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Cultura

As histórias de Tancredo Neves

By 20/03/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Há 30 anos, em 15 de março de 1985, o ex-governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, deveria tomar posse em Brasília. Subiria a rampa do Palácio do Planalto como o primeiro presidente civil eleito (ainda que indiretamente, via Congresso Nacional), depois de longos e duros 21 anos de ditadura civil-militar. No entanto, uma crise aguda de diverticulite levou o futuro presidente a ser internado na véspera da posse, que jamais aconteceu. Tancredo morreu quase 40 dias depois (em 21 de abril) e, em seu lugar, José Sarney, o vice eleito, assumiu a presidência.

Nas três décadas que nos separam desse episódio histórico, talvez o personagem-mor da redemocratização não tivesse ainda sido convenientemente revisitado. No entanto, no início de março, o jornalista José Augusto Ribeiro lançou Tancredo Neves: a noite do destino (Ed. Civilização Brasileira), a primeira biografia do ex-futuro-presidente. O autor trabalhou diretamente com Tancredo, foi seu assessor de imprensa entre o final de 1984 e o início de 1985, justamente quando se deu a campanha para a eleição à presidência.

“Eu já o admirava muito pela maneira como ele conduziu a campanha das Diretas, mas naquele tempo, conheci mais essa figura, que era mesmo admirável”, conta Ribeiro. Quando a campanha acabou, Ribeiro retornou à função de comentarista político, na TV Bandeirantes, “e meu primeiro trabalho foi acompanhar a longa noite de 14 para 15 de março, quando dr. Tancredo foi internado e as discussões a respeito de quem assumiria a presidência começaram”, lembra. A experiência ficaria para sempre marcada nas lembranças do jornalista, mas o trabalho na TV o impedia naquele momento de tocar qualquer projeto paralelo. Assim, mesmo que a história do ex-governador merecesse mais atenção, faltava tempo ao biógrafo para se dedicar à empreitada. O livro foi sendo, então, adiado, mas nunca descartado.

Quando finalmente o tempo apareceu, Ribeiro aceitou o desafio e começou a construir a biografia do presidente eleito que jamais tomou posse, uma aventura literária que durou cerca de 15 anos. “Eu tinha acesso a todo o arquivo da família, me autorizaram a usar. Também tive acesso a todo o arquivo da assessoria de imprensa da campanha. Era muita coisa. Fui à Biblioteca Nacional e levantei muitas informações de períodos anteriores da vida dele”, conta. Em meio aos documentos, fotos e registros históricos, foi redesenhando a trajetória de Tancredo Neves, que foi, antes de tudo um articulador de destaque em momentos de fortes guinadas na história brasileira.

Já em 1954, por exemplo, o mineiro era ministro da Justiça do governo Getúlio Vargas. “Ele era um conselheiro, estava lá no Catete com Getúlio, na reunião do ministério, na véspera do suicídio do presidente”, vai narrando. “Na noite anterior ao suicídio, Tancredo diz ao presidente que poucos homens têm a sorte de ter alguma causa pela qual valha a pena dar a vida e, naquele momento, eles tinham essa causa. Vamos oferecer a vida, ele diz”. Tancredo também esteve à frente de um momento sui generis da história do país. Numa daquelas soluções à brasileira, para evitar uma intervenção militar ou outras atitudes mais drásticas, em 1961, o Brasil passa a ser uma República Parlamentarista. “Jânio Quadros tinha renunciado e João Goulart, o vice, tinha de assumir a presidência. Tomou posse, mas o Congresso aprova o parlamentarismo. Quem foi o primeiro ministro? Tancredo Neves.”

Além dos arquivos de documentos, o jornalista, claro, também lançou mão de entrevistas para compor seu personagem e recontar passagens mais significativas. Ribeiro conversou com familiares, antigos assessores, políticos e personalidades que, de um jeito ou de outro, estiveram ao lado de Tancredo. “Boa parte das entrevistas fiz com o gravador desligado. Aprendi na minha longa experiência como jornalista que, muitas vezes, a fonte só fala o que a gente precisa saber quando o gravador está desligado ou quando não estamos tomando nota. Quando a entrevista é franca, olhos nos olhos, ela flui melhor e oferece muito mais elementos aproveitáveis”, relata o colunista decano. Quando soube que a Revista Giz era dirigida a professores, Ribeiro fez questão de destacar que usou essa técnica de não registrar algumas conversas de propósito. “No mundo acadêmico existe a importância de se registrar tudo. Eu entendo e acho mesmo que tem de ser assim, mas no mundo jornalístico, às vezes, é preciso se valer mais da atenção e da memória para ter histórias mais valorosas para contar”, explica.

A crítica que se seguiu à publicação de Tancredo Neves: a noite do Destino, no entanto, reclama que o livro não foi ´muito feliz no intuito de revelar as múltiplas facetas de um dos personagens-chave do século passado’. O jornalista Lucas Ferraz escreve no jornal Folha de S. Paulo de 8 de março de 2015 que “a trajetória do presidente que não foi é riquíssima. Tancredo foi vereador da sua São João del Rei natal, deputado estadual, federal, ministro da Justiça do último governo de Getúlio Vargas, primeiro-ministro de João Goulart no período parlamentarista, senador e governador de Minas. (…) Apesar das 868 páginas, o livro ignora aspectos da vida pessoal de Tancredo e aborda superficialmente sua formação em Belo Horizonte, entre os anos 20 e 30, quando foi repórter de política e convivia com nomes que mais tarde seriam referências intelectuais e políticas do país”.

Ferraz também aponta que aspectos da vida pessoal do presidente eleito mineiro não são tratados com a devida profundidade, assim como episódios históricos, que ajudariam a revelar o homem por trás da política. “Um dos episódios pouco explorados é a derrota de Tancredo na eleição mineira de 1960. Ele perdeu uma disputa considerada fácil, em parte pela traição de JK, que o preteriu numa disputa paroquial com José Maria Alkmin. O episódio, que acabou resultando na vitória de Magalhães Pinto – considerado depois “o líder civil” do golpe de 1964 – é crucial na carreira de Tancredo, como ele mesmo recordaria. Mas é narrado em só duas páginas no livro”, critica o jornalista da Folha de S. Paulo.

Para além das críticas, o livro retoma passagens memoráveis da trajetória do político mineiro. Num deles, Tancredo, ainda deputado, perde a compostura e a elegância habitual e vai para cima de Moura Andrade, presidente do Senado, que declara vaga a Presidência da República, legitimando o golpe civil militar de 1964. Ribeiro conta que “ele partiu para cima do Moura Andrade, gritando ‘Canalha, canalha!’ e se não fosse o segurança chegar, dr. Tancredo tinha lhe dado um bofetão, justo ele que era tão sereno”. A passagem revela não só um episódio de ruptura dos padrões, como também – e mais importante – a refutação da tese corrente de que o mineiro foi conivente com o golpe ou com a ditadura.

“Os jornalistas chegaram perto e registraram que ele disse – e foi o primeiro a dizer – que estavam entregando o Brasil a pelo menos mais 20 anos de ditadura”, afirma o biógrafo. E completa: “E na eleição para levar Castello Branco à presidência, Tancredo votou contra. Juscelino e Ulisses Guimaraes votaram a favor e não havia mal nisso, porque o partido assim determinara. Mas Tancredo, apesar de ser do mesmo partido, o PSD, se revoltou e foi um dos poucos que não votou em Castello Branco”. Era, portanto, na visão do biógrafo, o oposto de um político acomodado, conformado com a ditadura. Era sim, calmo, pouco contundente e muito elegante no trato com os demais.

Na obra, o período entre 1968 e 1981 oferece poucos casos reveladores da personalidade e da trajetória do político mineiro. Lucas Ferraz, na mesma crítica publicada na Folha de São Paulo, lamenta, por exemplo, a rapidez com que é tratado o frustrado atentado do Riocentro. Na ocasião, a ala da extrema direita dos militares que comandavam a ditadura no Brasil, inconformada com os sinais de abertura que o regime começava a manifestar, arma um atentado a bomba num centro de convenções onde acontecia um show comemorativo ao Dia do Trabalho. Tragédia anunciada. Mas os planos deram errado e a bomba explodiu antes da hora, no carro do sargento e do capitão responsáveis pelo ato terrorista. Como o período é tratado com menos riqueza de detalhes que as décadas de 1950 e 1960, não fica tão evidente a atuação do ex-governador de Minas Gerais em episódios específicos do período.

Numa dinâmica pendular, o momento imediatamente posterior, de 1981 a 1985, é novamente marcado pela forte presença e pelas constantes movimentações de Tancredo Neves. “O pioneiro da campanha das Diretas foi ele. Não sozinho, claro, mas foi o pioneiro. Em São Paulo, tinha o (governador Franco) Montoro , no Rio, tinha o (governador Leonel) Brizola e, no Paraná, o (governador José) Richa. Eram dez ao todo”. O capítulo da biografia que conta sobre essa fase sugere que em 1982, eleito governador de Minas Gerais, Tancredo Neves vai ao então presidente da República, João Baptista Figueiredo, conversar sobre os assuntos relativos ao seu estado, mas aproveita para falar sobre a eleição direta. “Tancredo pediu a Figueiredo que propusesse ao Congresso a volta da eleição direta para Presidente. Esperou alguns meses, falava nisso o tempo todo, até que se convenceu que Figueiredo estava enquadrado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) e pelos órgãos de segurança”, lamenta Ribeiro. De fato, o último general presidente estava tão comprometido com o aparelho repressivo que nada fez em relação ao atentado do Riocentro, que tinha sido bem antes. Diante da acomodação de Figueiredo, o mineiro avisou que a oposição já tinha tido muita paciência e que, naquele momento, iriam para as ruas pedir eleição direta.

Tancredo esteve em todos os comícios da campanha das Diretas Já. O evento de São Paulo teve o maior número absoluto de participantes, mas proporcionalmente à população, foi o comício de Belo Horizonte, terra de Tancredo, que mais mobilizou brasileiros. “Sempre que tinha um comício das Diretas, o Exército era posto em prontidão. Mas ele me contou que foi ao comandante do Exército na região e pediu para não colocar os homens na rua, que a polícia daria conta da ordem pública”, lembra Ribeiro. O comandante era favorável à abertura e concordou em não decretar a prontidão. “No dia seguinte, Dr. Tancredo telefonou para o general e agradeceu, porque tinha recebido os números da criminalidade em Belo Horizonte naquela noite e os níveis tinham caído bruscamente. Brincando com o general, Tancredo disse que até os batedores de carteira e os ladrões de galinha foram para o comício e não quiseram roubar naquela noite”, ri.

A atuação de Tancredo Neves na redemocratização, segundo o biógrafo, coroa o projeto político do mineiro, que sempre esteve disposto a passar por cima de qualquer questão em nome de servir ao Brasil. “Ele conduziu duas transições para a democracia de forma pacífica e altiva, passando por cima da saúde inclusive. Ele achava que devia isso ao país, porque tinha estudado em escolas públicas, faculdade pública, entrou na vida pública muito cedo. Esse era o projeto do Dr. Tancredo”, afirma o autor de Tancredo Neves – a noite do destino.

Uma das últimas sacadas desse personagem fulcral para entender o século 20 no Brasil foi a eleição indireta no colégio eleitoral. O PMDB, conta Ribeiro, achava que ganharia da Arena por via eleitoral. Mas a emenda Dante de Oliveira, que propunha a eleição direta, não passou. Teve maioria, mas não os 2/3 necessários dos votos. Faltaram 22 votos. Assim, a eleição se realizaria indiretamente, pelo colégio eleitoral. “Tancredo se negava a entregar de bandeja para Paulo Maluf e para o governo militar. E foi então concorrer. O Dr. Ulisses Guimarães que, antes, estava irredutível com a ideia de eleições diretas, quando se convenceu que por via indireta – o confronto inteligente – também valia, assume a coordenação da campanha e foi um grande comandante. Dr. Tancredo disputou a presidência e ganhou”.

As histórias, anedotas e passagens são muitas. Tancredo Neves, afinal, teve 50 anos de vida pública. Ribeiro transformou essa trajetória em quase 900 páginas recém-publicadas. Dentre todas elas, no entanto, o biógrafo acredita que há duas características que devem ser ressaltadas para se compreender quem foi Tancredo Neves. A primeira, “que vale como lição em tempos atuais, é que ele sabia ouvir. Era muito bem informado de tudo, mas nunca deixava de ouvir o que aliados, adversários e as pessoas comuns tinham a dizer. Nunca”, garante o autor. E a segunda, pescada por Ribeiro de uma entrevista que o mineiro deu ao final do mandato como primeiro-ministro, é a discrição e a elegância ao fazer uma política eficiente. “O jornalista perguntou qual tinha sido o acontecimento mais importante do período dele como primeiro-ministro. Ele respondeu sem titubear: aqueles que eu não deixei acontecer. Esse é o Tancredo”, conclui.

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