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O capitalismo, em seu estágio ultraneoliberal, é o grande responsável pela crise econômica que o planeta atravessa em tempos atuais. O que a pandemia do coronavírus faz é aprofundar as contradições e jogar luz sobre possíveis alternativas e resistências ao sistema. Essas são algumas das ideias centrais apresentadas pelo jurista Alysson Leandro Mascaro no ensaio digital “Crise e pandemia”, lançado recentemente pela Editora Boitempo.  Inspirado pelo pensamento do filósofo marxista Ernst Bloch, o autor sugere justamente que, para além dos dogmas ditados pelos defensores do “Estado mínimo”, fermenta uma reação ainda não experimentada, baseada na imperiosa vontade de uma vida diferente, mais justa e igualitária. “O capitalismo como conhecemos hoje carrega consigo as chaves para esperança, para a emergência de vozes que não podem mais ser exploradas”, reforça Mascaro, também pesquisador em Filosofia e Teoria Geral do Direito e professor da Universidade de São Paulo (USP). A revista Giz conversou com ele com exclusividade.


A pandemia do novo coronavírus está oferecendo ao mundo, ao menos em tese, uma oportunidade de repensar e refundar algumas escolhas e caminhos sociais, econômicos e políticos. Nesse novo trabalho e ensaio, o senhor propõe justamente uma maneira de encarar tudo isso. Poderia explicar para o leitor da Giz que olhar é esse?

O e-book “Crise e Pandemia” é um prolongamento revisitado de outro livro que escrevi, “Crise e Golpe”, também publicado pela Boitempo. Já nele procuro entender algumas questões trazidas pelo capitalismo em seu atual estágio, o neoliberalismo. As contradições que se apresentavam ainda antes da pandemia se escancaram agora e permitem então que possamos nos debruçar sobre elas. O que quero dizer é que a crise do capitalismo que estamos vendo não se deve ao coronavírus, vem de antes, mas se potencializa sob as necessidades que a ação contra a doença coloca. No caso do Brasil, estamos vendo a ascensão de um governo de ultradireita, inoperante, privatista e que defende o desmonte de qualquer traço do Estado de bem-estar social. Já vínhamos nesse tom há cerca de dois anos, mas as mudanças se aprofundaram sob o atual governo e, ainda mais, sob a pandemia. O capitalismo ultraneoliberal fez aumentar a pobreza, o desemprego e a queda da qualidade de vida. E a pandemia piorou isso. A grande questão que proponho tanto no “Crise e Golpe” quanto em “Crise e Pandemia” é que as crises não se resolvem dentro do sistema, com os elementos do próprio sistema. É preciso uma junção de fatores que, em determinado momento, possam romper essa lógica e oferecer uma saída.

É o que o senhor chama de hipótese da esperança?

Exatamente. Desde minha pesquisa de livre-docência, venho estudando o pensamento do filósofo alemão Ernst Bloch, que propõe exatamente essa hipótese da esperança. É chamada assim porque se trata de um arcabouço ideológico que reúne necessidades, vontades e percepções das pessoas que sugerem que, como está, não dá para continuar. A esperança reside na ideia de que a voz dos que, hoje, são massacrados há de se levantar contra o sistema que os oprime, a despeito das instituições, dos valores e da organização capitalista como conhecemos.

Uma hipótese e alternativa para superar a hegemonia do capitalismo ultraneoliberal?

Há duas vozes reverberando contemporaneamente: a voz do capital, que organiza o mundo como o conhecemos, com seus valores e instituições, e a voz dos que são explorados para que o sistema se mantenha exatamente assim. Acontece que essa primeira forma de organização já deu sucessivas provas de que não é a melhor, já que exclui a maioria absoluta da população mundial do mínimo necessário para viver. Não há só pobres e ricos, há miseráveis e excluídos de todas as formas. O que Bloch sugere e que talvez estejamos podendo ver agora é que as condições objetivas trazidas pela pandemia podem balançar essa estrutura.

Ainda é possível falar num projeto socialista?

Se pensarmos que a maior parte da riqueza do mundo está concentrada nas mãos de 1% da população global e que isso, por si só, já é insustentável, é possível sim dizer que, apesar de perseguido e combatido de todas as formas, o socialismo é ainda a voz da oposição ao capitalismo. Acontece que o capitalismo é muito eficaz no discurso e na prática e na venda de ideias e soluções que chegam a parecer naturais, perfeitas. Não são. Os 90% de explorados e – atualmente – massacrados pelo capitalismo e pela pandemia têm voz e têm lugar no mundo.

E o que impedeque esses oprimidos, os pobres, os trabalhadores, possam construir nova maneira de organizar a sociedade e a economia?

Essa é uma pergunta central em “Crise e Pandemia”. O mundo capitalista, como eu disse, é muito eficaz em vender um modo de vida, uma ideologia, que parece muito natural e único. Quando a sociedade se organizou a partir de relações de compra e venda, quem não tem produtos a vender, vende a própria força de trabalho. Os aparatos de convencimento das pessoas para essa finalidade são muito fortes e eficientes. A família, desde muitas gerações para trás, ensina a cada cidadão que a vida é assim mesmo, há empregados e patrões, capitalistas e trabalhadores, e que o certo é aceitar e seguir alugando sua força de trabalho para sobreviver. A escola reproduz esse valor, educando para o mundo do trabalho, doutrinando para um modelo em que uns têm capital e outros têm juízo para obedecer e seguir em frente. A religião também tem um papel fundamental. A prova de que Deus está gostando de sua atuação é a vida econômica equilibrada. A busca pela sobrevivência nos moldes como conhecemos agradaria ao Deus, católico ou evangélico, não faz diferença. As igrejas pregam o conformismo, o apaziguamento dos embates, não questionar o sistema. Por fim, os meios de comunicação de massa sempre defenderam o capital. Em tempos de pandemia, mesmo quando alguns veículos atacam a atuação do governo, a economia, o modelo econômico é poupado e até estimulado. Bate-se no presidente, mas não em seu ministro da Economia.

Com tanta pressão, os trabalhadores não se levantam – ao menos não o suficiente para encaminhar um projeto contra-hegemônico.

Ou se levantam apenas em causa própria, como nos casos de empreendedorismo. O discurso do empreendedorismo e da meritocracia – faça por merecer e você será recompensado – também costura todos os anteriores e ficou muito forte em todas as instâncias desde o fim dos anos 1990. É difícil pensar em se opor a tudo isso – mesmo que falte comida ou remédio – quando o mecanismo é tão complexo e as ideias são inculcadas assim.

Ainda assim… o senhor defende que sobrevive uma esperança?

Sim, a crise atual do capitalismo é gerada por sua forma de atuação e expressão. A pandemia ilumina e potencializa a percepção dessas contradições, da impossibilidade de existência sob esses valores. A hipótese da esperança sugere que a imperiosa vontade de mudar, de “como está não dá para ser” um dia se afirma. A ideia que temos de esperança pode ser vaga e idealista, de forma que não caberia numa realidade tão dura como a que vemos hoje. No entanto, as pessoas continuam sendo exploradas, as formas de resistência existem e persistem, há sempre pontos de atrito, que liberam fagulhas, porque a conta não fecha e o sistema capitalista continua não entregando o que promete. Somos 8,5 bilhões de pessoas no planeta Terra e, dessas, 8 bilhões são explorados. Não controlamos tudo na vida, por isso, com as circunstâncias certas, haverá um chacoalhão e a vida terá de se organizar de outra forma.

A pandemia carrega esse potencial de reflexão e de inflexão?

Não sabemos, é impossível prever. Utopicamente, pode ser sim. Talvez não tenhamos as armas para fazer explodir a realidade. Mas, talvez, a soma dos desesperos cotidianos – superando o discurso da igreja, da escola, dos meios de comunicação e da família – faça a diferença na tomada de consciência. Existe um caminho a ser percorrido que é fazer chegar a voz da esperança às pontas. Não é fácil diante do discurso reacionário que se instalou sobre o Brasil e outros países nos últimos dez anos, talvez. Um discurso que menospreza a ciência, a educação, que cala professores – por censura prévia ou autocensura -, que demite, humilha e desaconselha o pensamento crítico e a troca de conhecimentos de todas as naturezas. São tempos reacionários. Mas o que temos observado é que o cristal quebrou, o discurso do paraíso que elimina Estadoe direitos sociais já não é totalmente digno de confiança por parte da população.

O senhor avalia então que a pandemia poderia impulsionar essa tomada de consciência crítica?

Já podemos dizer que a crença na ciência, na razão, num projeto nacional e na necessidade de alguma distribuição de dinheiro está em retomada. Em parte, por conta da pandemia. Há também certo orgulho por resistir, por não se entregar. O combate à covid-19 parece ter essas características. Parece que tudo está igual, mas, na verdade, o mundo está se movendo. Ainda não é possível dizer que a pandemia será esse trampolim para a esperança, mas é tudo tão horrível que nos faz pensar. O presente está mostrando que a jornada contra a ciência, contra a educação, contra a saúde e contra os direitos não será mais cabível nesse tempo.

No e-book “Crise e Pandemia”, o senhor propõe etapas de travessia à crise. Em que ponto estamos hoje e quais seriam os próximos passos?

Entendo que estamos na chamada primeira fase e não é possível ainda dizer como e se ela se resolve mais adiante. No entanto, dá para reconhecer uma primeira fase do luto, como uma negação. Na sequência, em geral, o capitalismo se move. Vai parecer que é para salvar a população, que está muito prejudicada, mas – realmente – é para salvar o próprio capital. Sem população não há consumo e sem consumo não há capitalismo. A seguir, o Estado se move, propõe medidas de bem-estar social e retomada de alguns direitos. Essa, ao menos, é a tendência que estamos vendo no mundo. Acontece que, se a ação for pontual demais, a população continuará miserável e a pressão sobre o capital vai aumentar, porque o problema não estará sendo solucionado. Ou seja, o capitalismo criou essa crise e não tem as ferramentas para saná-la, já que ele é o próprio produtor dessas contradições. Imagino que o planeta vá assistir um ano de luta e crise econômica, com quebradeiras e rupturas na bolsa de valores. Mas veremos também o crescimento e ação de uma energia transformadora, que aponta para algo novo, que ainda não conhecemos. Mas já esperamos.

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