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Destaque

Estudante radioativa

By 30/10/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Alice Cunha cursava o colegial técnico em Tecnologia da Informação quando passou a ir com frequência até Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro, para, durante o estágio, prestar assistência aos computadores dos escritórios da Usina Nuclear lá instalada. Ela não chegava a entrar no prédio onde ficam os reatores, avisa. Mas a curiosidade era inevitável: “o que será que tem lá dentro?”. Foi assim que, entre 2008 e 2011, a energia nuclear gerada na cidade litorânea carioca acabou por enfeitiçar a estudante. “A vontade de saber o que acontecia ali, como as coisas funcionavam, me levou a querer prestar Engenharia Nuclear”, conta Alice, que hoje tem 25 anos e está a alguns meses da formatura nesse curso, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A escolha gerou algum espanto em casa, afinal, os pais dela não fizeram nem graduação e não tinham proximidade alguma com energia, física, engenharia. A dupla apoiou, mas ficou ressabiada.

Apesar das desconfianças, a mágica da radioatividade foi mesmo eficiente. “O curso de Engenharia Nuclear não existia aqui no Rio, foi criado em 2010. Um amigo meu que me falou por alto e eu fui atrás. Na verdade, minha primeira opção nem era a UFRJ, eu ia tentar o Instituto de Tecnologia da Aeronáutica, o ITA”, conta Alice. Mas o curso vingou. A Federal do Rio de Janeiro já tinha vasta tradição nos estudos de energia por conta da Pós Graduação em Energia mantida pela Coppe (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, ligado à Federal). E foi no vestibular dessa faculdade que Alice foi aprovada. “Fiquei um ano estudando e entrei na segunda turma do curso”.  Três dias antes das aulas começarem, aconteceu o acidente de Fukushima, no Japão. A usina nuclear daquela cidade foi atingida pelo tsunami que varreu a costa japonesa. O mundo foi tomado por previsões catastróficas relacionadas à radioatividade. “Meus pais que pouco conheciam minha nova carreira ficaram bem preocupados, mas a UFRJ organizou várias aulas e palestras sobre energia nuclear, até para desmentir alguns perigos que estavam alardeando por conta do acidente em Fukushima”, explica Alice.

Passados os sustos iniciais, a estudante começou a frequentar as aulas e, em dois meses, já estava envolvida com a organização de seminários sobre energia nuclear e trabalhando nos laboratórios da universidade. “Foi realmente tudo muito rápido e tudo foi se encaixando muito certinho. É muito incrível, né?”, ainda se surpreende. “Mas foi assim mesmo. Pela tradição em estudos de energia, a UFRJ disponibilizava muitas bolsas de iniciação científica para estudo de energia. Como eram poucos alunos, consegui uma dessas bolsas logo no início”, comemora. A área que primeiro despertou a atenção de Alice Nunes é chamada de termo-hidráulica. Para explicar, se o leitor imaginar que o estudo de energia é uma grande área, a termo-hidráulica é uma sub-área dessa maior. Nela, trabalha-se com engenharia de reatores, pesquisa dinâmica de fluidos, transferência de calor dentro do reator. Sob a termo-hidráulica, há ainda outro campo menor, que é o da física nuclear aplicada, que contribui, por exemplo, para agricultura e para a medicina. Foi exatamente nesse nicho tão específico que a estudante da UFRJ deu o primeiro passo para uma conquista importante que não tardaria: o primeiro lugar na Olimpíada Nuclear Mundial, edição 2015, organizada pela Universidade Nuclear Mundial (WNU, na sigla em inglês) e que foi entregue em Viena, em setembro último.

“É comum os estudantes curtirem as páginas das associações de engenharia nuclear e de energia nuclear. A gente recebe as newsletters e fica sabendo das informações. A Olimpíada Nuclear eu conheci assim, pela página do facebook”, relembra. Para inscrever-se na disputa, era necessário fazer um vídeo de 60 segundos sobre alguma aplicação da área nuclear que não fosse energia e enviar para eles o link. “Achei que dava para encarar no início. Fiz o vídeo e enviei e foi justamente sobre aplicação na medicina. Eu estava passando por isso em casa, minha avó, com câncer, tinha passado por alguns procedimentos e tratamentos diagnósticos nessa área”, explica Alice. A etapa seguinte era mais burocrática: revisão, carta de referência, envio de documentação, até o vídeo ser aceito. Um dos objetivos da competição é justamente divulgar as aplicações da área nuclear, que a gente usa tanto, mas que a população nem sempre percebe. Por isso mesmo, um dos critérios de seleção dos audiovisuais era o alcance de curtidas nas redes sociais. “Eu divulguei muito, coloquei em todas as páginas de associações, grupos de universidades, redes de pesquisas e etc. E eu consegui. Meu vídeo foi o mais curtido. Na época em que recolheram as informações, ele estava com 14 mil curtidas”, diz Alice. E assim, depois de passar pela semi-final, a proposta dela foi para a fase final.

A última parte da Olimpíada foi preparar um trabalho sobre radioisótopos, em texto dessa vez, com referências e todos os requisitos de um artigo científico padrão. O trabalho era uma espécie de passaporte para Viena, na Áustria, onde os concorrentes tinham de apresentar seus projetos para uma plateia cheia de estudantes secundaristas e cientistas renomados da área nuclear. Alice disputava com outros quatro estudantes: dois da Índia, um da Malásia e um das Filipinas. E o desafio maior, segundo ela, é que a apresentação tinha de durar 6 minutos. Nada mais. “O tema era o mesmo para todos e o que os jurados iam avaliar era a capacidade de comunicação e em 6 minutos eles conseguiam avaliar esse quesito”. Alice foi a primeira. Estava nervosa, suando, tremendo, mas foi. “Apresentamos, eles avaliaram e somaram os pontos de todas as etapas. No final, meu trabalho foi o mais pontuado e eu ganhei. No início eram 20 vídeos, cinco trabalhos escritos e eu fiquei em primeiro”. Ela recebeu o prêmio das mãos do diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Yukiya Amano e, como num clichê, jura: não esperava, queria participar, mas não suspeitava que poderia ganhar.

Além de uma evidente conquista pessoal, Alice acredita que a competição traz luzes para a área de energia nuclear, que tem pesquisa de excelência no Brasil, mas precisa de muito apoio para chegar ao nível mundial. “Temos um reator em construção que vai ficar em São Paulo, mas só deve estar pronto em 2021. Ele vai ajudar bem, mas enquanto não fica pronto, ficamos para trás.”, lamenta a estudante.  A parte boa é que a Olimpíada ajuda a atrair talentos. “Achei que era um ótimo projeto para engajar estudantes de diferentes partes do mundo para aprender e divulgar as diferentes aplicações do ‘mundo nuclear’, e eu, claro, quis fazer parte disso”.

De volta ao Brasil, Alice pretende entregar os trabalhos finais e se formar. “A greve dos professores das federais atrasou um pouco os planos, mas em março, se tudo der certo, eu termino”, suspira. Depois, deve seguir estudando termo-hidráulica, mas ainda não sabe se no Brasil ou fora. “Mas também quero trabalhar, aplicar o que aprendi nessa área de energia nuclear e termo-hidráulica”, planeja. Em tempo, para o leitor mais curioso: Alice já conheceu o prédio dos reatores da Usina Nuclear de Angra.

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