Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No dia 11 de setembro último, o Ministério da Educação fez questão de, com muito alarde e em tom de comemoração, anunciar que estava retomando cerca de três mil bolsas de pesquisas que haviam sido cortadas pelo governo federal. Em meio a um cenário violentíssimo de cerco e ataques à produção de conhecimento – 84 mil auxílios para pesquisa foram ou serão cortados nos próximos meses e instituições como Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) viram seus orçamentos serem reduzidos drasticamente -, a notícia soou, num primeiro momento, como um respiro, ainda que bem suave.
Durou pouco, foi apenas sonho de uma noite de inverno, e a verdade rapidamente veio à tona. As 3.182 bolsas que a Capes estava liberando não eram benefícios novos. Havia no anúncio do ministro um malabarismo de discurso. O pesquisador Eduardo Sterzi, doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador de um programa de pós-graduação na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), cravou, na página dele no facebook: “Alô, jornalistas: não caiam nessa história da Capes de que estão sendo liberadas 3182 bolsas NOVAS. Falo como coordenador de um programa com nota máxima que, se a notícia for verdadeira, terá todas as suas bolsas preservadas. Não há nada de novo nessas bolsas. São bolsas com que os programas de pós já contam há anos. Na verdade, a notícia deveria ser que, das mais de 11 mil bolsas bloqueadas, APENAS 3182 foram liberadas – e que o critério para liberá-las, a partir das notas alcançadas pelos programas na avaliação quadrienal, pode significar o fim de programas em consolidação, ao mesmo tempo que amplia o fosso que separa programas mais recentes de programas já consolidados, programas de universidades menores de programas de universidades maiores”.
A situação é, portanto, dramática. Diante de um projeto de ataques orquestrados e de desmanche sem precedentes do universo da ciência e tecnologia, que praticamente inviabiliza qualquer perspectiva de soberania ou de ideia de projeto nacional, a reportagem da revista Giz conversou com exclusividade com o físico Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e reconhecido divulgador de ciência, Moreira se diz indignado com o tratamento dado à área pelo atual governo e garante que a comunidade científica do país está firme e atuante, contando com o apoio da população brasileira para defender a ciência, o livre pensar e garantir que o país continue avançando e produzindo conhecimento.
Os melhores trechos dessa conversa, você pode acompanhar a seguir.
O que é possível dizer, mais precisamente, a respeito do orçamento e financiamento da Ciência no Brasil neste momento?
O que vivemos agora é uma redução drástica e brutal dos valores destinados à Ciência no Brasil. Não é apenas o contingenciamento no Ministério da Ciência e Tecnologia, mas uma redução tão ampla que afetará também a Educação, inclusive nos ciclos básicos. Esses cortes, esta situação, não são de hoje. Vêm desde 2014. De 1998 a 2013, o país viu aumentar em termos reais os valores destinados a todo o sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento. A cada ano, o orçamento era mais e mais fomentado, de forma que entendíamos que seria uma ascendente. O que aconteceu, no entanto, foi o oposto. Em 2014, o valor começou a cair. De 2015 a 2019, foi terrível e 2020 promete ser catastrófico. O valor destinado à ciência, se nada mudar, é de um terço daquilo que foi aplicado há 10 anos.
Quem está sendo direta e indiretamente afetado por esse cerco, professor?
No primeiro momento, o próprio Ministério da Ciência e Tecnologia, que vê as verbas destinadas minguarem. Ato contínuo, os institutos de pesquisa – que dependem fundamentalmente de verbas federais -, as universidades, onde se realiza a maior parte da pesquisa do Brasil, e instituições como a Embrapa, a Fiocruz e os órgãos de fomento à pesquisa. Talvez, nessa cadeia, o que a gente sinta primeiro seja o corte drástico nas três agências de fomento nacionais: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). É importante ressaltar que, sob o guarda-chuva de cada uma dessas instituições, há uma série de outras que já estão sendo impactadas. Pensamos sempre primeiro nas bolsas que não serão pagas ou não serão atribuídas, mas não é só isso. O CNPq, por exemplo, cuida fundamentalmente de pesquisa básica, mas também é responsável pelos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que são a ponta da ciência, o que há de mais avançado é feito ali. A Capes apoia o ensino superior, mas também a educação básica, estão sob os cuidados da coordenação projetos que relacionam escolas de ensino fundamental e médio ao ensino superior, além da formação de professores. A Finep é responsável pela estrutura mesmo e pelos subsídios econômicos. Explico tudo isso para mostrar o tamanho do impacto dessas medidas.
O que move esse cerco e estrangulamento patrocinados pelo governo federal?
Trata-se de uma visão estreita. O atual governo não consegue ver a ciência e a tecnologia como investimentos, não admite que, para sair da crise, é essencial investir na produção científica. Foi exatamente essa postura – apostar na ciência – que fez grandes países saírem de situações econômicas bem complicadas. É o caso da Coreia, da China e até da Alemanha. Mas o atual governo não enxerga assim. É uma visão economicista e muito, muito refratária. Não ouve os especialistas, não debate abertamente com a população. Aliás, o atual governo não tem nem um projeto de nação, de redução das desigualdades, de fazer avançar a produção industrial, que vem caindo barbaramente. Não são esses os objetivos do atual Executivo. A única coisa que se prega é o ajuste fiscal através de cortes em investimentos sociais. Ao preterir a educação e a ciência, o governo mata na raiz a chance de sairmos da crise. Veja só os números: em 1995, o PIB do Brasil e da China eram semelhantes. Hoje, o Produto Interno Bruto da China já é o segundo do mundo e ameaça os Estados Unidos. O que a China fez para conseguir isso? Investiu em Ciência, Tecnologia e desenvolvimento industrial. Hoje, o orçamento chinês para essa área é de 49 bilhões de dólares, dez vezes o que o Brasil pretende investir.
O que justifica essas escolhas é também uma visão colonizada de país, versão século XXI?
Uma visão estreita, a ideia de que o Brasil é fornecedor de matéria-prima não industrializada. O modelo que vem sendo adotado não serve à economia do país, serve apenas ao sistema financeiro, aos bancos, que vêm alcançando lucros gigantescos e ainda mais assombrosos se comparado a outros setores. A taxa de desindustrialização é crescente e preocupante, mas o lucro de banqueiros e rentistas não para de crescer. O curioso e cruel é que o que fez o Brasil se tornar uma potência da agricultura – principalmente da agricultura tropical – foi a Embrapa, à base de muita pesquisa de alta qualidade. O mesmo vale para o petróleo, matéria bruta extraída do pré-sal, ou das outras camadas. Só temos esse patamar de excelência e destaque mundial por conta da pesquisa realizada nas universidades e na própria Petrobras, que foi fruto do esforço dos profissionais da empresa, que convenceram seus superiores da existência de um pré-sal. Ninguém falava disso. O mesmo vale para as pesquisas e o combate ao zika vírus. Só foi possível evitar milhares de mortes e de outras complicações em milhares de pessoas porque os laboratórios estavam conectados e agiram muito rapidamente. Milhares de vidas foram poupadas.
Nessa batalha, como fazer a sociedade notar os impactos positivos que a ciência promove?
Existe mesmo algo que não é percebido. E não é por falta de esforço da comunidade científica, mas as notícias demoram a chegar na ponta e para quem mais interessa. Essa ignorância sobre a ciência é o que permite que a floresta seja derrubada para virar pasto, para criar gado, por exemplo. Se a Amazônia for ainda mais ameaçada, pode entrar numa situação irreversível de colapso, por falta de entendimento do que ela significa. Só cerca de 5% da biodiversidade da floresta amazônica foi estudada e se a população de lá não for ouvida e preservada, perderemos uma chance gigantesca de conhecer o que ainda tem lá.
E, se é assim, a ciência não garante seu lugar de destaque no entendimento e nas conversas cotidianas da sociedade….
Exatamente, o que é produzido através de conhecimento não se sustenta, não se cria. Mas veja, não é uma verdade absoluta. Nas pesquisas de percepção da ciência e da atividade científica, a elite diz que a ciência impacta pouco ou nada, é quem diz não à ciência. Quem faz ciência, ou quem é beneficiado por ela, percebe sim os benefícios e avanços e deseja que os investimentos continuem. Não é possível, assim, cortar 300 milhões de reais do CNPq e deixar 84 mil bolsistas sem auxílio. E, numa situação dessas, ninguém levanta uma discussão plausível que seria rever os critérios de pagamento da dívida pública. Nunca se pensa nisso. A política atual é lesiva com a nação, lesiva com o meio ambiente.
Trata-se de um projeto amplo de destruição do país, que faz da Ciência também uma vítima prioritária?
A elite desse país não tem projeto de nação. O Brasil fica, então, sem projeto nacional. Diante disso, a sociedade civil só se mobiliza em causas corporativas. Não é que não deva se reunir ou brigar por suas causas. Mas quando não temos um projeto nacional, acabamos atuando só no pontual.
Não é difícil apontar que, quando investimentos em ciência são cortados, o país encolhe junto…
Nos anos 1950 e 1960, e logo depois, durante a ditadura, aconteceu algo semelhante na Argentina. E o que houve? Decaiu. Decaiu muito. A Argentina fazia uma ciência de alto nível, concorria com países mais avançados, era um exemplo para nós. Decaiu e até hoje não se recuperou. Não voltou a ser uma prioridade nacional lá. E aqui nunca foi. Mas nossa comunidade científica é grande e tem grande capacidade de se adaptar. Já viveu outros apuros e não vai desistir tão facilmente do que conquistou até aqui. Precisamos de projetos grandes e nacionais, mas precisamos batalhar para não perder o que já avançamos.
E o que essa comunidade está concretamente fazendo para evitar o desmantelamento?
Estamos vendo uma mobilização de todos os setores. Cientistas, acadêmicos, professores e profissionais de várias frentes estão mobilizados, porque foram ou serão afetados, seus projetos estão em risco, se essa política catastrófica permanecer. As entidades estão juntas, atuando paralelamente e começando a pressão. Em 25 de setembro, por exemplo, haverá uma marcha de cientistas em direção ao Congresso Nacional para exigir que a ciência nacional seja poupada desse arrocho. Depois, vamos entrar e fazer um ato nas galerias do Congresso. Entidades de variados setores vão marcar posição, vão dizer não ao corte de verbas. Vamos pedir uma alteração no orçamento.
Como está essa relação com o Congresso?
Esse Congresso ainda não fez nada, mas pode fazer. Nos Estados Unidos, aconteceu algo semelhante e o Congresso de lá impediu um corte de verbas para setores considerados prioritários. E nossos parlamentares ainda podem alterar o orçamento. Há uma bancada sensível a essas questões, de vários partidos diferentes, no Senado e na Câmara. É possível dizer que existe uma frente parlamentar mista que defende a ciência e a educação. Não temos votos ainda, mas temos a acolhida. E essa ação, diante de quem pode de fato mudar a realidade, é fundamental. Só com essa mobilização física, corpo a corpo, e não só virtual, aumentamos a chance de convencer os parlamentares e de conter a catástrofe.
Com mais detalhes, o que essa frente está pedindo aos parlamentares?
Não temos a ilusão de que volte a crescer o orçamento para a ciência para patamares de crescimento dos últimos 15 anos, ou para o orçamento de 2013, que foi o melhor. Nesse cenário emergencial, o que queremos é que o orçamento da ciência volte a ser o de 2017, antes de as mudanças serem tão chocantes. E queremos que esse valor vire investimento em ciência, reverta todo para a ciência. Temos três projetos em andamento no âmbito das casas parlamentares: dois projetos de lei que pedem a reversão de 25% do total arrecadado no pré-sal para ciência, tecnologia e inovação. Um projeto que veda o contingenciamento do Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia (FNDCT). E ainda um projeto ligado à PEC 24, que exclui teto de recursos próprios das Universidades.
E em relação ao apoio da sociedade civil?
Contamos muito com isso. Nada será impedido se a sociedade não se posicionar, não encontrar um jeito de boicotar essas medidas que procuram acabar com a ciência de muito boa qualidade que é feita neste país.
Como as pessoas podem ajudar?
Falando, defendendo a ciência, se expondo. Setores da sociedade civil, dos empresários e formadores de opinião, devem vir a público defender a ciência e vociferar contra o desmantelamento do conhecimento. Imagine como seria forte se todos os institutos que fazem pesquisa no Brasil colocassem seus cientistas e professores do lado de fora do prédio, segurando uma enorme faixa, com os dizeres “repudiamos o corte de verbas para a ciência”. Ou, ainda, “sem ciência não tem futuro”. O custo é baixo, mas o impacto nas redes sociais é gigante. Outra ideia é aproveitar todos os eventos ligados à ciência, à tecnologia ou à educação para lembrar os ataques que essas áreas estão sofrendo, basta expor a situação real, o contingenciamento. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) iniciou uma campanha para estimular pesquisadores a postarem vídeos de 1 minuto respondendo “para que ciência?”. Além da marcha em Brasília, estamos conclamando a sociedade a se mexer e defender a ciência deste país. Não podemos ficar quietos.