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Educação

Educação e (é) resistência

By 17/07/2019No Comments

Organizado por Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC, e lançado recentemente, Educação contra Barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar é – antes de tudo – um livro corajoso. A obra, publicada pela Editora Boitempo, reúne reflexões e experiências que encaram de frente e de forma franca, sem receios ou meias-palavras, questões contemporâneas fundamentais do universo educacional, como financiamento e ingerências no ensino público, educação a distância e seus beneficiados, ideologia de gênero e a lei da mordaça que pretende censurar professores. Cássio conversou com a Giz ainda no embalo das manifestações que sacudiram o país no mês de maio, comemorando o fato de a educação impor-se como prioridade da agenda política nacional. “Não parece coincidência, porque há algum tempo estamos notando a urgência do tema. O que fizemos foi juntar autores e pensadores de várias linhas que, primeiro, apontam as dificuldades que passamos hoje no campo da educação e, depois, procuram sugerir saídas e alternativas para os dilemas. A linguagem é direta e o conteúdo é sério, rigoroso. Nosso objetivo é oferecer um material de intervenção mesmo, pensar e agir, amparados no bom debate”, explica o organizador da coletânea.

Ele lembra que o livro nasceu a partir de um capítulo escrito pelo sociólogo Fernando Penna, professor da Universidade Federal Fluminense, na obra Ódio como política (organizada pela socióloga Esther Solano e também publicada faz pouco tempo pela Boitempo). “Era um texto sobre o famigerado Escola sem Partido, escrito no calor das eleições de 2018, e que já desvelava como o atual governo encaminharia a questão da educação numa eventual vitória. Ali, nós percebemos que uma obra de debate franco e de intervenção seria fundamental”. O projeto de extrema direita que despontava no pleito e sairia vencedor nas urnas tinha recados muito claros sendo passados, vociferando intolerâncias e perseguições. Era preciso, na percepção do pesquisador, resgatar e reforçar também uma narrativa alternativa humanista e civilizatória, para enfrentar esse debate. “O direito à educação está na Constituição, mas não sai das páginas dela e é sempre solapado pelo ideário dos empresários, fica sempre muito distante mesmo da realidade das escolas brasileiras”, provoca.

Cássio, então, selecionou autores e pensamentos que explicassem bem – refletindo e problematizando – aquele projeto defendido pelos empresários e pela linha homogênea no país. “É o projeto da direita, que tem posições claras, como a revisão científica e histórica, além de homogeneizar conteúdos e formatos, visando resultados mensuráveis e eficiência”. A escolha da palavra “barbárie” para o título da obra une-se justamente a esta posição, já que, segundo Theodor Adorno, que dá a epígrafe do livro, há, além da barbárie da violência explícita, uma outra, mais pérfida e camuflada, que coloca as pessoas numa condição de hiper individualismo, hiper competição, condição muito estimulada pela gestão empresarial da educação. O livro organizado pelo professor da Federal do ABC dá nomes às organizações e seus administradores, a quem chama de “inimigos da educação no Brasil”, e, em vários artigos, aponta o que elas fazem, com quem andam e, principalmente, os prejuízos que trazem à educação dos brasileiros.

Por essa razão, o primeiro bloco de Educação contra Barbárie chama-se, justamente, “Barbárie gerencial” e trata desse modus operandi que parece mais simpático, é sedutor, travestido de democrático e supostamente afeito ao diálogo, mas que “na verdade, é nefasto à educação no Brasil, porque trabalha para manter estruturas de desigualdade social já muito entranhadas na nossa história e na nossa sociedade”. Segundo Cássio, esses institutos e fundações empresariais lidam de maneira mentirosa – ou superficial – com os indicadores. “O que buscam mesmo é gerenciar a educação dos mais pobres, mas sem nunca tocar nas questões estruturais que colocam nossa educação num lugar tão maltratado: infraestrutura, salários, objetivos, conteúdos”. É, na visão dos autores, uma barbárie que vem de fora para dentro e se aproxima da vida escolar por meio das planilhas e da desumanização das relações. Nessa perspectiva, não é de se estranhar que as notícias de educação apareçam, hoje, mais na imprensa que cobre economia, negócios e investimentos.

A segunda parte do livro trata de uma barbárie que, ao contrário do primeiro cenário, nasce dentro da própria escola ou do ambiente educativo. “Ficou muito à vista na última eleição e algumas das bandeiras dessa forma de ação e pensamento fizeram parte da campanha do presidente Bolsonaro, mas elas não nasceram ali”, explica e segue o professor da UFABC. “São as guerras culturais, de discurso e da ideia de escola, e aparecem para a sociedade como ‘escola sem partido’, militarismo, ideologia de gênero, revisionismo, ensino domiciliar e religião que cega”, aponta. Os capítulos da obra são claros em demonstrar que existe na barbárie que vem de dentro um projeto político de destruição da escola, do conhecimento e da construção racional do saber. “Contra isso é mais fácil lutar e se posicionar, porque é claro e transparente. Diferente da barbárie gerencial, que é um falso amigo”, explicita Cássio.

Assentar as origens das linhas mais conservadoras pode, segundo o organizador, ajudar o leitor a entender a disputa pedagógica – via narrativas sobre a educação – que está posta. Conhecer cada linha, entender como favorecem o projeto político do atual governo é uma boa estratégia para se posicionar e compreender o jogo que vem sendo jogado. “A melhor maneira de combater o ultraliberalismo e a ultradireita é estando munido de argumentos sólidos e da crítica bem amparada”, assegura.

Ao lado dessas duas ferramentas, está o conhecimento a respeito do que já está acontecendo como caminho possível para uma educação que liberta da barbárie. Esta é a terceira parte da obra. Curiosamente, talvez nela estejam as ideias menos conhecidas, porque raramente ocupam o debate. “Como os projetos da ala mais democrática andaram ausentes da cena pública, a primeira tarefa do livro foi buscar reconstituir um ambiente de reflexões variadas, sobre muitas questões, variados pontos de vista”, explica o organizador. De fato, logo no prefácio de Educação contra Barbárie, Fernando Haddad, ex-ministro da Educação do governo Lula e candidato a presidente no ano passado, propõe que as ideias apresentadas nos artigos são tão diversas que “contando com autores que dedicaram a vida à causa educacional e que se debruçaram sobre alguns dos temas que têm despertado as maiores angústias, temos neste livro um conjunto de reflexões que promovem juízo crítico sobre o rumo dos acontecimentos no nosso país. Não é preciso concordar com todas as teses aqui apresentadas. Não apostaria sequer na hipótese de os autores concordarem entre si sobre os pormenores dos textos aqui apresentados. O que decididamente importa é o sentido do trabalho: negar ou, ao menos, problematizar o que vem sendo anunciado pelo atual governo. Impedir os retrocessos. E, se possível, organizar uma agenda de reivindicações para um setor que se encontra paralisado, entre incrédulo e estupefato, com anúncios diários de medidas sem nexo”, escreve, colocando o debate sobre a educação novamente no centro do palco.

As grandes manifestações acontecidas em 15 de maio e em 30 de maio, no Brasil todo, também voltaram a destacar na agenda nacional a defesa da educação pública, libertadora e democrática. “Os manifestantes apresentaram um pedido eloquente de respeito pela educação. Isso ficou evidente”, defende Cássio. Reforçando esse diálogo, o último terço do livro traz algumas respostas para essas aspirações e também materializa algumas aflições que parecem ainda não ter nome nem figura. No balanço final, tentando costurar qual é, na essência, o projeto de educação que os pensadores reunidos no livro oferecem, Cássio é assertivo: primeiro, quem reflete sobre a educação democrática a quer em destaque no debate público. Segundo, os autores sinalizam que há um projeto ultraliberal e de ultradireita em curso e em implantação já, por isso, o projeto de quem se opõe a isso deve ser, nesse momento, “se opor firmemente a qualquer avanço nesse sentido. Resistir à barbárie já é um projeto”, lembra. Por fim, reforça que “a luta pela educação, pelo direito à educação, por aqueles garantidos na Constituição, que sinalizam a escola como lugar de combate às desigualdades sociais e à igualdade de direitos, essa nunca cessa”.

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