulador.

“Você vai conduzindo o leitor pela mão. A questão é: com que objetivo? Se for para oferecer uma surpresa fantástica ao final, vale a pena. É aceitável. Desejável. As surpresas são maravilhosas. Eu as adoro”.

Houve ainda tempo para que o mediador perguntasse sobre a expectativa dos autores em relação ao Prêmio Nobel. Jennifer soltou uma sonora gargalhada e disse que está bastante satisfeita, mesmo sem o reconhecimento da Academia Sueca. Ian disse que é preciso lembrar de outros autores que também não ganharam o Nobel, como James Joyce e Franz Kafka. “Estamos muito bem acompanhados”, finalizou.

*Fotos: Walter Craveiro/Divulgação FLIP

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