Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
A câmera estrategicamente colocada flagra uma cena curiosa. Enquanto a professora explica algum assunto e registra as anotações na lousa, uma criança sentada mais ao fundo da classe folheia sorrateiramente uma revista. A distração, que em outras situações faria a educadora parar a aula e chamar a atenção do aluno, provoca satisfação na mestra. Afinal, a revista que o estudante lê de forma tão entretida e interessada é uma edição de Ciência Hoje das Crianças, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que divulga de maneira lúdica e compreensível, sem perder o rigor conceitual, os avanços e os encantos da ciência e da tecnologia para o público juvenil.
A revista não chegou às mãos pequenas à toa – ao contrário, percorreu caminho consciente e intencional até pousar ali. A responsável por promover esse encontro foi a pedagoga Sheyla Alves, professora do Departamento de Biodiversidade e Meio Ambiente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que pesquisou em seu doutorado, feito na Universidade de São Paulo (USP), o uso da Ciência Hoje das Crianças nas aulas de ciências numa escola pública na periferia de Belo Horizonte/MG.
“A gente encontrou uma professora incrível, que adorava lecionar e aceitou o desafio de introduzir a revista em suas aulas para meninos e meninas de 9 anos”, explica Sheyla. A primeira resistência estava quebrada. A segunda – e bem mais difícil – viria a seguir. Enquanto a educadora responsável pela turma selecionada ia adaptando seu plano de aulas ao conteúdo da publicação, a pesquisadora começou a traçar o perfil da relação entre as escolas e a revista editada pela SBPC. Ficou preocupada porque constatou que, embora 60% da produção da Ciência Hoje das Crianças seja bancada pelo Ministério da Educação, que compra e distribui a revista para a maioria das escolas públicas, 90% das crianças não conhecia a publicação. Nunca a tinha visto na biblioteca.
“Provavelmente porque as escolas ganham as coleções e guardam fora do alcance das crianças, talvez para preservar, talvez porque não haja instrução para uso pelos professores ou pelas crianças”, propõe a professora da UFOP. A solução foi entregar os periódicos para a professora parceria e distribuir vários exemplares para os alunos e alunas, que podiam manipular a revista na aula, sob orientação da educadora, e levar para casa para ler sempre que tivessem vontade.
Antes do projeto, as aulas eram baseadas em textos digitados pela professora, além de
questionários. Depois do contato com a pesquisadora, a educadora da escola pública de BH passou a trabalhar as matérias da revista como suporte para os conteúdos que deviam ser trabalhados em sala. Para começar, ela explicou o “funcionamento” de uma revista: a capa, o índice, as manchetes, as legendas das fotos, etc… Na sequência, as pequenas reportagens e notas começaram a substituir os textos datilografados. E os resultados começaram a saltar aos olhos.
“Primeiro as crianças começaram a ler. Não gravamos em vídeo as aulas antes da pesquisa, mas temos os relatos que revelam que nem sempre os alunos liam os textos oferecidos pela professora”, conta Sheyla. Ler a revista tirou as crianças de uma condição de passividade no aprendizado e começou a fermentar dúvidas nas cabeças dos aprendizes. O caso do pescoço da girafa é um bom exemplo. A classe tinha de estudar, entender e discutir por que o pescoço da girafa era daquele tamanho. Depois de ler a reportagem, um dos estudantes disse que não estava entendendo, que não compreendia. Seguiu-se uma discussão entre os alunos, a professora mostrou um filme, conversaram mais e, por fim, voltaram ao texto, para finalmente compreender os caminhos da seleção natural, da evolução das espécies, das adaptações ao meio e das artimanhas da natureza para fazer a vida vingar.
A autora da tese destaca especificamente o papel da pergunta e da hipótese. “As crianças não questionavam os textos de ciências que recebiam antes. Aceitavam”. Quando foram apresentadas à Ciência Hoje das Crianças e começaram a trabalhar o texto científico, passaram a ter força e coragem para perguntar e entraram, sem saber, no fantástico universo do método científico, que segue uma linha rígida, mas que garante resultados convincentes, aceitáveis. “Então o assunto era proposto em sala, as crianças levavam a revista para casa para ler quando quisessem, se interessavam e faziam um relato da leitura na classe”, ensina a pesquisadora.
“Do relato nascem perguntas e as hipóteses, que pertencem ao método científico. Algumas crianças avançaram muito na proposição de hipóteses, que é um resultado empolgante”, continua Sheyla. Houve situações em que até comeram o resultado da experiência…
A pesquisadora se refere ao experimento do pão, proposto pela professora de classe. Havia um texto sobre a feitura de pães numa das páginas da Ciência Hoje das Crianças e a educadora aproveitou para explicar a fermentação, que constituía o conteúdo regular daquela série. O primeiro desafio sugerido aos jovens cientistas era encaminhar explicações para a presença de um texto sobre pão numa revista de ciência. Depois da leitura, da conversa e de várias hipóteses, finalmente os meninos aprenderam que a fermentação é um processo químico resultante da ação de fungos, que consumiam a matéria orgânica e liberavam oxigênio na massa, fazendo-a crescer. E foram testar a explicação fazendo pão. Todos botaram a mão na massa, esperaram ela crescer, levaram ao forno e comeram e levaram para casa para dividir com os pais e com os irmãos os frutos da experiência.
Encantamento e responsabilidade
Distante cerca de 700 quilômetros daquela escola de periferia em Belo Horizonte, um professor de Física de São Paulo capital também trabalha experiências com os alunos, “pelo menos uma por aula”, diz Adalberto Anderlini, “o que ajuda a realizar o que estamos estudando, mas ainda não é suficiente”, reconhece. Na Escola Waldorf São Paulo, onde dá aulas, para aproximar adolescentes da ciência – e, junto com isso, oferecer o encantamento e cobrar a responsabilidade com a sociedade –, Anderlini propôs a leitura de livros de ficção científica.
“Eu já era leitor e, incentivado por professores do ensino médio, comecei a gostar mais e mais de ficção científica”, lembra. Durante a pesquisa para o mestrado, feito também na Universidade de São Paulo, ele começou a perceber que esse gênero da literatura poderia ser uma ponte não apenas para a sua disciplina, mas para a ciência como um todo. “A sedução da narrativa convida ao mergulho e, depois, o método e os caminhos científicos estão todos ali”, ensina.
De imediato, a ideia do pesquisador era romper a resistência e minar o discurso de que Física, Química e Ciências são difíceis de aprender e impossíveis de gostar. Mas logo que o estudo se aprofundou, ele descobriu algo mais: “Não é só sedução, a ficção científica não é só um truque. Ela pode ser um elemento importante na compreensão da relação da ciência com a sociedade, como uma toca a outra e como nossa percepção é mediada pela ciência e pela tecnologia”. E foi isso que Anderlini desenvolveu na sua dissertação.
Lendo A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, ou Eu, robô, de Isaac Asimov, ou O guia do mochileiro das galáxias, de Douglas Adams, ou ainda Duna, de Frank Herbert, os estudantes do 9º ano do Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio se deparam com situações que foram provocadas, ou podem ser explicadas, pelo avanço da ciência e da tecnologia. De um modo geral, as explicações científicas presentes nas histórias fazem sentido, são plausíveis e, ainda que não sejam reais, seguem o método científico.
Arrebatados pelo enredo, os jovens são desafiados a encontrar a ciência ali presente e, ao encontrar, discutir com os colegas e o professor como os acontecimentos científicos tocaram aquela sociedade e aqueles personagens. Daí para um paralelo com nosso mundo real é um pulo. “O que mais traz satisfação é ver os alunos descobrindo que a ciência media o entendimento que temos do mundo”, comemora. Eles acham fácil se comunicar com alguém na Nova Zelândia, acham que a água chega quase naturalmente em casa, que queimar combustível fóssil para atravessar 100 quilômetros em uma hora é perfeitamente normal. Mas, lembra o pesquisador, nada disso seria possível sem o avanço da ciência e da técnica.
A chave que une os dois projetos é a leitura. Seja um texto jornalístico, seja literatura, garantir que o aluno leia, compreenda e traga para a sua vida os conceitos ali trabalhados é o passo fundamental. Imediatamente depois vem a alfabetização para a ciência. “Entender que a ciência é uma maneira de explorar e entender o mundo é a melhor forma de aproximar essa construção humana das crianças e dos jovens, que são naturalmente cientistas”, sugere Sheyla, professora da Universidade Federal de Ouro Preto. E se o encantamento pelo mundo é decisivo para não deixar o cientista que existe potencialmente em cada estudante fenecer, também “apenas o encantamento não basta, porque ele sozinho cega o encantado”, alerta Anderlini, professor de física da Escola Waldorf São Paulo.
Ele completa: “a ciência ensina que é preciso buscar as razões, as explicações e pegar tudo isso e transformar em proposta de avanço de conhecimento ou de tecnologia”. Por fim, o “x” da equação que se deve perseguir com entusiasmo e determinação é a apropriação por parte do aluno e do professor do discurso, das hipóteses de explicação do mundo e das perguntas ainda não respondidas, exatamente como vêm fazendo as crianças e os adolescentes que motivaram as pesquisas aqui relacionadas